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Cautela mineira

 

A ministra Carmem Lucia, presidente do Supremo Tribunal Federal, preferiu burocratizar a escolha do novo relator da Lava Jato a ser acusada de ter atropelado seus pares em decisões solitárias. Nem por isso escapará das críticas, públicas ou sussurradas nos bastidores, mas protegeu-se o máximo que pôde.

Decidiu-se pelo sorteio, e atrasou-o, para que todo o processo obedecesse a uma ortodoxia administrativa imune a insinuações de que estaria agindo de maneira autoritária.

Com a decisão do ministro Luis Edson Facchin de pedir transferência para a Segunda Turma, muitos, inclusive ministros como Marco Aurélio Mello, consideravam que ele se tornaria o relator no lugar de Teori Zavascki, a quem substituiu na Turma. Mas não há nada no regimento que garanta essa substituição automática de relator, e não há precedente a ser seguido.

Quando muda de Turma, o juiz leva consigo os processos de seu gabinete, mas não a função de relator, que deve ser decidida por sorteio. Assim, o novo ministro a ser indicado por Temer herdará os processos de Zavascki, com exceção dos da Lava Jato. Acusada nos bastidores de ter manobrado para que Facchin se tornasse o relator, a ministra Carmem Lucia decidiu não apenas que ele entraria no sorteio ao lado dos quatro ministros remanescentes, como também checou com todos os ministros da Primeira Turma se algum deles gostaria de fazer a transferência requerida por Facchin.

Isto porque todos os quatro outros ministros da turma são mais antigos no STF que Facchin, e teriam precedência na escolha. Não se contentou, porém, com a consulta informal, mas fez questão de oficializá-la em documentos, para que cada ministro atestasse que, consultado, declinou dessa possibilidade.

Não foi a primeira vez que Carmem Lucia agiu no limite da sua responsabilidade de presidente do Supremo. Ao decidir homologar as delações da Odebrecht, atendendo a um pedido formal de urgência do Procurador-Geral da República Rodrigo Janot, ela decidiu também não quebrar o sigilo, deixando que o futuro relator assuma essa responsabilidade se assim o desejar.

Pela lei, as delações só se tornam públicas quando termina o processo, com o Ministério Público apresentando ou não as denúncias. O relator do caso, no entanto, tem a prerrogativa de liberar os depoimentos caso encontre razões de interesse público na divulgação.  

Ao contrário das críticas que vem recebendo, a presidente do Supremo Tribunal Federal Carmem Lucia, prudente como uma boa mineira, procurou agir rigorosamente nos limites de sua prerrogativa durante os últimos dias, no recesso do Judiciário, diante de decisões cruciais que foi chamada a tomar.

Até mesmo a cerimônia de abertura do “Ano Judiciário” foi diferente ontem, por prudência não explicitada da ministra Carmem Lucia, que alegou a “simplicidade” da homenagem que foi feita ao falecido ministro Teori Zavascki.  Por isso, não houve convite aos presidentes dos outros Poderes para que comparecessem à cerimônia.

Seria embaraçoso ver na mesa principal um réu do STF como o senador Renan Calheiros – como aconteceu no passado com o então presidente da Câmara Eduardo Cunha - ou potenciais alvos de investigações como o presidente da Câmara Rodrigo Maia ou o próprio presidente Michel Temer, ambos citados em delações.

O ministro Celso de Mello, decano do Supremo, no discurso em homenagem a Zavascki, ressaltou o papel do STF nesse processo, indiretamente justificando a ausência de políticos na sessão: “O Supremo Tribunal Federal, atento às anomalias que pervertem os fundamentos ético-jurídicos da República e inspirado pela ação exemplar do saudoso ministro Teori Zavascki na repulsa vigorosa a atos intoleráveis que buscam capturar, criminosamente, as instituições do Estado, submetendo-as, de modo ilegítimo, a pretensões inconfessáveis, em detrimento do interesse público, não hesitará, agindo sempre com isenção e serenidade e respeitando os direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição, em exercer, nos termos da lei, o seu magistério punitivo, com a finalidade de restaurar a integridade da ordem jurídica violada.”
 

O Globo, 02/02/2017