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Cadê elas?

 

Mulheres que fazem política e se dedicam por vocação nos ajudarão a escapar dessa maldição

Bem que eu gostaria de conhecer uma dessas brasileiras que estão renovando a cabeça de nossas mulheres, produzindo novas ideias políticas e adquirindo experiências inéditas nesse terreno. Gente como Simone Tebet ou Marina Silva, que têm o que dizer de nosso processo político e sabem muito bem como ele se dá. Gente que já tem uma experiência respeitável na área e pode ocupar um ministério ou um outro posto decisivo na consolidação democrática do país. Gente que pode um dia se tornar presidente ou governadora ou coisa parecida, ocupando um cargo para o qual foi eleita um dia com exclusividade.

O fato é que ando cansado de discursos que elogiam sem proporcionar o equivalente em responsabilidade administrativa. É como se levássemos sempre um reconhecido herói como Daniel Alves entre nossos convocados, embora saibamos que ele não tem mais idade ou qualidade para vestir nossa camisa, atuar durante os 45 minutos de cada tempo. Isso acaba sendo uma baita sacanagem com nossos heróis.

Pensei que, ao final das regulares transações, gente como a Tebet seria logo convocada pela transição do novo governo, para assumir um compromisso de atuação no campo de liderança que lhe coubesse. E achava que eram muitos esses campos de atuação que não oferecem a menor dificuldade de serem ocupados por elas, no fundo não surpreenderiam ninguém. Muito menos a mim, que sou um tolo nessa matéria.

Mas tudo bem, deve ser assim que se faz política de verdade. Sobretudo num país que se encontra nesse curso de recuperação a que nos dedicamos, depois de tantos fracassos coroados por quatro anos de treinamento fascista, um governo eleito dentro de regras absolutamente democráticas que quase nos afasta definitivamente do rumo da liberdade professada por nosso próprio voto nele.

Hoje percebo que esses doloridos quatro anos de treinamento talvez tivessem sido necessários para confirmar nosso destino político, saber que não é essa a nossa vocação, não é da falta de liberdade que precisamos e queremos fazer a nossa história como nação. Que esses quatro anos foram uma exceção e não a regra de nossa vida política.

Disso eu me lembro, foi apenas há quatro anos. Os tradicionais eleitores de Lula estavam decepcionados com o que havia acontecido com seus heróis mais recentes e com a porra-louquice do governo da Dilma. Eles resolveram dar uma lição no pessoal, decidiram eleger Jair Bolsonaro, um candidato desconhecido, um baixo clero desses de quem a gente não sabe nada. Na pior das hipóteses estariam experimentando novas formas de administração e governança.

Bastava Lula e seu pessoal reconhecerem o que estava acontecendo, bastava reconhecerem os equívocos e pronto. Nesses casos, a evidência é o melhor critério, a melhor conselheira de um fracasso político. Como não fizeram isso, foram castigados pelo povo eleitor: não tiveram seus candidatos escolhidos nas urnas e ainda foram humilhados depois.

O castigo veio nos quatro anos de fascismo brasileirinho, nas misteriosas expectativas que o bolsonarismo trazia para o Brasil. E o pior agora é que podemos eliminar Jair Bolsonaro de nossa vida política, derrotá-lo quantas vezes isso for necessário. Mas o bolsonarismo, não. O bolsonarismo, esse credo e modo político de viver cheio de ideias e princípios autoritários, essa conversa típica da mais baixa conversa de botequim vagabundo, essa desvalorização de todas as virtudes, quando quase nada presta e o que presta não tem e nunca vai ter, esse bolsonarismo saiu do armário do brasileiro comum e nunca mais volta para lá. O bolsonarista sempre acreditou no que agora diz acreditar e daqui a pouco nem se lembrará mais das pessoas que libertaram seu pensamento doentio.

Voltando às mulheres do Brasil que fazem política e se dedicam a isso por vocação e amor, elas nos ajudarão a escapar dessa maldição. Tenho certeza, se não estou enganado.

 

O Globo, 04/12/2022