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A ave na Ilha

 

O canto é o mesmo de manhã, de tarde e, às vezes, à noite também. Um baixo de tecla preta e duas notas altas, se não me engano uma atrás da outra, bem claras e pousadas. Ela não é lá muito de aparecer, mas também não vive se escondendo de propósito. Poucas pessoas veem constantemente a ave porque ela costuma frequentar o pico das árvores mais altas e secas de uma região tão verde, de vastos palmares sempre ao vento.

Quando ecoa seu canto tão simples quanto de usura, devem estar todos trabalhando; ou então descansando do trabalho, num justo e alheio fim de semana. Ninguém se lembra de vigiá-la. Mesmo porque, todo mundo sabe, no fim da tarde a ave fará, com sua companheira, um voo baixo pelo lugar em que nos encontramos, seja ele qual for, suando certamente sob o sol, doidos para que o dia termine logo e bem. Nunca vi um sol se pôr tão devagar.

A ave voa sem pompa, um mergulho que ela deseja solene mas é apenas um mergulho no ar abafado, como minha prima adolescente costuma fazer quando aparece por aqui para visitar o fundo do oceano nas costas da Ilha, costas largas e rochosas, em que acaba por não recolher rigorosamente nada. A não ser aquele misterioso sorriso de quem viu a Terra nascendo.

A ave nunca pousa, não é para isso que ela voa. Pode até passar de novo diante de nossos narizes, mas não espere saudação ou homenagens, será apenas para cumprir sua sina de mais um mergulho na falta de ar, que ela passa a vida aperfeiçoando. Nem cantará — a ave não é um passarinho para ficar por aí a encher nossos ouvidos de chilreios, trinados e sussurros, em notas musicais desconexas, sem grandeza ou conveniente harmonia. A ave é uma ave, passarinho é outra coisa.

A Ilha da ave nunca foi dela. Foi “descoberta” pelos ingleses que chegaram lá antes dos espanhóis, franceses, holandeses ou portugueses, gente que também andava pela vizinhança. Os ingleses eram tão poucos e precisavam trabalhar tanto que tiveram que inventar a escravidão para povoar e cultivar a Ilha. Traziam de África um povo bonito, que não se deixava misturar. Ou eram eles mesmos que, morrendo de ciúmes do que não podiam tocar, proibiam qualquer intimidade.

(Hoje são 85% de afrodescendentes que trabalham no que der. Jardineiros de piscinas plantando enfeites naturais em torno delas, por exemplo. Gente que inventa uma língua do inglês, para que ninguém tome conhecimento de seus sonhos. Na Ilha, são apenas 12% de eurodescendentes, empresários e burocratas muito brancos, os que têm direito a histórias do passado. Bem, deve ter algum brasileiro no meio dos 3% que restam. Um de família pernambucana que iludiu a Inquisição; outro, um bisneto de bandeirante que fez de escravos os índios locais). De índios locais, aliás, nunca ouvi falar nesses dias na Ilha, ouvindo o canto irritado da ave.

Quando a ave não tem mais para quem cantar ou à frente de que gosto voar, parte ao fundo da Ilha, se exibe frenética diante dos animais domésticos. A garupa da vaca era palustre e bela, não era para ser ocupada por um animal qualquer com penas de mata noturna. Mesmo sem a noite, nada brilha em suas asas desbotadas. Nem seu canto, que já não surpreende mais. A ave, às vezes, muda as notas selecionadas, faz sumir o baixo da tecla preta e espera, decide esperar. Mais ninguém se importa quando o negro corvo canta sua melodia fraturada, um esforço de três notas que ninguém precisa ouvir. O corvo era somente um corvo, nada mais.

O Globo, 25/04/2021