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Apoio à impunidade

 

Foi a mais grave derrota do ministro Sérgio Moro, mas foi mais que isso. Foi a confirmação de que a luta contra a corrupção nunca foi um objetivo do presidente Bolsonaro, apenas uma desfaçatez eleitoreira que não resistiu a um ano de investigações sobre sua família.

Ao que indicam os fatos, essa relação perigosa da família Bolsonaro com pessoas e atos à margem da lei vem de longo tempo, mas somente agora se tornaram visíveis à opinião pública.

As diversas restrições que a lei impõe ao combate à corrupção, especialmente a do colarinho branco, encontraram no presidente que se dizia íntegro defensor de seu combate um aliado a favor da impunidade.

As diversas alterações feitas na proposta do ministro Sérgio Moro saíram da Câmara, onde grande parte de seus componentes têm contas a ajustar com a Justiça, ou teme vir a ter. A intenção das várias inserções é evidente, como a implantação imediata do juiz de garantias.

A esquerda festeja muito justamente, porque sua aprovação, com a sanção presidencial, é uma crítica direta ao ex-juiz Moro, uma aceitação das denúncias de que ele exorbitou de seu poder nos processos da Lava Jato.

Esse tema surgiu justamente devido à revelação do The Intercept Brasil de conversas entre procuradores de Curitiba e o juiz Moro, fruto de roubo cibernético ainda não completamente esclarecido. A idéia em si, já em prática em vários países europeus, e até mesmo em certos setores da justiça de São Paulo, não é desprezível, nem em si mesma errada.

O juiz que preside o inquérito na fase de investigações não é o mesmo que dá a sentença, como fazíamos no país desde sempre. O que a mancha é a tese de que representa uma medida que “acaba com o jeito Moro de julgar”. Como se os tribunais superiores não tivessem confirmado suas sentenças.

Justamente aí está o motivo de satisfação dos que propuseram tais alterações, e não apenas o juiz de garantias. Todo um arcabouço legal foi montado para dificultar a apuração dos crimes de corrupção, especialmente os mais complexos que implicam lavagem de dinheiro.

Bolsonaro também sancionou a limitação da delação premiada ao caso em investigação, restringindo, assim, sua abrangência. Este é um dos pontos mais festejados pelos criminalistas e seus clientes, atuais ou potenciais. Os diversos apêndices que formam uma delação premiada que justifique uma compensação judicial não mais existirão, resumindo-se o colaborador a poder denunciar fatos ligados ao processo em si, e não novos fatos que, não estando em investigação, passariam a estar devido às novas informações correlatas.

Outra alteração obriga o juiz a soltar preso em flagrante caso ele não seja submetido dentro de 24 horas a uma audiência de custódia, na qual a Justiça avalia a necessidade de mantê-lo na cadeia. Por causa do excesso de processos e da distância entre comarcas, nem sempre há condições de designar um juiz em 24 horas para conduzir a audiência.

Mesmo existindo razões para a manutenção da prisão, o preso será colocado em liberdade em razão do mero decurso do prazo, argumentou o Ministério da Justiça ao recomendar o veto. Moro também recomendou o veto a mudanças no Código de Processo Penal que dificultarão as prisões preventivas.

Adotadas essas medidas, que impõem que seja provada a periculosidade do preso e a existência “concreta de fatos novos e contemporâneos”, a vasta maioria, se não todos os implicados na Operação Lava Jato não estariam presos, pois não são violentos nem perigosos, e os fatos que os envolvem aconteceram já há algum tempo, não são novos nem contemporâneos às denúncias.

Também criminosos comuns, que forem apanhados muito tempo depois do crime ter sido cometido, não poderão ser presos preventivamente.

Não é de hoje que a classe política, aliada a empresários e outros agentes privados, tentam minar a Lava Jato, assim como aconteceu na Itália das Mãos Limpas. Depois de anos de tentativas, foi justamente num governo supostamente alinhado ao combate à corrupção, tanto que convidou o símbolo desse combate, o juiz Sérgio Moro, para seu ministro da Justiça, que as medidas de cerceamento foram aprovadas, com o aval de Bolsonaro.

A forte reação da opinião pública, inclusive dos bolsonaristas arrependidos, mostra que o mandato do presidente já não corresponde, nesse aspecto vital, à expectativa majoritária. Moro sai derrotado politicamente, mas fortalecido popularmente. Essa lacuna entre um e outro deve ter conseqüências políticas que afetarão a disputa presidencial de 2022.

O Globo, 27/12/2019