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A boa fé no código civil

 

O constante valor dado à boa-fé constitui uma das mais relevantes diferenças entre o Código Civil de 1916 e o de 2002, que o substituiu. É que aquele se baseou no anteprojeto escrito por Clovis Bevilacqua, na última década do século 19, tendo esse insigne jurisconsulto se baseado, além de no Código de Napoleão e na legislação luso-brasileira anterior, nos ensinamentos da escola alemã dos pandectistas, entre os quais figuravam os elaboradores do Código Civil alemão, o BGB que entrou em vigor em 1900.


O pandectismo, assim denominado por seu apego às diretrizes do Direito Romano codificado pelo imperador Justiniano, se caracterizou pelo propósito de resolver as questões jurídicas de preferência mediante conceitos e categorias da própria Ciência do Direito.


É claro que nenhum jurista pode ser contrário à elaboração de "categorias jurídicas" destinadas à disciplina dos fatos sociais, atendendo às exigências da igualdade entre fatos da mesma espécie, mas o que é criticável é pretender que tal solução seja obtida tão-somente graças a fórmulas de natureza jurídica, sem levar em conta os fins éticos e econômicos, por aqueles também reclamados.


O que aqui se critica é o exclusivismo jurídico dominante na visão positivista do Direito, que se contenta com princípios e regras de caráter empírico ou factual.


A vida do Direito não se reduz a uma sucessão de fatos desvinculados dos valores que lhes dão sentido e significado, de cuja correlação dialética emerge a regula iuris.


Daí a orientação assumida pelos autores do anteprojeto do Código Civil, sistematizado e publicado em 1972, o qual, devidamente revisto, culminou no projeto de 1975, enviado ao Congresso Nacional, nele já apresentada a eticidade, cuja raiz é a boa-fé, como um dos princípios diretores que o distinguem do individualismo do código revogado de 1916.


O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juízes.


É a boa-fé o cerne em torno do qual girou a alteração de nossa Lei Civil, da qual destaco dois artigos complementares, o de nº 113, segundo o qual "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", e o artigo 422, que determina: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."


Como se vê, a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.


Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.


Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última - vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo - corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal. Tal conduta impõe diretrizes ao agir no tráfico negocial, devendo-se ter em conta, como lembra Judith Martins Costa, "a consideração para com os interesses do alter, visto como membro do conjunto social que é juridicamente tutelado". Desse ponto de vista, podemos afirmar que a boa-fé objetiva se qualifica como normativa de comportamento leal. A conduta, segundo a boa-fé objetiva, é assim entendida como noção sinônima de "honestidade pública".


Concebida desse modo, a boa-fé exige que a conduta individual ou coletiva - quer em juízo, quer fora dele - seja examinada no conjunto concreto das circunstâncias de cada caso.


Exige, outrossim, que a exegese das leis e dos contratos não seja feita in abstrato, mas sim in concreto. Isto é, em função de sua função social.


Com isto quero dizer que a adoção da boa-fé como condição matriz do comportamento humano põe a exigência de uma "hermenêutica jurídica estrutural", a qual se distingue pelo exame da totalidade das normas pertinentes a determinada matéria.


Nada mais incompatível com a idéia de boa-fé do que a interpretação atômica das regras jurídicas, ou seja, destacadas de seu contexto. Com o advento, em suma, do pressuposto geral da boa-fé na estrutura do ordenamento jurídico, adquire maior força e alcance o antigo ensinamento de Portalis de que as disposições legais devem ser interpretadas umas pelas outras.


O que se impõe, em verdade, no Direito, é captar a realidade factual por inteiro, o que deve corresponder ao complexo normativo em vigor, tanto o estabelecido pelo legislador como o emergente do encontro das vontades dos contratantes.


É que está em jogo o princípio de confiança nos elaboradores das leis e das avenças, e de confiança no firme propósito de seus destinatários no sentido de adimplir, sem tergiversações e delongas, aquilo que foi promulgado ou pactuado.


Donde se conclui que, quando o artigo 104 dispõe sobre a validade do negócio jurídico, referindo-se ao objeto lícito, neste está implícita a sua configuração conforme à boa-fé, devendo ser declarado ilícito todo ou parte do objeto que com ela conflite.




O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em 16/08/2003

O Estado de São Paulo (São Paulo - SP) em, 16/08/2003