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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afrânio Coutinho

Sr. Sergio Corrêa da Costa,
   
esta Academia é uma Companhia.

Claro que não possui o feitio, a estrutura e a finalidade daquela que o grande Santo Inácio de Loyola imaginou, como soldado que era, colocando, a serviço do Cristo, verdadeira milícia de combate para trazer ao bom caminho os que O haviam esquecido ou ainda não O conheciam.

A nossa Companhia é de paz, ou melhor, é também de combate, mas um combate paradoxalmente pacífico, porque a sua dinâmica atua exclusivamente no mundo do espírito. É uma ação pela Cultura, pela Literatura, pela Língua. A dos filhos de Santo Inácio também mobilizava, de outro modo os instrumentos espirituais, mas para a ação temporal. Tanto que dela nasceu uma nova fase histórica, hoje designada como a era barroca do século XVII. Da sua atuação, transformaram-se Artes e Letras, maneiras de pensar e sentir, de vestir e jardinar, de construir igrejas e outros monumentos arquitetônicos. Estava fadada a criar no Brasil um tipo de civilização cristã-comunitária, nos moldes da que vinham os jesuítas construindo nas Missões, não fora impedida pelo ciúme e falsa visão de estadista de um ferrenho marquês metido a iluminista. Possivelmente, diverso teria sido o nosso destino, não houvessem extinguido aquele exército de negras sotainas que
   
Do zimbório de Roma – a ventania
O bando dos apóstolos sacudia
Aos cerros do Brasil.

   
E que buscavam eles? Ouro, pedras preciosas, âmbar, cravo, como os ambiciosos colonizadores?
   
“Mentira”... respondia em voz canora o filho de Jesus...
“Pescadores... nós vamos no mar fundo
Pescar almas pra o Cristo em todo o mundo,
Com um anzol – a cruz! –”
   
O nosso bardo Castro Alves tinha a intuição dos gênios. Por isso, compreendeu o papel que tiveram em nossa terra os filhos de Santo Inácio.

Nossa Companhia tem esse nome, porque é constituída de companheiros. Somos companheiros uns dos outros pela existência. Sofremos e nos alegramos juntos. Aqui chegados, largamos na soleira as sandálias de nossas desavenças ou incompreensões ocasionais, em que a vida é fértil, e nos tornamos companheiros. Que quer isso dizer? As palavras companhia e companheiro originaram-se do latim compania que quer dizer acompanhar, formada de cum e panis, com pão, isto é, que “come pão com”, desenvolvida a expressão pelos soldados do Baixo Império. Aqui, nós, companheiros, tomamos “chá com”. De qualquer modo, somos, para a vida, compagnons de route.

Antes mesmo de aqui pousar, Sr. Sergio Corrêa da Costa, já éreis companheiro. Vosso temperamento, vosso comportamento, vossa atitude convivial, denotavam o vosso caráter de bom companheiro, e isso não passou despercebido à Instituição. A Academia Brasileira de Letras é dotada de um esprit de corps. Suas reações não são individuais, nenhum de seus membros é dono dela, nem abriga tal pretensão. O que a anima é um espírito coletivo, que existe independentemente dos seus componentes eventuais e momentâneos. Esse espírito é permanente. É invisível, impalpável.

Vossa conduta era de companheiro nosso antes de pensardes em bater à porta da Casa de Machado de Assis. Há um episódio de vossa vida bastante significativo. Vivíeis tranquilo a cultivar o vosso pomar, o doce lar que construístes ao lado dessa extraordinária companheira com que Deus vos premiou. O vosso pomar, como não podia deixar de ser, comunicava-se com uma floresta, a jangla feroz que é o nosso mundo. Certo dia, ao passardes por uma aleia mais solitária, ouvistes um gemido. Parastes a escutar melhor. O gemido repetia-se. Havia um desvão meio escondido atrás de uma soca de arbustos e dali partia o gemido. Aproximastes-vos com a cautela devida. E destes então com um vulto escuro. Era um leão. Restava estendido, com a cabeça encostada no chão, da qual escorria sangue. Receoso, foste-vos chegando aos poucos para perto. O leão parecia cego. Uma flecha incompetente vazara-lhe um olho. Mas a vida ainda não lhe fugira. Tomastes o ferido, inteiramente inerme e perdida a ferocidade natural, e o trouxestes para casa. Emprestastes-lhe todo o conforto e carinho, ajudando-o a sarar a ferida e reconquistar a visão. Até que um dia sentistes que não podíeis mais detê-lo, chamado pela floresta. Já sarado, o leão aguardou um momento propício, olhou-vos com a maior ternura, como a dizer-vos adeus e agradecer-vos, e penetrou matagal adentro. Vosso espírito de companheirismo estava satisfeito.
   
Sr. Sergio Corrêa da Costa,
   
a Cadeira que vindes ocupar em nossa Academia é a 7, que se inicia com um Patrono maravilhoso, o vate magnífico de “Vozes d’África”. Ela é marcada pelo signo nacionalista. A palavra de ordem herdada de vossos antecessores é que devemos ter orgulho de ser brasileiros. Com todos os defeitos que reconheçamos nele, construímos um País, uma civilização, nos trópicos, façanha inédita, a avaliarmos o grau de progresso que conseguimos. E fomos nós que a realizamos, nós brasileiros, a despeito do sistema colonialista a que ficamos subjugados por séculos. Não carece queixar-nos. Nenhuma nação da Europa teve as mãos limpas na vigência do pacto colonial, desde que o ímpeto renascentista, mudando a face do mundo, abriu os mares e plantou-as nas terras que descobriram. Mas isso já terminou. Não alimentemos ódios nem ressentimentos, mas tampouco sentimentalismos. Não se muda a evolução dos tempos. Não esqueçamos, contudo, que somos outra coisa, uma nova situação histórica, uma nova gente, uma nova era, olhando para o futuro e não virada para o passado, como a estátua de sal da Bíblia. Nossas raízes estão aqui fincadas no solo pelos nossos antepassados que, a despeito da mó colonial, abriram caminhos e estradas, fundaram vilas e cidades, construíram fazendas, descobriram minas, criaram a agricultura, cantaram os nossos feitos dos primeiros anos e diferenciaram da europeia a Língua Brasileira, que herdamos da portuguesa, do mesmo modo que portugueses, espanhóis, franceses, italianos fizeram com a latina, e os holandeses, com a alemã.

Como brasileiros, dotados de caráter e sensibilidade peculiares, vivendo costumes próprios, aqui por nós desenvolvidos e inovados, criando uma Música e uma Literatura, maneiras de fruir o lazer, nas praias e em nossas festas de arraial e igreja. Não abrimos mão das nossas peculiaridades, mesmo que isso implique prejuízos materiais. É que a vida de um povo não consiste somente em enriquecer e acumular poder. Há outras coisas que proporcionam felicidade, e, pobres como somos, e enfrentando séria crise no momento, é espantoso que realizemos, como assistimos anualmente, uma festa como o carnaval, divertimento mágico.

Além de tudo, não nos esqueçamos de que há algo muito precioso na curtição da Natureza e na sabedoria do amor e da amizade, que são características de nossa psique.

Sr. Sergio Corrêa da Costa,
   
escrevestes um belo livro sobre uma das figuras mais representativas do nosso espírito nacional, aquele marechal das nossas gloriosas Forças Armadas, que, ante a ameaça de lesão à nossa soberania, não ficou encucado e reagiu como devera, mostrando que, àquela altura, já havíamos concluído o processo de descolonização, processo este que estudei em livro recente no campo literário.

Vossos livros expressam a vossa dedicação à causa da Pátria, e esse princípio vos guiou desde o início de vossa vida. E, ao escolherdes a carreira diplomática, vosso espírito público, vossa inteligência e habilidade, vossa dedicação e competência sempre se fizeram presentes nas vossas providências e ações no estrangeiro, através de carreira notável, começada nos Estados Unidos e chegada, trinta anos após, ainda a Washington, depois das embaixadas de Londres e das Nações Unidas. E agora, nesse posto de grande relevo, seguis à risca os dois maiores guias e exemplos que vos sugere a legação em Washington: Joaquim Nabuco e Oswaldo Aranha, duas figuras excelsas da vida brasileira. Não terá sido por acaso que o destino vos colocou na família do grande estadista gaúcho, como a sugerir-vos, por gratíssima coincidência, os rumos que devíeis trilhar nas relações internacionais em defesa dos nossos problemas, na mesma Embaixada por ele regiamente exercida, em momento não menos difícil que o de nossos dias, Embaixada que está no centro de nossas relações internacionais.

Nesta Casa, paira também sobre vós a sombra augusta de vosso avô, o nosso poeta-filósofo Raimundo Correia.

Como vós, todos os vossos antecessores na Cadeira 7 pugnaram pela grandeza de nosso País: Castro Alves, o Patrono, deu-nos a autonomia de nossa linguagem lírica; Euclides da Cunha clamou contra o abandono em que foram deixados os nossos sertões isolados da influência civilizatória; Afrânio Peixoto pôs em relevo pelo Romance o contraste entre as áreas urbana e rural na mesma linha de pensamento pela valorização do interior esquecido desde a colônia; antes, Valentim Magalhães empenhara-se pelo desenvolvimento cultural, estimulando a agremiação dos homens de inteligência e a criação de órgãos literários; Afonso Pena era um esmiuçador do nosso passado cultural, e Hermes Lima, um gladiador pelo nosso futuro mediante transformações sociais necessárias à libertação das nossas raízes arcaicas e arcaizantes; Pontes de Miranda falou a favor do Brasil no estrangeiro, e Dinah Silveira de Queiroz escreveu uma obra de ficção toda ela refletindo a nossa gente, os nossos costumes, a nossa sensibilidade, a Língua Brasileira, tal como fazem nossos criadores de Literatura, consolidando a nossa Ficção e a nossa Poesia, colocando-as em lugares do mais alto relevo pela originalidade e peculiaridade e dando continuidade à tradição criada pelos nossos Gregório de Matos e Antônio Vieira, os dois grandes brasileiros que, ao lado de Anchieta, deram início às nossas Letras, com um sentimento de autonomia, que, na palavra barroca de ambos, foi o nosso primeiro brado de protesto e reivindicação espiritual autonômica e nativista.

Como historiador, vindes ao nosso meio sobraçando, entre outros trabalhos, dois livros nacionalistas. Um acerca de D. Pedro I, o implantador de nossa Independência, em 1822, contra a vontade das câmaras de Lisboa, e o outro sobre Floriano Peixoto, o consolidador da República, esta que constituiu a nossa verdadeira independência, pois o século XIX, entre nós, permanece um século português, com laços muito fortes, de todo tipo, ainda nos prendendo ao antigo sistema. Gilberto Amado deixou-nos uma afirmação de extrema argúcia: a República é que teve capacidade de criar Brasil dentro do Brasil.

Esses dois livros são de excelente teor historiográfico: As Quatro Coroas de D. Pedro I e A Diplomacia do Marechal, o primeiro de 1941, tínheis vinte anos, o segundo de 1945, são obras que revelam um espírito preocupado em realçar os trabalhos de homens de Estado construtores da nossa independência.

Vosso gosto e preferência historiográfica, ao lado do trabalho de pesquisa em arquivos e publicações de documentos, tarefa importante e indispensável, vos conduz para compor sínteses de épocas centradas em torno de figuras que buscaram dirigir o País para a consolidação de sua identidade nacional, como Pedro I e Floriano, em duas fases críticas e decisivas de nosso passado, momento em que se operaram profundas mutações históricas, quando o País mostrou sua vontade de abandonar uma fachada de aparência para encarar a realidade concreta e modernizar-se.

Três faces caracterizam a vossa obra de historiador: a paixão documental, a ideia de síntese e a interpretação da história viva, de ação e combate.

A Historiografia Moderna surgiu na França na década de 30 e mudou completamente a concepção e orientação de escrever História desde que Marc Bloch, Lucien Febvre e Henri Berr conceberam a revista Les Annales e aplicaram a Teoria da Síntese Histórica na grande coleção de cem volumes de L’Evolution de L’Humanité. Daí surgiu a Nouvelle Histoire à qual estão ligados nomes de notáveis historiadores como Emmanuel Le Roy Ladurie, Georges Duby, Jacques Le Goff, Marc Ferro e Fernand Braudel, este último autor do extraordinário livro sobre O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II, das maiores obras de História jamais escritas e que tanta ajuda nos fornece para a compreensão da Península Ibérica. Essa “História nova”, ciência moderna, revolucionou, nas últimas décadas, a metodologia histórica tradicional. Se ela exige uma reflexão teórica, no dizer de Jacques Le Goff, não se submete a nenhuma ideologia. “Ela afirma, ao contrário, a fecundidade das abordagens múltiplas, a pluralidade dos sistemas de explicação, além da unidade problemática. Ela é uma História escrita por homens livres para homens livres ou em busca da liberdade a serviço dos homens em sociedade”, arremata o historiador francês.

Não hesito em enquadrar as vossas duas obras principais, sobre D. Pedro I e o Marechal de Ferro, nos moldes da nova História, tal como descrita no dicionário La Nouvelle Histoire, volume das Encyclopédies du Savoir Moderne.

Vossa preocupação, como disse, dirige-se em três rumos: o documental, a síntese, a ação.

O livro sobre Floriano Peixoto é obra de síntese magistral. É de admirar o vosso instinto de pesquisador do documento certo no arquivo certo. Daí a riqueza documental que exibis. O mesmo pendor vos leva a enxergar no acontecimento o entrechoque dos fatores econômicos, políticos, psicológicos, e o digladiar de correntes nacionais e internacionais. Tratando da diplomacia no governo de Floriano Peixoto, não escrevestes um livro seco de discussões diplomáticas. Vossa perspicácia não perde de vista as correntes subterrâneas e o conflito dos interesses que procuram sobrepor-se às razões nacionais. O que, acima de tudo, perseguis é o interesse nacional, é o pensamento do Brasil. Daí que conseguis uma visão global, sintética, dos acontecimentos, acima dos quais pairam as figuras poderosas, muito brasileiras, de Pedro I e Floriano Peixoto. Além do mais não desprezais os canais literários da boa escritura, do estilo, da capacidade narrativa para a ressurreição do passado e do registro dramático dos acontecimentos.

À luz da vossa mestria na arte de Plutarco e La Bruyère, em que a análise psicológica surge do pano de fundo dos acontecimentos, três personagens ressaltam de vossa pena no primeiro livro: Floriano, Saldanha da Gama e Salvador de Mendonça.

Embora situados em posições opostas, Floriano e Saldanha assumem porte de grandeza que o vosso pincel traça com a força dos grandes retratistas da história literária. Floriano é a consolidação das novas instituições, que defende com astúcia, bravura, firmeza, autoconfiança, dignidade, visão clara do que representava melhor o ponto de vista do País. Enfermiço, frágil e esquivo, como dizeis, defende-se da mão armada dos adversários sem contar a princípio com os meios bélicos necessários a enfrentá-los, recursos que só no decorrer dos meses vai improvisando contra a parte da Armada em rebelião. Mas suas táticas, seu pulso de ferro, sua resistência moral, sua autoridade e austeridade conseguem levar de vencida a provocação e o desafio de Custódio de Melo e Saldanha da Gama, merecendo “o reconhecimento e o orgulho da Pátria”. São vossas estas palavras. Do outro lado, é Saldanha a figura que se agiganta da neutralidade e hesitações iniciais até a morte solitária, melancolicamente, em combate, nas mãos de um lanceiro numa grota da fronteira do Rio Grande com o Uruguai, depois de se haver revelado com atos de incrível bravura na Guerra do Paraguai. A Pátria venera esses dois heróis das suas forças militares de terra e mar.

Idealista, inconformado com o curso que tomara a História do País, Saldanha entrou na luta, assim que percebeu chegado o momento azado para tentar a restauração monárquica do agrado de uma corrente da opinião pública e política.

O terceiro personagem que se destaca é o nosso embaixador em Washington, Salvador de Mendonça. À sua capacidade diplomática, à sua paciência e pertinácia, deve o Brasil ter-se resguardado de intromissões alienígenas para a debelação da revolta, sem quebra da soberania nacional, inclusive evitando a declaração da beligerância para os revoltosos, e que, apesar da intensidade da arrogância estrangeira, logrou ganhar a batalha diplomática. A figura de vosso antecessor em Washington ressalta com toda inteireza e justiça. Para honra nossa, ele também pertenceu a esta Casa.

Cabe aqui registrar o papel do Conde do Paço D’Arcos, embaixador de Sua Majestade Fidelíssima o Rei de Portugal. Em meio à confusão reinante no Rio de Janeiro e, sobretudo, na baía da Guanabara, pela presença da frota rebelada e de navios mercantes e de guerra de outras nações, que se arvoravam a interferir no conflito sob o argumento de defesa dos nacionais de suas respectivas pátrias, entre o Rio de Janeiro e Petrópolis, onde residiam quase todos os diplomatas fugindo à febre amarela, o conde luso, irrequieto, com sua inexperiência diplomática, sua impertinência e suas artimanhas, querendo influir na vida interna do País, criou tal estado de insatisfação no Governo, que acabou pondo termo às relações diplomáticas entre Portugal e o Brasil. O Visconde de Cabo Frio, diretor-geral do Ministério das Relações Exteriores na época, segundo correspondência de Paço D’Arcos, teria até grande má vontade contra Portugal, o qual, como comenta o diplomata português, “ele, visconde, supõe sempre disposto a desfrutá-lo como se ainda fosse a sua antiga colônia!”. A saída de Paço D’Arcos foi pedida pelo Governo brasileiro porque, segundo ainda outra correspondência oficial por vós transcrita, ele se envolvia “abertamente na Política Brasileira, de modo a tornar-se incompatível com o Exm.º Sr. Vice-Presidente da República”, isto é, Floriano Peixoto.

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Vossa exímia arte de pintar retratos já havia dado demonstração cabal, em relação a D. Pedro I e às duas imperatrizes, D. Leopoldina e D. Amélia. No Augusto Fundador do Império, com o vosso seguro conhecimento histórico, apontais o homem extraordinário, o Rei Cavaleiro, na definição do nosso Pedro Calmon, o soberano sereno, generoso, magnânimo, em reação, sem hesitações, contra a prepotência das cortes de Lisboa inconformadas com o ato de 1815, de D. João VI, ao criar o Reino Unido. Discutis e argumentais muito bem com os fatos. Eram o valor, a lealdade do Príncipe para com o povo brasileiro, que ele queria retirar da situação colonial, quando não nos era permitido nem importar livros nem montar tipografias, cujo ouro e produtos agrícolas é que sustentavam o consumo da Metrópole, inteiramente dependente da Colônia, e, por isso, em luta pela recolonização. Traduzis com muito conhecimento de causa o que pensavam de nós na Europa: “O Brasil não passava de uma colônia longínqua, povoada por gente de várias cores, sem conforto, sem civilização.” D. Pedro, entretanto, recusou a oferta de coroas europeias para permanecer ao lado do povo que nele depositava total confiança e que o aclamaria seu Defensor Perpétuo. Corajoso, bravo, intimorato D. Pedro! Jamais seria a sua teimosia perdoada pela Metrópole, pois àquela “existência tormentosa e romanesca”, para repetir as vossas palavras, foi negado até um funeral de rei, e só mesmo o carinho da filha Maria da Glória é que colocaria sobre o peito do moribundo a Grã-cruz da Ordem da Torre e Espada, conquistada por bravura, valor e lealdade.

Enlaçada ao retrato do rei, vossa página sobre as duas esposas é uma miniatura de singela beleza, que põe em evidência a ventura que teve o rei soldado, a primeira esposa ajudando-o na campanha da Independência, a segunda animando-o nas lutas liberais da Península. E ele cresce na vossa pena e a vossos olhos ao lado dessas duas heroínas. Do Imperador, disse Osvaldo Aranha palavras esplêndidas:
   
Apesar da elevação moral e do patriotismo com que o filho, o segundo Pedro, veio a governar o Brasil durante quase meio século, é na juventude impetuosa do pai que sentimos palpitar qualquer coisa de adolescente e inquieto que ainda hoje acentua o retrato psicológico da nossa Nação [...] D. Pedro I esse, como que nasceu da própria natureza brasileira; refletiu numa certa desordem de vida (que jamais quebrou a dignidade fundamental do seu caráter) as quedas, os arrancos, as improvisações ambientais. A identificação do seu temperamento com o temperamento do povo que o rodeava é que o torna tão vivo diante dos nossos olhos. [...] Não sei quê do seu sangue palpita no nosso sangue,
   
conclui Osvaldo Aranha que está presente aqui no regozijo de seus filhos por vossa glorificação.

Essa mesma tendência nacionalizante pode-se apontar na evolução de nossa Literatura, criando o que chamei “a tradição afortunada”, em livro deste título. Desde Anchieta, Gregório e Vieira, essa tradição existiu, embora até o século XIX sufocada pelo arrocho colonialista. Mas ela evoluiu firme, através da História, mediante o esforço intelectual de homens de gênio, como os referidos e mais um José de Alencar, um Castro Alves, um Araripe Júnior, um Sílvio Romero, um Raul Pompeia, um Machado de Assis, até consolidar-se com os modernistas, em verdadeira linhagem nacionalista a que se deve hoje em dia possuirmos uma Literatura que se iguala com as maiores do mundo. Essa Literatura, junto da Música Popular, do carnaval, do futebol e da religiosidade popular são o que de mais autêntico surge da alma do homem brasileiro, esse mestiço de sangue ou cultura.
   
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Esta Academia, Sr. Embaixador, tem laços muito fortes com a História que cultivais e com a Diplomacia, pela qual servis o nosso Brasil, procurando lá fora engrandecer o seu nome, a sua civilização, a sua Cultura.

Pela sua índole e formação, nossa Instituição não é apenas constituída de homens de Letras no sentido estrito, isto é, de romancistas, poetas, cronistas e críticos. Como a Academia Francesa, seu ilustrado modelo, assentam-se nas suas Poltronas homens de Letras em sentido lato, homens de cultura, expoentes nas várias atividades do espírito. Grandes médicos, grandes eruditos, grandes historiadores, grandes jurisconsultos, grandes sacerdotes, grandes cientistas, grandes jornalistas, grandes militares, grandes educadores e tantos outros. No discurso inaugural da Academia, Joaquim Nabuco bem caracterizou essa condição peculiar com a sua palavra bela e eloquente. E Afrânio Peixoto costumava salientar a necessidade de a Academia possuir como seus membros um mínimo de dez acadêmicos estranhos às atividades puramente literárias. Disso decorria o prestígio de que desfruta.

Desde os Patronos João Francisco Lisboa e Varnhagen que a Historiografia é representada na Academia: Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Afonso Taunay, Rocha Pombo, Roberto Simonsen, Gustavo Barroso, Luís Edmundo, Paulo Setúbal, Viriato Correia, Rodolfo Garcia, João Ribeiro, Ramiz Galvão, sem falar em memorialistas e biógrafos. Agora mesmo aqui estão Pedro Calmon, Luís Viana Filho, Américo Jacobina Lacombe, José Honório Rodrigues, Afonso Arinos. Recusou-se a pertencer ao quadro dos fundadores Capistrano de Abreu, o grande mestre da nossa Historiografia, porque, na sua alegação de casmurro iluminado, só pertencia a uma sociedade, o gênero humano, assim mesmo porque não havia sido consultado.

Tendo existido a diplomacia desde a Grécia, E17:13 18/4/2012gito, Roma, Assíria, Florença e no mundo moderno, por que também não teria entrada nas Academias? Não há incompatibilidade entre as duas atividades de escritor e diplomata. E, em nossa Casa, tivemos o Barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco, Domício da Gama, Oliveira Lima, Luís Guimarães Filho, Luís Guimarães Júnior, Magalhães de Azeredo, Salvador de Mendonça, Graça Aranha, João Neves da Fontoura, Hélio Lobo, Gilberto Amado, Osvaldo Orico, Pontes de Miranda, Paulo Carneiro, Ribeiro Couto, Guimarães Rosa, diplomatas escritores ou escritores diplomatas, e o fato repete-se em nossos dias, com João Cabral de Melo Neto e José Guilherme Merquior. A vossa admissão aos nossos quadros vem premiar um diplomata brilhante, eficiente, capaz, uma personalidade humana cujo convívio é enriquecedor, e isso importa sobremaneira à Academia. Vindes acrescentar-nos com os vossos dotes superiores de espírito, a vossa formação moral e a vossa cultura. Será para nós um orgulho a vossa companhia.

Graças a esses dons de vossa pessoa chegastes à Academia Brasileira de Letras ao mesmo tempo em que ao mais importante posto da nossa diplomacia. Em Washington, tereis fartas oportunidades de elevar o nosso País, ajudando o nosso Governo a resolver a crise profunda que abala os alicerces de nossa estrutura econômica e social. A vossa marca é de um historiador atuante, vale dizer de um historiador para quem a História não é coisa morta, mas um instrumento de combate pelo presente e pelo futuro à luz da interpretação do passado. A escolha de vossos temas e o tratamento que lhes destes mostra bem a vossa garra. Essa mesma virtude se evidencia no diplomata.

O que temos diante de nós, Sr. Embaixador, é um desafio. O Brasil necessita de todos os brasileiros, pequenos e grandes, sobretudo dos que, pelos acasos da vida, ocupam os postos de elite dirigente e se devem empenhar para vencermos as dificuldades presentes e entrarmos em dias melhores, dominando as nossas mazelas, herança de uma colonização espoliativa, predatória e obscurantista. Crescemos ao léu, sem qualquer planificação, sem instrução, a não ser a ministrada pelos jesuítas, sem educação superior universitária, sem imprensa, os nossos produtos pilhados – o pau-brasil e outras madeiras de lei consumidos pela Europa inteira com benefício de intermediários espertos, e assim o açúcar, as pedras preciosas, o ouro, tudo o que só aproveitava ao estrangeiro. Não logramos fazer do Brasil um País para nós mesmos, como conseguiram os norte-americanos, cuja população é dividida em duas partes – uma que produz e vende, a outra que compra e consome. E todos vivem felizes, numa sociedade socialista como jamais houve igual no mundo. E isso graças à existência de um mercado interno que não nos deram chance de criar. Ao contrário, entre nós, uma economia baseada no trabalho escravo, deu lugar a uma falsa elite, passageira, ociosa, sem o gosto do trabalho, que se banqueteava em tablado podre, exibindo os adereços e até os alimentos importados. Pela ausência de ensino generalizado e superior, não desenvolvemos um padrão de competência em nossos homens – nas áreas públicas e particulares. Enquanto a população era pequena, íamos caminhando ao deus-dará, e assim o País cresceu. De repente, a explosão demográfica passou a exigir um sentido técnico para todas as atividades, daí o colapso inevitável. Feita no papel, improvisada e atrasada, nossa Universidade não tem condições de socorrer o País com pessoal técnico, especializado, competente, que cobrisse as necessidades das várias classes – do mecânico ao engenheiro, do enfermeiro ao médico, do bancário ao funcionário público, do agricultor ao industrial.

Somos um País surrealista, imprevisível, ilógico, no qual tudo acontece menos o óbvio, como disse muito bem Carlos Drummond de Andrade, o vate que nos honra em ser nosso contemporâneo.

E, no entanto, o País merece, pois é ocupado por um povo alegre, sensível, imaginativo, criativo, de boa índole, inteligente, hábil, embora com uma parte vasta – cerca de oitenta por cento – vivendo uma situação subumana, semiprimitiva, conforme a retratou o pincel mágico de Portinari, e cujos vícios lhe foram comunicados e impingidos pelo sistema de séculos de erros acumulados.

O quadro é desalentador, mas não devemos desanimar nem perder a esperança. Países europeus que hoje ostentam um nível alto de civilização, quando tinham quatro séculos de vida, que exibiam? Salteadores nas estradas, candidatos ambiciosos ao trono que assassinavam os legítimos herdeiros para abocanhar o poder, rainhas que financiavam e transavam a pirataria nos mares e uma vida social nem sempre animada por bons padrões morais, sem falar num clero vicioso e parasita. Em verdade, cinco séculos são quase nada na vida de uma nação. Embora não tenhamos completado a nossa, e uma nação nunca se completa, muito já fizemos e por nós mesmos. Aqui existe realmente um mundo novo.

Não percamos a fé. Nesta Casa ilustre de Cultura, procuramos dar o bom exemplo pelo labor continuado em prol do País.
   
Sr. Sergio Corrêa da Costa,
   
pelo vosso valor e pela tradição da Casa de Machado de Assis, esta Poltrona há muito já era vossa. Aqui estamos para vos aplaudir e bem receber-vos em nosso ameno convívio.

14/6/1984