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Chegou janeiro

 

"Chegou janeiro, quero meu dinheiro". É o refrão de uma velha história infantil, que nós, meninos, gostávamos de fazer repetir para devidamente nos assustarmos. Era a história de um devedor que se alegrava por ver morto, em dezembro, um credor a quem ele prometera pagar em janeiro a sua dívida. Mas alegrou-se à toa: quando chegou o primeiro de janeiro, deitou-se na rede gozando a impunidade, mal foi fechando os olhos sentiu duas mãos que lhe puxavam as orelhas e escutou uma cantiguinha na voz do falecido: Chegou janeiro, quero o meu dinheiro!" Quando era de noite e nós conseguíamos alguém que pela centésima vez nos repetisse o refrão com sua musiquinha era o triunfo: o resto da noite (provavelmente até meia-noite) nós ficávamos acordados curtindo a assombração com sua cantoria: "Chegou janeiro, quero o meu dinheiro." Essa história da assombração eu creio que é um item inevitável entre quaisquer grupos humanos. O fato é que o ser humano sente, obscuramente mas fundamentalmente, a necessidade de ter medo. E é talvez por causa do medo que sobrevivemos, ou, mais que isso, crescemos em milhões e até em bilhão, povoando quase completamente a Terra. Podia-se criar um axioma dizendo: "Os valentões são os primeiros que morrem". E, como são os valentes os que planejam e organizam os ataques e as resistências, acontece que, perdidos eles, as turbas que os seguiam acabam se confundindo, mergulhadas na desordem e na injustiça. Ou numa direção, acompanhando cegamente um novo líder que emergiu, e a sua perigosa mensagem. Quando falo em liderança, note-se que estou me referindo a condutores normais de povos e não a profetas alucinados como Hitler. Que Napoleão, também guerreiro genial, que trazia dentro de si um estadista. E, assim mesmo, acabou-se desterrado e solitário. É um fato social curioso: os grandes guerreiros suscitam grandes entusiasmos, mas não suscitam correspondente fidelidade. Quando eles querem arrastar seus povos para além de uma linha normal de segurança, vão perdendo a unanimidade dos seus entusiastas. Aqui e ali vão pipocando resistentes, que recuam, à medida que o mestre avança. Como dizia o nosso amado e saudoso Austregésilo de Athaíde:"O grande líder tem sempre que ser doido. Mas, como doido que é, tem que sempre acabar mal."


Pensando bem, como nós, na nossa natureza propriamente dita, diferimos tão pouco dos outros componentes do reino animal, tínhamos que obedecer à lei geral: a do medo. Os grande conquistadores, estimulando a fereza das multidões que os seguem, não acenam apenas com o leite e o mel. Outro dia caiu-me às mãos um trecho de discurso de Hitler conclamando suas hostes à conquista e submissão da Polônia. Parece referir-se a uma multidão incurável de saqueadores de um bem que Deus destinara precipuamente ao povo alemão, ou antes, à raça alemã. Uma das conclusões a que se pode chegar é que, para se sobreviver num mundo pacífico, é indispensável armar-se e lutar. E daí também se pode tirar outra conclusão: que extraordinária capacidade de resistência têm, realmente, os pacíficos! O que, aliás, é um engano. Por exemplo: saiu outro dia nos jornais a história de um grupo de mães, com seus bebês ao colo, que haviam tentado apedrejar o posto de distribuição de leite que se mostrava fechado, sem explicações. Mãe é mãe, não é? Parece que me afastei do comentário ao medo, mas não foi bem isso. Minha tese é que a agressão decorre mais do medo de perder do que a ambição de possuir. Na verdade, diga-se o que disser, o homem é um animal ético. Ele só é estimulado por conquistas que não sejam apenas agradáveis mas, sim, absolutamente apetecíveis. Voltando ao eterno Hitler, lembremos que ele só conseguiu reunir a quase unanimidade do povo alemão não prometendo apoderar-se do bem alheio, mas prometendo a restituição dos seus bens roubados. Recordo ter visto um mapa europeu, de origem nazista, onde metade das Ilhas Britânicas eram pintadas como territórios extorquidos ao povo germânico. (E, quando dizia "germânico", claro que se referia exclusivamente ao povo alemão sob seu comando). Em vista disso tudo não dá para entender muito bem, porque, nas generalidades das culturas humanas, se considera o medo uma paixão vergonhosa. Se não fosse o medo, o primeiro homem não se muniria de uma pedra para esmagar a serpente que lhe ameaçava a prole. Até hoje os cenários se modificaram, porém a motivação é a mesma. A gente mata para que não nos matem. E, pensando bem, a verdade é que, se a gente não obedecesse a essa lei, não existiria mais raça humana sobre a terra.


 


Diário de Pernambuco - Recife – PE, 29/01/00