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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. SOUSA BANDEIRA

Se, por exagerada presunção, eu me acreditasse chamado ao vosso grêmio unicamente porque houvésseis querido galardoar a minha individualidade, mais fácil, bem mais fácil, seria a minha tarefa neste momento.

Abrigada a minha insuficiência sob a vossa poderosa autoridade, eu acharia palavras de gratidão pela generosidade com que me concedestes a honra de ser dos vossos. Relembrando o querido amigo a quem me cabe a fortuna de suceder, eu poderia recordar com facilidade os tempos, já distantes, em que ambos pugnávamos pelos mesmos ideais, para os quais olho hoje como para a evocação de um belo sonho desfeito. E em poucas palavras teria feito o meu discurso, que, se não tivesse o realce da eloqüência, teria o mérito de comovida sinceridade.

Mas eu não me iludo sobre os motivos determinantes dos vossos votos. Não foi por simples considerações de escolha pessoal que me honrastes com a sucessão de Martins Júnior. Quisestes que fosse aqui representada a geração intelectual a que ele tanto brilho soube dar, e, em mim, procurastes o mais obscuro representante daquela “Escola do Recife” que marcou uma época no movimento literário nacional. Foi por isso que me fizestes suceder ao malogrado poeta a quem havíeis dado uma cadeira, da qual, inesperadamente, a morte o privou de tomar posse. Eis o que torna mais grave, muito mais grave, a minha responsabilidade.

A cadeira em que hoje vou ter a honra de me sentar representa três gerações, nitidamente distintas: Francisco Otaviano, cuja memória quisestes perpetuar; Taunay, um dos iniciadores da vossa ilustre companhia; e Martins Júnior, cuja vaga venho preencher, correspondem a três estados de alma, sucessivamente atravessados pela mentalidade brasileira.

Otaviano foi dos que vieram à tona com a Maioridade, depois dos agitados tempos da Regência, quando a pátria brasileira, cansada das lutas fratricidas que ameaçavam submergir a unidade do Império, sedenta de paz e de progresso, via enfim reunidas em torno de uma criança todas as esperanças da nacionalidade que se começava a afirmar. A geração de Otaviano cresceu com D. Pedro II, com ele se iniciou nos negócios públicos, com ele sofreu para viver, pois, na sua conhecida frase, “para viver é preciso sofrer”, e atravessou largos decênios de paz interna, sempre animada pelo forte influxo romântico que fez a Maioridade, e foi a alma de todas os movimentos do segundo reinado.

Espírito finamente ático, poeta de delicado sentimento, orador correto e moderado, jornalista brilhante, ele encarnou bem o espírito do seu tempo, e encerrou o glorioso ciclo de sua existência, quase nas vésperas do grande movimento que veio transformar completa¬mente a face das cousas em o nosso país.

Taunay, cujo nome pronunciado nesta Casa faz correr um saudoso frêmito de vivas e caras reminiscências, representa a geração que surgiu com a gloriosa aventura do Paraguai. Detestável como todas as guerras, sela qual for o motivo, e sob o prisma com que os historiadores modernos consideram os acontecimentos, pode hoje a guerra do Paraguai ser julgada com severidade e tem sido objeto das mais desencontradas opiniões. Naquele tempo, porém, foi um poderoso momento da vida nacional, e fez vibrarem com uníssona energia todas as forças do nosso organismo. Taunay formou nas fileiras do exército brasileiro, entrou em vários combates, viveu a vida intensa da campanha e acompanhou a heróica retirada da Laguna, que se veio juntar às duas outras grandes retiradas de que, até então, falava a história.
Bem mais duradouras que as glórias com que o jovem oficial tornou da guerra, foram as obtidas pelo livro com que imortalizou o notável feito, e desde logo lhe conquistaram o título de escritor.

Estava iniciado no Brasil um vasto movimento, que nunca mais devia parar, em prol do progresso, em demanda dos ideais da liberdade. Ainda tremulava em Assunção a nossa bandeira, quando o Conde d’Eu, general a quem Taunay serviu de ajudante de ordens, dirigiu ao Governo Provisório do Paraguai uma carta em que nobre¬mente pedia, como prêmio da vitória, a abolição da escravidão na república vencida. Este fato significativo mostra o estado dos espíritos e a corrente impetuosa da idéia abolicionista, que através de mil reveses e vitórias, somente dezoito anos depois veio a triunfar definitivamente.

Quais os episódios da gloriosa luta do abolicionismo, não é ocasião de rememorar. Basta lembrar que entre os seus próceres coube a Taunay um lugar dos mais salientes. Assim, teve ele a rara glória de, pessoalmente, figurar nos dois mais importantes fatos da geração a que pertenceu. Militar, combateu na guerra do Paraguai. Publicista, fez a propaganda da abolição e das reformas liberais que a completavam. Parlamentar, votou a lei 13 de maio.

Quando a revolução de 15 de novembro veio derrubar o velho edifício da Monarquia, o Visconde de Taunay recolheu-se a um digno e discreto silêncio. Até os seus últimos dias guardou fidelidade absoluta à família imperial, a quem o prendiam caríssimos laços de amizade. Aceitando, porém, o fato consumado, nunca pensou em perturbar a vida nacional com agitações revolucionárias.

O seu derradeiro período, passou-o na convivência dos artistas e homens de letras, na intimidade carinhosa dos escritores da Revista Brasileira, núcleo de onde mais tarde nasceu esta Academia, que ele tanto amou, e em cujo seio acabou serenamente a sua fecunda vida, dedicando ao salutar comércio das letras os últimos lampejos da sua bela inteligência.

Quando a geração de Taunay havia muito que figurava entre as classes diretoras do país, surgiu para a vida pública a nova camada, a que pertencemos Martins Junior e eu. Vimos a luz do dia ao som das fanfarras da vitória e a nossa infância se desenvolveu ouvindo as narrativas frescas dos episódios da campanha. Os poetas, cujas estrofes inflamadas começávamos a repetir, deformando-as com a prosódia infantil, eram os que celebravam as glórias guerreiras. E esses poetas, descendentes em linha direta do romantismo europeu, vestiam com as cores nacionais os versas de Hugo, Lamartine, Musset e Byron.

O romantismo de 1830, a palavrosa ideologia dos doutrinários, a brilhante filosofia do tempo em que Cousin pedia a adesão da mocidade “em favor das suas belas doutrinas”, constituíam o ambiente intelectual onde amadureceu a idade viril dos nossos pais, e onde começavam a respirar os espíritos que então desabrolhavam. Tudo no Brasil traduzia a distensão nervosa que se segue a uma grande luta. Tudo apercebia a atividade para o trabalho da reorganização nacional.

Quando chegamos à adolescência, chegavam também da Europa, ou melhor, da França, as notícias da grande revolução intelectual que agitou o século XIX. Uma crítica implacável havia demolido as belas doutrinas que fizeram o encanto dos nossos pais, uma concepção severa da sociedade havia atirado para o segundo plano os ideais da política romântica, um frio espírito de observação e análise havia gelado as incandescentes estrofes com que os poetas sentimentais nos enlevaram a infância.

Com o vigoroso impulso adquirido pelos restos do romantismo ainda latentes no funda da nossa alma, abraçamos rapidamente os novos ideais, e, ardentes, fervorosos, entusiastas, nos atiramos à sua propaganda. Nós nos julgávamos então capazes de revolucionar a nação, e não havia escola superior que se não considerasse um viveiro de jovens águias, à espera de subir aos alcantis.

O nosso estado de alma foi bem definido nos seguintes versos que Martins Júnior põe na boca da Musa, falando ao poeta:

............................................ Essa missão é tua:
Tua e dos teus irmãos, mancebo! Arvora nua
A tu’alma no mastro azul da Poesia;
Deixa que ela flutue aos ventos da harmonia,
Veste a cota do Bem, o aço do Valor,
O bronze da Vontade, e põe com todo o ardor
O teu braço ao serviço atlético da causa...

A abolição da escravidão era o objetivo imediato de nosso espírito de combate. A República era o remoto ideal em que antevíamos desenhado o futuro da pátria, numa cintilação radiante de paz e de amor, que inundava de luz todo o horizonte e enchia de fé os nossos ingênuos corações de moços. No fecho do poema em que Martins Júnior descreveu as suas “Visões”, ele divisava nas brumas do futuro:

A Política, a Ciência, a Religião, a Arte
Entoando uns Te-Deum à eterna Humanidade,
Te-Deum feito de Fé, de Amor e de Verdade.

Está hoje muito em moda chasquear da chamada “Escola do Recife” e diminuir aos olhos da moderna geração a figura imponente de Tobias Barreto, o mestre que nos soube incutir o candente entusiasmo pelas doutrinas que então eram novas. É preciso, porém, ter ouvido a palavra inspirada do grande mestre para compreender a ardentia do nosso proselitismo, e o fascinante prestígio que teve sobre nós aquele poderoso espírito. Inteligência superior e culta, alma exuberante e comunicativa, ardente temperamento de lutador, tinha Tobias Barreto inestimáveis qualidades de propagandista.

Quando se nos apresentou à frente, reunindo todas as audácias, congregando todas as revoltas, seguimos eletrizados os seus passos, cheios de viril confiança nas conquistas do livre pensamento. Os ecos da velha Faculdade de Direito, acostumados, durante mais de trinta anos, às solenes preleções da ciência consagrada pelo espiritualismo católico ao serviço da Constituição do Império, repetiam, pasmados, pela primeira vez a estranha linguagem do novo iconoclasta. O ousado mestre fazia bater de chapa naqueles redutos, até então impenetráveis, a luz deslumbrante do sol que nascia. A golpes de talento e de audácia, impunha o respeito pelas novas doutrinas a uma congregação composta, em sua maioria, de velhos aterrados ao passado. O germanismo do mestre nos emancipava do tributo ao exclusivismo da literatura francesa, os novos métodos invadiam o domínio de tudo o campo intelectual, um constante estímulo de luta nos revigorava o caráter e nos aparelhava para o assalto às posições ocupadas pela doutrina oficial. Era o reviver do Sturm und Drang do tempo de Schiller, já que estamos no capítulo do germanismo.

Eis a razão do entusiasmo que ainda nos enche o peito, quando volvemos a vista para essa época de vinte anos atrás. O sulco deixado pelo mestre foi largo e fundo, e, ainda hoje, espalhados por este vasto país, existem os que conservam a recordação daqueles dias intensamente vividos como a suprema consolação para os desfalecimentos e desilusões dos tempos presentes.

Foi Martins Júnior o Tirteu dessa campanha, o poeta que nos cantava os hinos de combate, o porta-bandeira da nossa falange.
Apesar de mais tarde ele dizer à Musa:

Em pequeno eu já via a tua branca imagem
Na onda, no vergel, na estrela, na paisagem,
Nas efusões do amor, nos risos, nos folgares.

não sei qual o gênero do seu versejar, em tão tenra idade. A julgar, porém, pelas cordilheiras, simuns e briareus dos seus versos mais antigos em data, presumo que ele houvesse pago o seu tributo ao espírito condoreiro. As metáforas arrojadas, a imitação quase inconsciente das imagens e até dos dizeres de Castro Alves, a própria forma métrica das décimas, assim o testemunham.

Veio depois a influência de Baudelaire e de Guerra Junqueiro. As blasfêmias atrevidas, os remoques ao sentimentalismo e à musa antiga, as comparações excêntricas, os anátemas:

A imagem secular do velho Deus do mal bem mostram a transição do seu poetar. Os antigos versos de sete sílabas cederam o lugar aos clangorosos alexandrinos, provocadoramente alinhados em ordem de batalha. As poesias tinham por epiígrafe versos tirados das Flores do mal e da Morte de D. João. Para dar a medida do seu cansaço, em certa ocasião, diz de uma feita o poeta:

Nem penso em Baudelaire, nem abro o meu Junqueiro.

Finalmente, evolveu para a chamada poesia científica, pela qual se bateu sem cessar daí em diante. Entendia que a arte se devia transformar em veículo de propaganda, refletir a orientação das sínteses científicas, ou, na sua própria frase, “sentir o influxo da concepção filosófica do universo, enunciando as verdades gerais que decorrem, para a vida social, dessa concepção”. É verdade que condenava a poesia didática e permitia que a arte “revestisse sempre os seus ideais com as roupagens iriadas das faculdades imaginativas”. Mas, decretada a sentença de morte do lirismo, proscrito da arte o elemento subjetivo, estabelecido o regime de filosofar em verso, que restava à poesia senão o papel secundário de afinar o seu modesto alaúde pelo tom vibrante dos clarins da ciência moderna?
A pobre Musa não teve remédio senão renunciar a todo o seu passado de sonhos, esquecer a nostalgia divina do azul que constitui a essência de sua alma, para ouvir a seca voz de comando com que em um dos seus verses lhe bradava o poeta:

............................. Musa! o olhar viril,
Vamos, imerge agora ali, na Filosofia.

E a Musa obedeceu e, torturada em retumbantes alexandrinos, acorrentada ao carro triunfante de Augusto Comte, acompanhou o poeta em uns delirantes sonhos, nos quais a ciência, a política e a arte se juntavam para proclamar a excelência do positivismo e as vantagens da república futura. De quando em quando vêm-lhe uns assomos de rebeldia, uns saudosos laivos do tão condenado lirismo, e ela divaga na contemplação dos esplendores da natureza, ou se depara ao poeta sob formas de faceirice feminina destoantes da austeridade das suas novas funções. Presto, um olhar enérgico do poeta a chama à realidade das cousas, e ei-la, domada, submissa, a rimar, em esdrúxulo, filas inteiras de nomes estrangeiros, de sábios e filósofos.

Foi na terceira rase da sua poética que se estreitaram as nossas relações. Solidário, desde então, com os seus entusiasmos juvenis, que depois se converteram em cruéis decepções, nunca me pude, porém, conformar com a sua teoria artística. Foi isso sempre um constante motivo de discussões entre nós. Em um dos seus volumes existem uns versos dedicados a mim, em que ele se escusa de escrever poesia científica, porque iria fazer mal à minha

....................................estremecida
Namorada gentil – a Poesia Velha.

É que nunca me convenci de que houvesse uma poesia velha, pois, para mim, sejam quais forem as formas transitórias que revistam as escolas, só há uma poesia, e esta será eternamente nova, como nova é a arte, e nova qualquer manifestação do sentimento estético.

A ciência quer a análise, baseia-se nos dados obtidos pela observação, tem por horizonte o campo limitado da experimentação e da crítica. Não transcende dos estreitos limites do mundo conhecido, e tudo o que fornece ao homem sequioso de saber toma fatalmente a forma vazada nas categorias do conhecimento. Tudo nela é relativo e contingente, quando, armada de microscópios e retortas, vem lembrar à triste humanidade as asas de chumbo que a impedem de se alar às etéreas regiões do desconhecido.

Só a divina arte libertadora é que pode fornecer à humanidade o meio de fugir deste sombrio pessimismo, seguindo o caminho exatamente contrário ao do método científico, permitindo ao espírito inventar as soluções que a ciência não pode demonstrar. Superior ao testemunho dos sentidos, livre das peias da observação, forra ao constrangimento da análise, pode a arte operar a completa manumissão do espírito, na luminosa frase de Schopenhauer, cuja teoria estética é uma das mais belas produções da cultura humana.

Os laboratórios demonstraram por a + b que a humanidade se deve contentar com o que lhe fornecem as experiências científicas, e uma legião de sábios, municiada com instrumentos de precisão, vai expelindo da terra as suaves consolações de que a fé havia povoado a vida. O homem moderno, acabrunhado pelas demonstrações científicas, que friamente lhe despedaçaram as mais consoladoras ilusões, queda-se um instante a cismar sobre o paraíso perdido de suas crenças. Então, como aquele monge de que fala Manuel Bernardes, ouve o canto do pássaro êxul da poesia “de uma modulação tão vária, tão seguida, tão suave, tão saudosa”, que o faz esquecer de tudo, até o momento em que “explicando os breves ramos de suas ligeiras penas, vai cortando esse golfo dos ares e desaparece”, deixando se dobarem os séculos sobre a “eterna ilusão que, superior ao tempo e ao espaço, funde em um único sonho o passado e o futuro, e realiza a completa despersonalização do homem no seio fecundo da arte.

Homens do século positivo, filhos da época em que tudo se pretende reduzir a função algébrica, desde a trajetória dos corpos celestes no espaço até às vibrações das células nervosas nos sinuosos meandros das circunvoluções cerebrais, nós, mais que quaisquer outros, precisamos da suave consolação da poesia. Necessitamos das doces mentiras com que nos supomos, um momento, subtraídos à hediondez da nossa miséria. Estas mentiras, admiravelmente traçadas pelos grandes gênios de que se orgulha a humanidade, constituem a corrente de simpática solidariedade que desde os tempos mais remotos tem unido os povos, nesta vasta evolução que arrastou o passado, envolve o presente e arrastará o futuro.

A ciência não promete consolar ninguém, nem pretende satisfazer ao impulso que lança o homem no atraente vórtice do desconhecido. O seu papel é muito diferente. Ela abre os olhos à humanidade, dá-lhe o meio de conhecer o pouco que as sensações lhe trazem do mundo externo, permite que as sociedades futuras se estabeleçam em melhores condições de conforto e de progresso. Mas não pára aí a missão do espírito humano, cada vez mais insaciável na sua eterna aspiração para o ideal.

Então vem a arte efetuar a renúncia completa de tudo, absorver o indivíduo no seio do grande Inconsciente que o cerca, interpretando sublimemente o lado trágico da natureza que escapa aos acurados elementos da observação científica. Tudo na natureza, neste grande Todo divinizado de que nós próprios somos manifestações, provoca o nobre sentimento do belo, quando revelado ao homem por intermédio da arte. E a natureza é a paisagem, é o amor, é a beleza humana, é o brilho da mocidade, é a vasta gama dos sentimentos que ruge no mar tumultuoso do coração humano. Neste largo círculo de impressões, evolve-se o espírito do poeta, indo buscar, em tudo o que se lhe depara, a comoção estética, sempre nova nos mais velhos sujeitos, sempre livre nos mais ferrenhos moldes onde a queiram constringir as efêmeras escolas literárias. Admiremos o divino cismar dos poetas, mas não nos perturbemos com fórmulas preconcebidas, nem queiramos submeter à dosagem científica o pedaço de azul de que precisa a alma humana para fugir à esmagadora melancolia da vida.

Se, na sua inspiração, acontece à poesia encontrar um caminho já trilhado pela ciência, nada impede que ela o siga, e procure despertar no coração humano a centelha do sentimento artístico. Mas que o faça simples e serenamente, sem a forma rebarbativa da dissertação, pois, perdida a sua adorável ingenuidade, nada mais ela oferece capaz de comover.
Há espíritos literários a quem somente interessam as manifestações do belo existentes na natureza, e, ao contato das trivialidades da vida, perseguem, privilegiados, um ideal inacessível ao vulgo. Há outros a quem somente preocupam as manifestações dos fenômenos e suas leis, e, ao aspirarem o perfume de uma flor, pensam nas palavras de baixa latinidade que designam o seu gênero e a sua espécie na classificação de Lineu.

Há, porém, poetas que dominam o movimento científico da sua época e, cantando a natureza, não na podem deixar de considerar sob a feição de suas convicções filosóficas.
Há ainda homens de ciência, fortemente saturados de espírito literário, que não desdenham de praticar com as musas, sem destoar da gravidade exigida nos apóstolos da ciência experimental. Destes últimos foi um poderoso exemplo Francisco de Castro, o primoroso espírito a quem confiastes esta cadeira, e que não chegou a ser acolhido em vosso seio, como, por uma fatal coincidência, aconteceu depois a Martins Júnior, eleito para substituí-lo.

Professor brilhante, médico afamado, escritor científico de subido valor, era, a um tempo, versado humanista e orador eloqüente. O seu primeiro livro, um volume de poesias, mereceu um prefácio do glorioso poeta que nos dirige os trabalhos, este belo espírito que honra a nossa corporação a nossa cultura, a nossa nação, a nossa época, a nossa língua.
Não precisava Francisco de Castro fazer poesia científica, e muito menos apregoar que o fazia. Não podendo separar da sua qualidade de cientista a de poeta, deixava transparecer nos seus trabalhes científicos toda a poesia que lhe ia n’alma, e nas suas produções literárias toda a sua considerável erudição.

Mas os indivíduos são as mais sólidas demonstrações da fragilidade dos sistemas que defendem. Martins Júnior não podia escapar à regra geral, e em todos os seus livros de versos (esparsos em pequenas brochuras que devemos reunir em edição definitiva), ao lado das retumbantes apoteoses à ciência, lêem-se poesias repassadas do mais puro lirismo, onde melhor que nas outras brilhava a espontaneidade do seu estro.
Nesses versos, penetrados do mais límpido sentimento, foi que ele cantou os seus amores, as suas ambições, a embriaguez dos seus triunfos literários, as tristezas de sua viuvez. Só muito tempo depois, veio a publicar estas páginas íntimas, como para lhes evitar o contágio dos seus enfáticos poemas científicos. Nelas é que se revela o poeta, quando diz com desprendimento:

Se asas inda possuís, alma, podes abri-las,
Pela azúlea amplidão dos sonhos encantados,
Podes sorver a luz que reverdece os prados,
Podes mirar dos céus as rútilas pupilas.

A estes versos íntimos, não às solenes dissertações da Musa científica, era que se referia o poeta quando, no prefácio de um de seus livros, dizia:

Quando os cabelos brancos
Me vierem cercar com um resplendor de lua
A cabeça senil, infecunda, já nua
De idéias, de ilusões, de crenças, de esperanças,
Talvez que apenas seja em vós, doidas crianças,
Que eu encontre um regaço, um ninho imaculado
Onde vá repousar o coração chagado.

Pobre poeta! Não viu chegarem os cabelos brancos! Não conheceu o sereno repouso de uma larga e honesta velhice. Foi fulminado em plena pujança da vida, aos quarenta e dois anos, mas com o coração chagado, e a alma atravessada pelas mais cruéis desilusões.

Foi um espírito puro e altivo. Alma de poeta, atravessou a vida, néscio da arte sutil dos compromissos, ignorante da solerte ciência das transações. Eis porque, sendo um dos mais intransigentes propagandistas desta República que foi o ideal da sua mocidade, viu-a realizada sem que pudesse ocupar nela a posição a que lhe davam direito os seus serviços. Eterno sonhador, vivia a fantasiar teorias, enquanto outros, mais práticos, pleiteavam eleições e obtinham cargos importantes. De sonho em sonho, de decepção em decepção, passou pela política sem lograr outra coisa além de ser o último poeta da República, como lhe chamou Carlos Porto Carreiro, primoroso poeta pernambucano, da sua geração.

Permiti-me ainda uma recordação pessoal, que me assalta agora o espírito. No período da vida, em que ao despertar da adolescência, as leituras dos pensadores modernos me começavam a abalar as crenças infantis, encontrei-me uma vez com Martins Júnior, em um bilhar, onde o poeta me iniciava nos mistérios, sempre para mim insondáveis, da profunda arte das carambolas. Comuniquei-lhe as minhas angústias, desvendei-lhe os meus desfalecimentos, enquanto em marcha ascendente cresciam no marcador os pontos por ele feitos, em vergonhosa desproporção com os meus, apesar de todas as vantagens de um humilhante partido. Ao passo que assim me infligia uma formidável derrota, o poeta se animava. Cheio de fé no futuro, pintava o povo regenerado pela ciência, mostrava a República dominando o mundo dentro em poucos anos, e a humanidade, chegada a era definitiva da paz e do trabalho, em pleno reinado do estado positivo de Augusto Comte.

A sua palavra sonora acompanhada dos passos nervosos que dava pela sala, o seu corpo esguio deitado sobre a mesa do bilhar para melhor obter os efeitos, o seu olhar de míope aplicado em estudar de perto a posição das bolas, tudo contrastava pitorescamente o tom de grave convicção com que ele me procurava transmitir a confiança na vitória dos seus ideais. Ignoro o que então me ficou no espírito das lições do meu malogrado amigo. Não creio ter adquirido profundezas de filósofo. Sei, entretanto, que continuei a ser, até hoje, um péssimo jogador de bilhar. Não me lembra, porém; a figura de Martins Júnior, sem revê-lo em espírito, decidindo, entre duas carambolas, os mais altos problemas filosóficos e sociais, cheio da mais absoluta crença no futuro.

Como lhe seriam cruéis as desilusões, ao ver ainda hoje reproduzidas as cenas que ele tanto estigmatizava sob o regime decaído. Como lhe iria fundo o amargor na alma, ao compreender, finalmente, que os defeitos do caráter nacional se não removem com teorias nem com formas de governo, mas pela modificação lenta dos elementos da educação popular.
Desânimo, profundo desânimo, devia ser a sua impressão ao se sentir impotente para remediar os males de hoje. E a sua história é a de toda a nossa geração.

Entramos na vida com o entusiasmo de religionários de uma fé nova, acreditando que o velho mundo que víamos aluir seria presto substituído pelo que sonhavam as nossas ardentias. Chegados, porém, à idade madura, lançamos um olhar saudoso rara o passado que destruímos, e ruínas, somente ruínas, vemos em torno da nossa desolação.
Resignemo-nos, porém. Aos que tiveram a missão histórica de destruir não é dado presenciar a construção dos novos edifícios que se levantam, aproveitando para alicerces os materiais antigos.

A nossa época fez as mais terríveis e cruéis demolições.
Aluiu as majestosas basílicas das crenças religiosas. Fez reboar pelos recônditos desvãos das catedrais a fremente ousadia das suas negações.
Destruiu o velho ideal da humanidade soberba, cheia de vaidoso orgulho de ser a senhora da criação e o centro da vida universal. Despovoou os espaços das suas legiões mitológicas, para apresentar uma sombria e gélida imensidade que apavora o espírito ao peso do seu impenetrável mistério.

Derrocou os dogmas consagrados que faziam a felicidade dos povos, e tornavam fácil o governo pelo efeito mágico das palavras. A tese sedutora da soberania popular, a cuja sonora evocação se alimentaram tantos anos de liberalismo, o poderoso prestígio do capital sobre que estava arquitetada toda a organização econômica, a própria constituição da família que, de modo tão tocante, prendia ao amor as necessidades naturais da sociedade, tantas coisas que pareciam verdades eternas, são hoje postas em dúvida pelos implacáveis missionários da negação.

E nesta convulsão suprema, onde tudo parece ir naufragando em uma horrível voragem de ceticismo, que ideal, que princípio, apresentamos nós, os demolidores do passado, que possam consolar a atualidade da perda de suas mais caras ilusões? Nada – se olharmos para o presente. Tudo – se lançarmos as vistas para o futuro.

Compete às novas camadas a difícil missão de regenerar a humanidade sofredora. As nossas mesquinhas dissensões hão de desaparecer, as doutrinas que hoje damos como verdades assentadas hão de figurar como simples recordações históricas. A posteridade, porém, aproveitando dos nossos erros, corrigindo os excessos das nossas impaciências, dissipando os nossos temores, alcançará a época em que crenças mais consoladoras surgirão sobre os destroços das nossas dolorosas negações.

E porque muitos anos passarão ainda sobre a horrível anarquia em que nos debatemos, não nos será dado a nós contemplar de perto o advento da nova era. Preparemos, porém, a geração que ora surge para a decisiva função social que lhe está destinada. Perpetuemos nos filhos o sentimento da solidariedade humana, ensinando-lhes a zelar, como precioso patrimônio, as tradições dos antepassados. Inoculemos-lhes o austero sentimento da justiça, a nítida idéia da pátria, os nobres estímulos do caráter.

Cumprido este dever supremo, podemos desde já nos consolar, antevendo, nas frontes juvenis dos nossos descendentes, o longínquo despontar da aurora que surgirá no futuro.