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Cacá Diegues: Avis rara

 

O apuim-de-costas-pretas voltou a ser encontrado na Floresta da Tijuca. Quem anuncia o festejado evento de danças e celebrações é a primeira página dos jornais, materializando nosso desejo de paz e muita alegria nas florestas onde o tal periquito voltou a voar.

O jornal acrescenta que os ornitólogos estão surpresos e, com eles, os meninos que passeiam e brincam na floresta, cantando e dançando para que tais aves raras não desapareçam mais. O apuim-de-costas-pretas voltou para ficar, não vai mais sumir de novo. Ele descobriu que é suficientemente amado, não precisa procurar outras paragens.

Enquanto a Natureza se organiza para durar mais, as guerras pipocam por aí, introduzindo novas tragédias na história humana deste planeta.

Leio também que os homens jovens estão ficando mais conservadores, que a idade deles não serve mais de pretexto para a conciliação. Muito pelo contrário. Quanto mais velhos, menos conservadores; mais eles se expõem à reação descontrolados diante do que não amam ou de quem acham que não são amados. Nesse embate entre a Natureza e o que é Humano perde o planeta, o futuro do que sempre pretendemos construir aqui com a aliança sagrada entre o que aparentemente não se mexe e nós mesmos, os periquitos apuim de volta às árvores e à dança.

Mas nunca de fato voltamos à festa de viver. Sempre estivemos de frente para nosso extermínio, quanto tempo duraríamos seguindo o mesmo rumo de sempre. Para ficarmos com melhor parte do alimento planetário, decidimos habitar as florestas como nossos antepassados. Com eles disputamos nosso espaço à mesa, o tamanho de nosso alimento e, para compensar nosso fracasso inicial, a surra que estávamos levando de quem estava por aqui muito antes de nós, introduzimos a melancolia das vitórias por causa das armas e instrumentos técnicos que começamos a usar.

E chegamos aos aparatos da Tecnologia, esse mistério da fixação entre os limites do corpo e os desejos da alma. Ou simplesmente do desejo, que é o que sempre nos moveu.

Pensamos então em controlar o que se passava diante de nós, o caos antes da criação, antes da invenção do que é que nos servia. Tentamos eliminar a distância entre o ser humano e a Natureza, para que tudo fosse uma coisa só e, sendo tudo uma coisa só, fosse mais fácil, mais viável submetermos o que não fôssemos nós.

Em matéria de Tecnologia não poderíamos ter encontrado nada melhor, mais avançado e perto da perfeição do que a inteligência artificial (IA). Com ela, quase pudemos produzir o ser humano, pelo menos criar um tipo de relação com ele que não existia antes. Mas a IA não foi suficiente para fazer as pazes com a Natureza. Apesar do esforço de alguns, faltou inventar melhor modo de se relacionar com ela, ser natural com a Natureza.

O “fantasma verde”, como o apuim é chamado no calor da intimidade com seus admiradores, está há décadas ameaçado de extinção. Ele foi encontrado por acaso em seu ninho pela pesquisadora e bióloga Flavia Zagury, a uns dez quilômetros da bagunça humana do centro da cidade. O Touit melanonotus, seu nome científico, não mede mais do que 15 centímetros, sua plumagem e seus hábitos o distinguem dos outros psitacídeos, como papagaios, araras e periquitos. Ouvir sua voz metálica, quando a ouvimos, é um privilégio que muito pouca gente merece ter.

Silenciosos e pouco vistosos, eles só são percebidos quando voam em pequenos bandos ou decidem tagarelar. O professor Henrique Rajão, líder no Departamento de Biologia da PUC, diz que a avifauna do município do Rio é uma das mais ricas do Brasil. Rajão diz que as aves aprenderam a viver na cidade, usando árvores fincadas nas ruas como prolongamento das matas dos maciços da Tijuca e da Pedra Branca: “Esse apuim não se reproduz em cativeiro e morre logo após a captura.”

Não se sabe se a família de “fantasmas verdes” continua na floresta. Eles são tão discretos que um imenso bando podia voar sobre nós, sem que nos déssemos conta. Resta muito pouco do bioma e a pressão sobre ele é enorme. “Cada uma dessas aves tem um papel ecológico”, diz o professor, “precisamos proteger o que resta do bioma”.

E a nós? Quem nos protege da extinção?

 

O Globo, 28/01/2024