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Alcance e significado da Declaração Universal

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembléia-Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948, é um evento histórico inaugural. Representa uma inovadora concepção da organização da vida mundial. Aponta os rumos da conformação de um sistema internacional que transcende as tradicionais normas do Direito Internacional interestatal ao reconhecer o valor próprio da dignidade humana. É um desdobramento jurídico da Carta da ONU, voltado para a construção de um sistema internacional não só de Estados igualmente soberanos, mas de indivíduos livres e iguais. É o primeiro texto de alcance internacional que trata de maneira abrangente da importância dos direitos humanos na arquitetura da ordem mundial. É, assim, um marco histórico na afirmação da plataforma emancipatória representada pela promoção dos direitos humanos, tanto como critério organizador e humanizador da vida coletiva em escala planetária quanto como caminho propiciador da conduta pacífica dos Estados.


Um dos redatores da Declaração Universal, René Cassin afirmava, nesta linha e tendo em mente os procedimentos da Alemanha nazista, que seria impossível uma paz internacional efetiva num mundo onde os direitos humanos fossem muito desigualmente desrespeitados. Daí, subjacente à lógica da Declaração, o nexo entre paz no plano internacional e direitos humanos e democracia no plano interno, realçado por Norberto Bobbio em A Era dos Direitos.


A internacionalização dos direitos humanos foi antecipada, no plano das idéias, por Kant. No Projeto de Paz Perpétua, além de sublinhar a importância da forma republicana democrática do Estado como meio de conter a propensão despótica à guerra, conjeturou a possibilidade de um direito cosmopolita. Este direito diria respeito tanto aos seres humanos quanto aos Estados na sua relação de mútua interdependência, tendo como fundamento o direito à hospitalidade universal. Este direito comum de todos os seres humanos à face da Terra poderia efetivar-se, segundo Kant, numa época da história em que a violação do direito num ponto da Terra viesse a ser sentida em todos os demais. Esta sensibilidade prevista por Kant se fez presente na elaboração da Carta da ONU e na subseqüente tramitação da Declaração Universal. Para isso muito contribuiu a revelação do alcance da descartabilidade do ser humano trazida pelo Holocausto, levado a cabo pelo racismo anti-semita do totalitarismo nazista.


O Holocausto, como expressão da gratuidade do mal, foi favorecido pela dissociação, não prevista pelas Declarações do século 18, entre os direitos dos povos e os direitos humanos. Com efeito, o fim dos antigos impérios multinacionais, ao término da 1ª Guerra Mundial, resultou no surgimento, em larga escala, dos deslocados no mundo: as minorias nacionais, étnicas, religiosas, lingüísticas que, ao se verem expulsas da trindade Estado-povo-território, se converteram em indesejáveis refugiados e apátridas, destituídos dos benefícios da legalidade e, por isso, sem acesso aos direitos humanos. É por esta razão que Hannah Arendt afirmou que o primeiro direito é o direito a ter direitos, o que requer o laço de todo ser humano com a ordem jurídica. Este laço não é um "dado", mas um "construído" da convivência coletiva que a experiência histórica mostrou exigir uma tutela internacional. É por esse motivo que um dos propósitos da Carta da ONU é o de "conseguir uma cooperação internacional para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião".


A Carta da ONU tem características de um texto constitucional, contém referências à importância dos direitos humanos, mas não tem uma Declaração de Direitos. A Declaração Universal buscou preencher esta lacuna, articulando, nos seus 30 artigos, uma "compreensão comum" dos direitos e liberdades que integram os propósitos da ONU. Explicita, deste modo, qual é, para uma apropriada ordem mundial, "o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações".


A Declaração integra, no "ideal comum", a interdependência dos direitos civis e políticos, o legado do liberalismo, e os direitos econômicos e sociais, o legado do socialismo, mas vai além dessa indivisibilidade. Lida com o desafio do "direito a ter direitos". Formula, assim, direitos que não estão ao alcance das jurisdições nacionais, como o direito de toda pessoa de ser reconhecida em todos os lugares como pessoa perante a lei. Por isso ela é universal. Afirma que os direitos humanos configuram uma visão do mundo que pressupõe o reconhecimento do outro. Por isso, superando o unilateralismo das soberanias, podem contribuir para as relações amistosas entre as nações. Daí ser relevante para a paz o direito, previsto no artigo 28, a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades contemplados na Declaração possam ser plenamente realizados.


A Declaração Universal traçou uma bem-sucedida política de Direito. Foi a fonte de inspiração que abriu caminho para o desenvolvimento de um Direito Internacional dos Direitos Humanos, que se corporificou em tratados de proteção geral e de proteção particularizada. Teve o mérito de não ser apenas uma reação aos problemas do passado que explicam a sua gênese. Contribuiu para projetar valorações fundamentais modeladoras do futuro. Por isso conserva a fecunda qualidade de um evento inaugural e retém plena atualidade como vis directiva da arquitetura da ordem mundial. Continua sendo, seja como interpretação autêntica da Carta da ONU, seja como costume internacional, seja como princípio geral do Direito reconhecido pela jurisprudência da Corte de Haia, o grande ponto de apoio para alavancar a difícil e incessante tarefa da luta em prol da promoção do valor dos direitos humanos no mundo.


O Estado de S. Paulo (SP) 21/12/2008

O Estado de S. Paulo (SP), 21/12/2008