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Ai de ti, Ipanema!

 

Por muito menos, o incomparável Rubem Braga escreveu sua antológica crônica “Ai de ti, Copacabana”, uma imprecação poeticamente apocalíptica contra os vícios e excessos pecaminosos da Princesa do Mar: “estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. Grandes são os teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão” (...). “Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum”. 

No início dos anos 60, quando foi escrita a crônica, a especulação imobiliária avançava sobre o então mais valorizado bairro do Rio, onde se concentravam também a boêmia e o prazer, que sugeriam ao cronista uma metáfora hiperbólica de Sodoma e Gomorra. Era um presságio, não uma antevisão, mas que mesmo assim adquiriu atualidade num só dia, anteontem, quando Ipanema expôs duas faces de sua tragédia urbana. 

Como resultado de uma incursão jornalística pelo bairro, Maurício Ferro documentou com números e depoimentos o que moradores como eu já vinham observando: além dos numerosos apartamentos ostentando um “vendo” ou “alugo”, cerca de cem lojas tinham fechado as portas, anunciando que a crise econômica chegara ao comércio mais sofisticado da cidade. O repórter registrou o desalento de comerciantes que tiveram de entregar seus pontos e o lamento dos fregueses que perderam a padaria da esquina, a churrascaria onde a família almoçava aos domingos ou o botequim onde tomavam o seu chope. 

O pior viria a seguir, quando o clima de guerra voltou a atormentar os habitantes do Pavão-Pavãozinho, do Cantagalo e do asfalto. Só que agora o tiroteio entre bandidos e policiais apresentou uma intensidade e um barulho como nunca se vira e ouvira antes. Um idoso que mora perto do morro desde a década de 60 anunciou que a paz trazida pelas UPPs chegara ao fim. “Agora, elas não adiantam mais. O inferno voltou”. As fotos do jornal de ontem revelavam cenas inéditas, como a de um corpo se despencando pela encosta de pedra e as de pessoas do alto de um prédio jogando pedras na PM — um edifício, vejam a ironia, do “Complexo Rubem Braga”, em homenagem a quem viveu ali.

O velho Braga terminava sua bela crônica agourento: “Canta a tua última canção, Copacabana!”. O que era licença poética na época dele, de Millôr, Tom e Vinicius, é hoje triste realismo. Ainda dava para fazer humor, poesia e canções, mas agora piorou, inclusive de cronista. 

Apesar de tudo, Ipanema ainda vale a pena, se tiver paz e progresso.

O Globo, 12/10/2016