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Celso Furtado: Cem Anos

 

Celso Furtado é um dos grandes intérpretes do Brasil. Distinguiu-se como homem público, ao passar para a esfera da ação, com políticas memoráveis para arrancar o país da periferia do Capital. Compreendeu a razão estrutural da dependência. Não havia nisso um destino. A divisão internacional do trabalho é quem atribuiu um lugar assimétrico. Não é questão de atraso, pois o relógio do capital não erra, segundo a economia clássica. Para Celso, impunha-se enfrentar a desigualdade com os motores da indústria, ao mesmo tempo em que reforma agrária se mostrava inadiável. Não se podia construir uma nação tendo por base o latifúndio produtivo. O caminho seria o das pequenas e médias propriedades.

A história é a chave essencial para alcançar o processo. Celso optou pela diacronia para não se fixar, apenas e tão-somente, no horizonte conjuntural, de que vivem, com razão, os economistas, mas que não existe em estado puro. A sombra da história se adensa na dinâmica de um presente abstrato.

Celso abriu novos caminhos com o clássico Formação econômica do Brasil, tecendo relações entre sincronia e diacronia, a partir de um certo diálogo com Keynes. Não lhe faltou o viés da sociologia para compreender a longa duração, o tempo estrutural. O Brasil não é um pequeno cosmos, afastado do mundo. Integra o capítulo do capital comercial ao financeiro.

Na Faculdade de História da UFF, líamos Celso e Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Sérgio Buarque de Holanda. Homens diversos entre si, com leituras que, se não convergiam, apressavam-se a desenhar uma nação moderna e independente.

Uma espécie de indignação, more geometrico, atravessa na biografia de Celso, como gestor e intelectual. Eis a sua marca, o seu rumor de fundo, um grande não ao conformismo.

Ele se define, acima de tudo, como servidor público. Foi brilhante e ousado, com o plano trienal e uma serie de projetos que atenuaram as mazelas de nosso povo no sertão e na cidade.

O pensamento de Celso Furtado continua mais atual do que nunca. Uma obra genial vive das camadas de seu percurso dialético. Nutre-se de suas virtudes, de uma nova epistemologia, como o deus de Aristóteles. Mas há um aspecto doloroso da atualidade de Celso, que ele mesmo abordou em A construção interrompida. A chaga da desigualdade não diminuiu, a reforma agrária não entrou na agenda, a indústria não diminuiu a desigualdade e a especulação financeira engessou as forças produtivas.

A indignação de Celso talvez adquirisse hoje um volume ainda maior, diante das políticas públicas, que não propõem a renda mínima, que não contemplam os mais vulneráveis, com os desafios inomináveis da pandemia, que cobra o preço da falta de polícias públicas estruturais.

Nesse duro momento, as ideias de Celso possuem capacidade seminal, a ideia de um novo modelo de crescimento, de que todos façam parte. Sem isso, não haverá futuro de paz e justiça. 

Jornal de Letras, Artes e Ideias (Lisboa), 03/06/2020