Senhor Otto Lara Resende,
Não creio que na história da Academia Brasileira haja muitos precedentes para a situação em que me encontro, neste momento em que tenho a honra e a alegria de saudar-vos. Na verdade, em duas cartas prementes, concitais-me “a deixar o novo acadêmico o mais possível de lado e, pretexto dele, que não tem nenhuma importância (sic), partir para um pronunciamento”; urgis que vos “deixe na confortável sombra”, sob o especioso pretexto de que sois asmático e clamais “não, não, não abrir uma luz em cima” de vós, mas “contribuir para um pronunciamento que, vossa pessoa à parte, possa ter sentido e atualidade”. Enleado por instâncias tão desusadas quão surpreendentes, o pobre orador se veria na contingência singularíssima de, ao receber Otto Lara Resende na Academia, não falar em Otto Lara Resende! E tão descomedido arranjo em nome de quê? Em nome de algo a que denominais enigmaticamente “o bom senso”.
O possível espanto provocado pelo choque entre causa e efeito, ou seja, a invocação do bom senso como origem de sugestão aparentemente insensata merece decifração que a situe no austero e proclamado quadro da normalidade mineira.
Há muitos anos, em artigo para os Diários Associados, sob o título “Minas e o Bom Senso”, eu já procurava desmitificar o famoso equilíbrio dos montanheses. O artigo fez, obviamente, as delícias do diretor Assis Chateaubriand, que nele se sentiu justificado e compreendido. Hoje tentarei levar um pouco adiante a pesquisa esboçada naquele escrito de mocidade.
Nosso Mestre Aurélio, como sempre exato e próvido, auxilia a tarefa, ao mostrar a diferença entre bom senso e senso comum. O bom senso é a faculdade intuitiva de distinguir entre o verdadeiro e o falso, enquanto o senso comum não passa da submissão às opiniões predominantes em determinada época. Donde se conclui que aquilo que ofende o senso comum pode muito bem não violentar o bom senso. Essa explicação semântica que, espero, terá a aprovação de Antônio Houaiss, desmancha a contradição, para tantos marcante, na psicologia social dos mineiros. De um lado a prudência, a moderação, a reserva, o espírito conciliador, a fala matizada, a poupança e a matreirice do povo. Do outro lado a garrulice, o ímpeto, a inovação, a leviandade criadora boquirrota dos seus líderes mais representativos.
O Tiradentes pregou a Independência e a República às escâncaras, pelas ruas do Rio, pelas estradas da Mantiqueira, pelas ladeiras de Vila Rica, a ponto de afugentar interlocutores cautelosos. O Aleijadinho, segundo seu primeiro biógrafo, Rodrigo Bretas, era homem de “fala arrebatada e gênio agastado... intolerante e mesmo iroso”, o que não impediu aquele Vulcano convulso e disforme de dominar sempre seu gênio pela continuidade isenta da criação. Bernardo de Vasconcelos, depois de comandar a insurreição parlamentar liberal, tomou subitamente as rédeas do carro do “regresso”, lançando as bases do Partido Conservador. Teófilo Otoni, capitão da liberdade em 1842, saiu da prisão para lançar-se à conquista das selvas do Rio Doce e às benesses da rusticidade pacífica. Cesário Alvim, na casa dos trinta anos, atirou-se como “um torpedo” (a expressão é de Joaquim Nabuco) contra Cotegipe, a quem acusa de contrabandista. Na casa dos cinquenta, rompeu com o seu próprio Partido Liberal e aderiu à República, no dia mesmo em que os liberais chegavam ao poder com o Visconde de Ouro Preto. João Pinheiro, fundador do Partido Republicano e constituinte da República, recolheu-se, antes dos quarenta anos, à sua olaria de Caeté, desgostoso com um país onde “se cultiva a política pela política, na triste alternativa da demagogia sem fundo e do despotismo sem freio”. Juscelino Kubitschek, entre valsas e serenatas, viveu uma das mais estranhas aventuras pessoais no nosso século, ao realizar no Planalto aquilo que Otoni tentara nas florestas. Carlos Chagas intuiu a ligação entre a criança enferma, a casa de barro e o inseto doméstico e, confundindo o conservadorismo científico, iluminou a origem social da doença incurável de milhões de brasileiros. Nas Letras, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava, para só citar amigos e companheiros de geração, domaram as rebeldes palavras e revelaram novos caminhos para a exploração do mundo interior.
Desde muito tempo, o mineiro, como tipo humano, atraiu mais a atenção dos observadores do que a terra de Minas. Antes da Inconfidência, Martinho de Melo e Castro, poderoso Secretário da Marinha e Ultramar, escrevia o seguinte nas instruções dadas ao Governador Visconde de Barbacena: “Entre todos os povos de que se compõem as Capitanias do Brasil, nenhuns talvez custaram mais a se sujeitar e reduzir à devida obediência [...] como foram os de Minas Gerais.” Antes da Independência, José Bonifácio escrevia ao Príncipe D. Pedro, de partida para Minas:
Não se fie V.A.R. em tudo o que lhe disseram os mineiros, pois passam no Brasil pelos mais finos e trapaceiros do Universo, fazem do preto branco, mormente nas atuais circunstâncias em que pretendem mercês e cargos públicos e outros deitar poeira aos olhos de V.A.R. para se livrarem dos crimes e atentados que cometeram.
Mas o severo julgamento do Andrada não correspondia à opinião de outro sábio naturalista como ele, Saint-Hilaire, que assim se refere ao caráter dos montanheses:
Nenhum povo tem, mais que os mineiros, tendência à religião sem fanatismo. Ao mesmo tempo espirituais e refletidos, são levados naturalmente aos graves pensamentos. Sua vida e seu caráter os dispõem a uma doce religiosidade. Os mineiros, em geral, são bem dotados pela Providência: que lhes deem boas instituições e tudo se poderá esperar deles.
O Reverendo Walsh, pastor anglicano, capelão do embaixador inglês Visconde de Strangford, visitou Minas no fim do Primeiro Reinado. Em seu livro disse que os mineiros “tinham entrado com entusiasmo no processo da Independência; agora eram firmes adeptos do sistema constitucional, mas contrários aos extremos opostos da anarquia e do despotismo”. Francisco Otaviano estampou no Correio Mercantil do Rio a mais célebre página até hoje escrita sobre os serranos, na qual endereçava velado apelo dos liberais a Teófilo Otoni. Esta página foi reproduzida por Afonso Celso na Tribuna Liberal, a 29 de maio de 1889, dia seguinte ao da morte de Otaviano e uma semana antes que o pai de Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto, chegasse ao poder chefiando o último gabinete do Império. A republicação foi um segundo apelo, não mais a Teófilo Otoni, que já morrera, mas a Ouro Preto, para que viesse salvar a Monarquia dentro da liberdade. Infelizmente, era tarde demais.
Pedro Nava e eu, alunos do Internato Pedro II, líamos, comovidos, a exortação inserta na Antologia Nacional, preparada pelo nosso Diretor Carlos de Laet:
Estrela brihante do Sul, formosa Província de Minas, porque desmaias no azul da nossa Pátria, quando ela precisa que cintiles com toda tua pureza antiga? [...] Tu que tiveste por largo tempo a primazia no paço dos césares e nos comícios do povo, por que aniquilas, na indiferença e no desânimo?
Hoje os mineiros, nos seus cautos conciliábulos, relembram, como se fossem cicatrizes de agora, as frases denunciadoras do grande jornalista:
Onde estão os teus filhos? A terra em que eles nascem já não tem força para produzir esses gigantes [...] que escalaram o Olimpo da Monarquia absoluta? [...] A lousa do túmulo caiu sobre o cadáver de alguns, a mão de ferro do ostracismo comprimiu a garganta dos outros. [...] Formosa Província de Minas, surge, surge; não te é lícito tão longo repouso. Já dizem os cortesãos, com insultante sarcasmo, que a soberba mãe dos Gracos, depois de resistir, corajosa, à violência brutal, estendeu os pulsos às cordas de seda da Hipocrisia.
Suspendei o manto diáfano da retórica romântica e tereis a nudez forte da verdade.
A atenção para com os mineiros, por parte dos mais qualificados observadores, prosseguiu tempo em fora. Em 1940, meu saudoso amigo Miran de Barros Latif publicava o injustamente esquecido As Minas Gerais, no qual acentua a esquivança atuante do mineiro, nele relembrando a quadrilha popular:
Minha gente eu vou-me embora
Mineiro está me chamando
Mineiro tem este jeito
Chama a gente e vai andando.
Miran observa ainda:
A Província de Minas Gerais fecha-se assim num regime autárquico e isola, em suas montanhas, o único tipo brasileiro realmente montanhês, diferente do nordestino, do homem da orla litorânea de Pernambuco ao Rio de Janeiro, ou do homem do Sul de São Paulo ao extremo Rio Grande.
Alceu Amoroso Lima, nosso venerado decano e mestre, no seu clássico Voz de Minas, publicado em 1944, traça uma síntese iluminante do cárater mineiro, na qual procura mostrar que os defeitos e as qualidades não se contradizem, antes constituem traços complementares de uma só fisionomia: desconfiança e modéstia, pessimismo e ironia, rotina e tradição, suscetibilidade e recato, timidez e pudor, conformismo e tendência à estabilidade.
Em 1954, Rubem Braga descreveu e observou o convívio quase maçônico dos mineiros do Rio:
Os mineiros, eu conheço os mineiros. É de vê-los, os mineiros, quando uma tarde se telefonam. [...] Durante dois, três dias, sempre que se encontram na rua ou em um bar, se detêm um instante, como duas formigas que se cumprimentam e anunciam [...] às vezes vem Milton, às vezes vem Abgar e sinto que Rodrigo telefone a Afonso e a Drummond. Ainda não me expliquei. [...] Uma vez estava presente, mas, de súbito, compreendi que se ia realizar um rito exclusivamente mineiro e achei melhor me retirar. Eles ficaram sussurrando.
Nossa irmã mais moça, Rachel de Queiroz, destacou em uma das suas crônicas escolhidas: “Louve-se nos mineiros, em primeiro lugar, a sua presença suave. [...] Não gritam, não empuram, não seguram o braço da gente. [...] não têm arroubos nem arrogâncias.”
Ouçamos a palavra de um paulista de Guaratinguetá, Francisco de Assis Barbosa, que traz o sangue dos desbravadores, daqueles que partiam da antiga Vila das Graças Brancas à beira do Paraíba, para cruzarem a garganta fronteira do Embaú, na Mantiqueira, rumo aos sertões das Gerais. Analisando as doutrinas econômicas de João Pinheiro, Chico Barbosa encontra nelas uma espécie de neocapitalismo, mas, diz ele, “com o toque demoliberal, respeitando o poder público, como coisa sagrada, a liberdade”. Este rumo mereceu a concordância do nosso companheiro, o severo historiador José Honório Rodrigues, em recente comunicação à Academia.
Para encerrar a série, lembrarei a observação recente de um escritor da nova geração, Léo Gilson Ribeiro, a propósito de vossa eleição para esta Academia:
O mineiro é o mais genuinamente barroco de todos os brasileiros. [...] Barroco é uma denominação por si só dúbia porque, se significa, por um lado, interiorização mítica ou filosófica, reflexão humanística sobre a vida e a morte, por outro lado significa igualmente esplendor incontido, renovação revolucionária, insubordinação.
Esta posição equilibrada e advertida do pensar e do sentir dos mineiros mantém-se em face dos problemas do Brasil atual. A turbulência recente de Minas não é subversiva, mas expressiva de uma realidade econômico-social que é nacional. Na verdade, Minas tem sido, desde o século XVI, o ponto de convergência e choque entre os caudais da civilização brasileira, tanto no sentido material, quanto no cultural. A originalidade mineira é não ser original, é constituir a sua formação amálgama ou fusão das várias formas de ser nacionais. Por isso Minas apresenta, mais nitidamente talvez que outros Estados, o conflito entre uma industrialização avançada e uma estrutura agrária retrógrada. Cidades apressadas e campos modorrentos, umas e outros sem bases sociais estáveis, pelo excesso de pressa e excesso de modorra. O urbanismo industrial não consegue absorver o desajustamento do interior, que se desloca para os centros populosos. É mais fácil manter-se o conformismo nas regiões niveladamente atrasadas do que naquelas, como Minas, contraditoriamente desenvolvidas. Esses altos e baixos mineiros são como as suas montanhas. Tornam mais agros os caminhos do que os das planícies. O protesto mineiro está na tradição da sua gente. É a identificação da injustiça, sob a máscara da desigualdade. É a tradição alvissareira e indicadora, que já se encontra em Bernardo de Vasconcelos, ao dizer que as reformas políticas são inseparáveis das reformas sociais. Alceu Amoroso Lima, em artigo sobre o que ele chamou “As duas Minas”, viu, com seus claros olhos, a permanência de uma posição que já identificara no livro clássico que foi citado. Nosso mestre Alceu mostrou, mais uma vez, que só existe ordem onde há liberdade, mas também só existe liberdade onde há ordem. A libertação é uma fase de reconstrução da ordem, pela reconquista da liberdade.
Teófilo Otoni, quando pendurou a clavina liberal para lançar-se na aventura da Nova Filadélfia; João Pinheiro, quando reclamou o desenvolvimento econômico e social fora da anarquia e do despotismo; Juscelino Kubitschek, quando lançou as bases da grande indústria e descerrou as cortinas do Planalto, nunca aceitaram a desordem nem aplicaram a opressão.
O humanismo mineiro tem a sua parte espiritual nas Letras e nas Artes, mas tem a parte social no amor dos homens, decorrência necessária do amor de Deus. A abrangência cultural e religiosa desse humanismo social liberta a grande maioria dos mineiros da prisão, ao mesmo tempo materialista e utópica, do marxismo. Como disse Saint-Hilaire, os mineiros, mesmo quando não têm fé, são portadores de uma religiosidade que os leva aos graves pensamentos. Essa linha de humanismo social se compõe com a posição da Igreja Católica. A frase segundo a qual a religião é o ópio do povo, já era uma frase quando proferida, mas transformou-se em tolice. A religiosidade mineira, a que se referiu Saint-Hilaire, deve contribuir para fazer de Minas a região onde, provavelmente mais esperanças se acendam em favor da justiça social sem ideologia política. Note-se que religiosidade pode ser independente de religião. É uma espécie de emanação cultural da fé, mas não a pressupõe. Entretanto, a “brilhante estrela do Sul” se encontra agora desmaiada, como no artigo de Francisco Otaviano. Seus líderes, como proclamava a chamada “pena de ouro do Império”, ou descansam sob a lousa dos túmulos, ou calam-se pelo ostracismo imposto de fora. É natural que, em resultado dessa longa imposição do autoritarismo contra a formação espontânea de líderes mineiros, eles não aparecem, em termos de confiança popular, embora devam existir, em termos de qualificação pessoal. As turbulências democráticas costumam ser enfrentadas com êxito por líderes democráticos. Mas estes só se formam democraticamente. Na ausência deles, ou dessa formação, é natural que as multidões encham as praças públicas de Minas – a praça é do povo, já dizia Castro Alves – para dar ressonância direta às advertências, denúncias, reclamos e presságios.
Tudo o que procuramos reunir, com base em impressões de não mineiros, sobre a psicologia social destes, mostra que as expansões de há pouco nada indicam de que possa causar surpresa.
Sr. Otto Lara Resende,
Se me demorei, talvez mais que devia, em falar da nossa gente, não foi por qualquer espírito provinciano que, de resto, estou longe de condenar. Bernardo de Vasconcelos já dizia, na sua Carta aos Senhores Eleitores da Província de Minas Gerais: “Eu tenho provincialismo, não o nego [...] E poderá haver patriotismo sem provincialismo?” A intenção deste vosso colega foi de cumprir seu dever acadêmico, sem esquecer vossas instruções, ou seja, saudar-vos, tanto quanto possível como expressão do espírito e da cultura de Minas.
Parafraseando ainda uma vez Bernardo de Vasconcelos, na Carta aos Eleitores, podereis dizer: “O meu sangue, o meu coração, eu todo sou mineiro.” Quanto ao sangue, vosso nome o comprova. Vindos de São Paulo, os Laras desde cedo se instalaram nas Gerais, enquanto os numerosíssimos Resendes, no começo do Império, subiram da região do Sul e se espalharam, com seu café e seu gado, pela Zona da Mata e pelo Centro não minerador. Ao mineirismo do sangue juntais o do coração, ou seja, a vossa sensibilidade pessoal e literária, a vossa efusão reservada, a vossa piedosa ironia, o vosso ceticismo tolerante e a exteriorização intensa e saudável da vossa inteligência, fundamente marcada pelo espetáculo do sofrimento humano. Com vosso trepidante talento conservai-vos, como nos belos versos de Raul Leoni, “nas confluências do mundo errante e vário, entre forças que vêm de toda a parte”, mas, no meio dessas visões chocantes da vida, sentis constantemente a presença invisível de Deus.
Já vos definistes como um falante que ama o silêncio. Muitos mineiros são assim. A comunicabilidade extrema pode ser sintoma de reserva. O fogo de artifício brilha enquanto dura, mas não dissipa a sombra. Esse tipo de expansivo mostra-se, mas não se revela. Nós os conhecemos: Capanema, Abgar, Pedro Nava, Fernando Sabino. Outros, caladões, se revelam mais, ou se defendem menos: Drummond, Cyro dos Anjos, Alphonsus Filho. Há boquirrotos fechados em copas, e caixas encouradas que são vitrinas. Mineiros, há, como Otto, que se resguardam com o biombo da exuberância, mas se revelam nas obras literárias. Sua verdade está na sua ficção. Conduzidos pelos personagens e situações vamos encontrar o autor, Otto Lara Resende. A sinceridade não é o esforço de descobrir o interlocutor. Isso se chama franqueza. A sinceridade é a descoberta irreprimível de si mesmo, sem falar de si. Em certos escritores, esta descoberta não se faz por intermédio das confissões, ou das memórias, mas através da ficção. Vossa visão literária da vida e dos homens nada tem de cínica ou desesperada, mas é profundamente pessimista. O cinismo intelectual traduz frieza e indiferença, e o desespero significa revolta e ausência de fé. Tudo isso é o contrário de Otto Lara Resende, crente e tolerante. Seu pessimismo, às vezes doloroso, é fruto da experiência, que mata as ilusões, mas não sufoca a esperança. Esta vida, este mundo são tristes e injustos, mas Otto crê em um trânsito constante para outra Justiça. Isto o salva, e a outros como ele, da queda nos despenhadeiros do cinismo e do desespero. Por isso o pessimismo de Otto, diante de um mundo injusto, se faz sofrer o leitor, fá-lo também confiar. Confiar em qualquer coisa que não está escrito, nem prometido, nos seus livros, mas que é sempre uma indefinível presença.
Se, como escritor, Otto Lara Resende adquiriu prestígio nacional, como jornalista conquistou popularidade, também nacional. No Jornalismo ele não deixa nunca de ser o escritor, como é de tradição no Brasil. Escritor público, diziam os antigos sobre os jornalistas escritores que ora se dedicavam à poesia e à ficção, ora à crônica da atualidade, à história e ao pensamento político. Otto, entre outros de sua geração, representa a linhagem brasileira de Evaristo da Veiga, Francisco Otaviano, José de Alencar, Machado de Assis, Quintino Bocaiuva, Artur Azevedo, Eduardo Prado e aquele querido amigo que o antecedeu na Cadeira, nosso saudoso Elmano Cardim. A Academia se desvanece, hoje, de muitos continuadores dessa tradição, como Alceu, Athayde, Calmon, Barbosa Lima, Montello, Magalhães, Adonias e Rachel.
A grande obra jornalística de Otto Lara Resende, embora seguindo a tradição dos jornalistas homens de letras, não se afasta de herança cultural de Minas, advertindo-se que a herança cultural não é estática, mas evolutiva. Seu jornalismo tem fundo político, e isto desde 1945, quando se fundou em Minas, ao fim do Estado Novo, o semanário Liberdade, movimentado por Otto e outros jovens, com o auxílio de alguns companheiros mais velhos, como meu irmão Virgílio. O Liberdade representava a presença de uma nova corrente liberal, solidária com a queda da ditadura. Hoje, ao fim de quinze anos de autoritarismo, é significativo e estranho que o ideal de libertação não seja, para a juventude, liberal. Ao contrário, tem-se a impressão de que, visando muito ao povo e pouco aos indivíduos, o empenho de libertação das novas gerações, em face do autoritarismo declinante, é sobretudo antiliberal. Aí, creio, a juventude está se afastando do povo a que quer servir. Neste ponto as ideologias políticas antiliberais estão levando a juventude, não a operária, mas a de classe média, a um arremedo atrasado da mocidade francesa de 1968, hostil a De Gaulle, com o seu radicalismo neo-anarquista. Não vou me estender sobre o assunto que, embora de grande importância, escapa às finalidades de um discurso acadêmico.
Otto ficou fiel às posições da sua mocidade mineira. Sua visão política é conciliadora e liberal, nunca discriminadora e radical, como a dos profetas dos autoritarismos redivivos. A solidariedade social, inerente ao novo liberalismo, não é ideológica e, por isso, difere dos movimentos ideológicos de libertação, que terminam, fatalmente, em outro autoritarismo. A diferença é capital, no reconhecimento da herança cultural mineira. A ideologia mecaniza a cultura, padroniza a iniciativa mental. Chama o fanatismo de liberdade, o nivelamento de igualdade e a despersonalização de fraternidade.
As virtudes religiosas da fé, da esperança e da caridade são emanações espirituais da natureza humana, como as ideias políticas da liberdade, da igualdade e da fraternidade são emanações naturais da consciência social. Por isso mesmo, a transformação destas ideias em fanatismo, nivelamento e despersonalização corresponde a privar o homem da sua consciência social, a entregá-lo como instrumento passivo ao anti-humano.
Sr. Otto Lara Resende,
Chegais à Academia por vós mesmo, com o vosso nome nacionalmente reconhecido nas Letras, no Jornalismo e na meio lendária fulguração que cerca o vosso convívio, pela invenção faiscante do vosso diálogo. Vindes aqui dar relevo ao espírito da nossa Província, representado, na unidade e na variedade, pelos grandes nomes de Abgar Renault, Cyro dos Anjos e Mário Palmério. Chegais à Academia por vós mesmo, mas nela não entrais sozinho. Convosco entra o brilhante grupo mineiro dos vossos amigos de mocidade, inseparável da vossa trajetória intelectual: Edgar de Godói da Mata-Machado, João Etiene Filho, Francisco Iglésias, Alphonsus de Guimaraens Filho, Murilo Rubião, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pelegrino, Wilson Figueiredo. Vossa geração montanhesa oferece ao Brasil a unidade mineira, dentro da sua variedade. Mas vossa geração exprime também a continuidade, na vivência de certos valores inerentes à vossa formação. Continuidade não é imobilidade, mas permanência e constância. Constância e permanência que sempre oferecemos ao Brasil. Sede bem-vindo entre os companheiros.
2/10/1979