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Discurso de posse

Esta é a segunda vez que tomo posse da cadeira cujo patrono é Castro Alves. A primeira aconteceu em São Paulo, em outra academia é claro, a Academia Nativista de Letras do Colégio do Estado Presidente Roosevelt, presidida pelo então colega Dante Moreira Leite que se revelaria alguns anos depois eminente sociólogo, autor de extensa obra na área da Psicologia Social, na qual se destaca "O Caráter Nacional Brasileiro". Era o ano de 1946, e me preparava para o vestibular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

A velha escola do Largo de São Francisco atraia os colegiais pela sua tradição libertária. Ainda era muito comentado nos recreios escolares o episódio, ocorrido em 1944, da resistência dos estudantes de Direito à policia da ditadura do Estado Novo, a famigerada polícia especial, impedindo-a de  invadir o sagrado território livre das Arcadas. Embora mais afastada no tempo, também era muito lembrada a participação da juventude acadêmica nos acontecimentos de 1932. E na história da cultura, mantinha-se fiel à herança literária dos grandes românticos do Século XIX que por lá passaram.

O projeto de ingressar na Faculdade continha também uma motivação pessoal e, por isso, predominante. Desde menino freqüentava a Faculdade porque o meu padrinho de batismo, José Epaminondas de Oliveira, era o porteiro das Arcadas e seu filho, Joaquim de Oliveira, bedel da Casa. Sempre que me dirigia ao Centro da cidade, passava pelo largo de São Francisco para pedir a benção ao padrinho. De sua sala, bem à entrada do prédio, podia enquadrar, no alto de uma coluna, as placas que homenageiam até hoje três ex-alunos: Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves.  Desde então, sentia-me motivado para seguir um caminho na vida que, mesmo sem saber ainda qual seria, tinha a certeza de que começaria ali, sob as Arcadas.

Estou ciente de que neste ato solene de hoje o que mais conta é o desejo da Academia de homenagear o cinema brasileiro, como reconhecimento pela sua participação na vida cultural do país. Estou certo de que a generosa amizade de meus colegas cineastas me autoriza a manifestar, em nome de todo o cinema brasileiro, profundo agradecimento à Academia Brasileira de Letras, aos acadêmicos que sufragaram o meu nome e, de modo muito particular, aos que me incentivaram a candidatar-me à ABL: Ledo Ivo, em 1992, quando celebrava-se o Centenário de Nascimento de Graciliano Ramos, e, desde 2004, Ana Maria Machado, Tarcísio Padilha, Cícero Sandroni, Alberto Venâncio Filho, José Murilo de Carvalho, Ivan Junqueira e o Mestre Eduardo Portella.

Sinto-me imensamente honrado porque o que serve de pretexto para a homenagem é a história deste cineasta veterano e profundamente feliz por estar tendo o privilégio de tornar-se confrade de grandes brasileiros, entre os quais alguns teve a sorte de conhecer antes e fora da ABL:

Zélia Gattai, em incontáveis encontros ao lado do amado Jorge, em diversos lugares do Brasil e do mundo e especialmente nos tempos das filmagens na Bahia, onde também conheci João Ubaldo e seu Sargento Getúlio, que virou filme dos bons; Lygia Fagundes Telles, nos encontros da Cinemateca e na memória de Paulo Emílio de Salles Gomes, fundador do primeiro curso de graduação em cinema na Universidade de Brasília, a Universidade de Darcy Ribeiro, onde também se achava Affonso Arinos de Mello Franco, cinéfilo corajoso que ousou participar do júri do agitadíssimo Festival de Cinema Brasileiro de Brasília; Cândido Mendes de Almeida, de quem recebi em 1958 aulas inesquecíveis no efêmero Instituto Superior de Estudos Brasileiros, na mesma classe em que nos honrava a presença do então deputado José Sarney; Ivo Pitanguy, confrade da Associação Brasileira da Legião de Honra e a quem devo até hoje a generosidade de ter acolhido, em 1966, em sua casa, durante duas semanas, minha devastadora equipe de filmagem, acompanhada de exigentes atores e ruidosa figuração; Marco Maciel, quando Presidente da Câmara Federal, ao apoiar a criação da lei que regulamenta a profissão de ator e técnicos de teatro e cinema, e, em outros momentos de grata memória, como o dia em que se iniciou na Fundação Gilberto Freyre a produção do filme “Casa Grande & Senzala”; Sérgio Paulo Rouanet, com quem tive o prazer de colaborar com seu esforço, como Secretário de Cultura da Presidência da República, para restabelecer as relações do Estado com o cinema brasileiro, e quando, Cônsul do Brasil em Berlim, recepcionou a delegação brasileira ao Festival Internacional de Berlim de 1993; Arnaldo Niskier, nos meados dos anos 80, quando trabalhávamos na TV Manchete, sob o teto da Casa de Adolfo Bloch, onde também atuavam Murilo Mello Filho e Carlos Heitor Cony; o nosso presidente, Marcos Vinicios Vilaça, quando Secretário de Cultura do Ministério da Educação e Cultura ao participar, com brilhante depoimento, do programa inaugural da TV Manchete de Pernambuco e Cícero Sandroni, quando ainda muito jovens, compartilhamos idéias e projetos cinematográficos.

Foi Rodolfo Nanni quem me abriu a porta para o “outro lado da tela”, convidando-me, em 1952, para assistente de diretor do filme "O Saci", uma feliz adaptação do livro homônimo de Monteiro Lobato. Em seguida, a convite de Ruy Santos, fotógrafo e documentarista, vim para o Rio de Janeiro, para ajudá-lo a completar o filme "Aglaia". Fui assistente e discípulo de  Alex Vianny, o crítico, historiador e diretor, que me acolheu na equipe de "Agulha no Palheiro", obra marcante dos anos 50. Tive o privilégio de conviver com Alinor Azevedo, um dos fundadores da Atlântida, roteirista  de "Moleque Tião" e "Somos Todos Irmãos", filmes corajosamente inovadores na temática do cinema brasileiro. E conheci Humberto Mauro, que emprestou em 1954 a câmara para filmar “Rio 40 Graus´ e que, em 1970, escreveu os diálogos em Tupi para o filme “Como Era Gostoso o Meu Francês”.

Participo, pois, há meio século, do processo de crescimento e afirmação do cinema brasileiro, apesar dos acidentes de percurso em suas relações imprescindíveis com o Estado. O que importa, porem, é que o cinema brasileiro atual demonstra vitalidade, potência criativa e pluralidade temática, tornando-se cada vez mais representativo da múltipla e rica cultura do país . No plano da linguagem é também um cinema que procura inovar e renovar-se, preservando a sua originalidade artística, tradição fundada por Mário Peixoto e Humberto Mauro e recriada por Alberto Cavalcanti e Glauber Rocha.

Quero lembrar que, ao lado dos grandes cineastas de todas as épocas, podemos encontrar sempre um empresário de atuação tão ousada quanto a dos artistas renovadores, como o foram, por exemplo, os produtores Adhemar Gonzaga, que fez a Cinédia, Franco Zampari, o engenheiro da Vera Cruz, e Mario Audrá, da Maristela, que produziu Alberto Cavalcanti no Brasil.

Cinema e literatura

O professor João Manuel dos Santos Cunha, em sua tese de Doutorado, "Uma Lição Aprendida", faz um excelente resumo de todas as abordagens teóricas sobre o assunto. Demonstra exaustivamente que é mais do que consagrada a constatação de que o cinema influenciou as artes narrativas, em especial o romance.

Em contrapartida, cita autores que apontam a influência da literatura no cinema, especialmente no cinema de vanguarda e nos filmes pós nouvelle vague, enquanto outros provam que a linguagem cinematográfica está presente na literatura, desde a Antigüidade clássica.  João Manuel dos Santos Cunha registra em seu trabalho que o teórico francês Paul Léglise escreveu um "ensaio de análise fílmica do primeiro canto de Eneida", de Virgílio, e cita, a propósito, outro importante teórico da Sétima Arte, Henri Agel, que afirmou:

"...existe um cinema em estado latente, presente desde sempre, e de forma especial, nas literaturas antigas".

No lugar de textos da antiguidade clássica, pode-se também exemplificar a questão com a análise que o ilustre confrade Alberto da Costa e Silva fez do poema "O Navio Negreiro" em seu afetuoso ensaio biográfico de Castro Alves recentemente publicado.

"Se "O navio negreiro" tivesse sido escrito atualmente, diríamos que Castro Alves utilizou, no curto terceiro movimento, técnica cinematográfica: a câmara, funcionando como o olhar do espectador, começou a baixar lá do alto, de onde se via o barco pequenino, e a dele se aproximar, até chegar às personagens no convés. Ou se poderia imaginar, de uma perspectiva mais moderna, que o poeta empregou um zoom. É o albatroz, que Castro Alves invocara no fim do primeiro movimento, que faz o papel da câmara:

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais, inda mais... não pode o olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador.
Mas que vejo ali... que quadro de amarguras!
É canto funeral!... Que tétricas figuras!...
Que cena infame e vil!... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

E as relações do cinema brasileiro com a literatura brasileira? No começo, não foram boas. Um renomado escritor cujo nome não me foi possível conferir, mas que nas citações orais designa-se como Olavo Bilac, manifestou-se com algum rigor contra "a utilização dessa máquina maravilhosa (o cinematógrafo) para reproduzir "aspectos negativos da nossa realidade. Não foi para isso que inventaram o cinema.", protestou. Referia-se aos filmes “naturais”, os documentários que, esgotados os assuntos urbanos, buscavam nos ambientes rurais cenas realistas, inéditas mas reveladoras da pobreza e da existência degradante dos ex-escravos.

Os modernistas, que tanto buscavam assimilar a linguagem cinematográfica, desconheciam o cinema feito no Brasil ou, antes, o desprezavam. Mário de Andrade, cinéfilo, era vítima de escárnio por parte dos amigos, porque, ávido de cinema, assistia também aos poucos filmes brasileiros que surgiam esporadicamente. Por sua vez, os cineastas brasileiros importantes, como Mário Peixoto e Humberto Mauro, nunca ouviram falar da Semana de Arte Moderna nem do Movimento Modernista. Humberto Mauro, por exemplo, vivia em Cataguazes, na mesma cidade onde repercutiu o Modernismo na obra e na atuação de Rosário Fusco com a revista "Verde" e, no entanto, encontrava-se distanciado do movimento, ignorando-o e ignorado por ele.

Em relação a Mário Peixoto, afirma Ismail Xavier em seu livro "Sétima Arte: Um Culto Moderno" que o filme "Limite", acontecimento isolado no contexto brasileiro, "confirma a defasagem entre o cinema brasileiro e outros setores da cultura na terceira década do século", visto que foi obra de um jovem poeta "muito mediatizada com o modernismo dos anos vinte", mas desenvolvida completamente à margem do ideário modernista dos paulistas.

Em "Cinema: trajetória no subdesenvolvimento" Paulo Emílio de Salles Gomes conclui: "os modernistas ignoraram o cinema nacional, ao mesmo tempo em que os cineastas brasileiros não sabiam sequer que o modernismo existia".

Esse distanciamento entre cinema brasileiro e literatura brasileira verificava-se na área dos autores: se por um lado os escritores assim agiam os cineastas, diga-se a seu favor, sempre cortejaram a literatura. São muitas e freqüentes as tentativas de adaptação cinematográfica de obras literárias, feitas por cineastas, mas poucas as participações de escritores na criação de roteiros e diálogos de filmes.

Exemplos: "A Carne" de Júlio Ribeiro; "Lucíola" de José de Alencar; "São Jorge de Ilhéus", de Jorge Amado (no cinema, "Terra Violenta"). No segundo caso, Rachel de Queiroz, que escreveu os diálogos do clássico "O Cangaceiro", de Lima Barreto.

Desde o começo do cinema “posado” (cinema de ficção) no Brasil, os cineastas procuravam nos autores consagrados da literatura o que seria a "alma brasileira", o "conteúdo nacional", a "temática nacional" e, principalmente, a sempre controvertida "realidade brasileira". Apoiando-se na literatura, acreditavam superar as barreiras do preconceito e da extensão oficial deste, a censura. Os temas mais ousados – raciocinava-se - poderiam ser apresentados na tela, desde que já devidamente tratados por consagrados escritores...

“A idéia do cinema – diz José Carlos Avellar em “Cinema e Literatura no Brasil” – tão logo iluminou a tela se refletiu na literatura – renovou a escrita, permitiu a descoberta de novas histórias e de novos modos de narrar, que por sua vez, mais adiante, iluminaram a renovação da escrita cinematográfica”.

Além de adaptações, cujos títulos originais eram anunciados como chamariz para o público que se supunha também leitor, sempre foram realizados filmes com histórias originais mas visivelmente inspirados por livros ou por escritores.

Meu primeiro filme, "Rio 40 Graus", é um caso de adaptação de obra literária não declarada. Argumento e roteiro são de minha autoria, mas é transparente a influência de Jorge Amado: os principais personagens, que conduzem todas as histórias e sub-histórias do filme, são meninos que vivem no morro, negros e pobres, bem como o olhar amadiano de “Jubiabá” e “Capitães da Areia” da cidade dividida entre ricos cínicos e pobres honestos, sobre a qual paira a nuvem vermelha da Revolução...

Ao lembrar-me de “Rio 40 Graus”, sinto-me no dever de manifestar a minha gratidão aos intelectuais, a maioria escritores, pelo apoio à campanha pela liberação do filme que fora proibido pelo Chefe de Polícia. Sob a liderança do jornalista Pompeu de Souza e com a assistência jurídica dos eminentes Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, a campanha terminou vitoriosa na Justiça.

Euclides da Cunha

Quando surge esse nome, não consigo evitar a lembrança de mais uma proeza que cometi nos tempos de estudante do Colégio Presidente Roosevelt. No curso clássico, havia um professor de Português e de Literatura da língua Portuguesa que incentivava os alunos a ler os clássicos da História luso-brasileira, de Alexandre Herculano a Euclides da Cunha. "A História de Portugal" não atraia muita gente, enquanto "Os Sertões" tornou-se o preferido, especialmente o capítulo "A Luta", o que desagradava um pouco o nosso professor.

- Quem não leu o livro inteirinho, desde "A Terra" até "Últimos Dias" não pode dizer que leu "Os Sertões".

Aceitei o desafio do mestre. Fui um dos poucos a realizar a leitura completa de "Os Sertões". Tinha para me ajudar o Dicionário Enciclopédico Lello Universal, comprado em fascículos por meu pai.

Na Faculdade de Direito, filiei-me, logo no primeiro ano, a um grupo de colegas que se dedicava a estudar a obra de Euclides da Cunha e participei da romaria anual dos "euclidianos" á cidade de São José do Rio Pardo, onde aconteciam os seminários e debates sobre grandes questões nacionais.

E "Os Sertões" nunca mais saiu da minha cabeça.

Educou o olhar de forma a fazê-lo reconhecer em qualquer cena do cotidiano signos da dicotomia básica da sociedade brasileira. Serviu-me para criar o roteiro de "Rio 40 Graus". Descontado o radicalismo de primeiro filme, nele está bem evidenciado o conflito interminável entre sertão e litoral .

Como não lembrar de Canudos quando, recentemente, vimos blindados invadirem favelas, reproduzindo, ou modernizando, a "matadeira", o canhão que ameaçava os casebres de Canudos, do cimo do morro da Favela? Junto com esse humilde topônimo, reproduziu-se nas grandes cidades o modo de tratar a questão social. Impossível deixar de citar o próprio Euclides, que diz, na Nota Preliminar de "Os Sertões", que a destruição do arraial de Antônio Conselheiro "foi, na significação integral da palavra, um crime", crime - acrescenta - cometido pelos próprios brasileiros, os do "litoral" que exerceram o "papel singular de mercenários inconscientes".

O mesmo interesse por Euclides da Cunha fui encontrar na Bahia em meados dos anos 50, no grupo de jovens intelectuais liderados por Glauber Rocha. Discutia-se muito a história de Canudos e havia uma onda artística inspirada nesse acontecimento histórico, especialmente nas artes plásticas, onde se destacavam Calazans Neto, Dante Sacaldaferri e Rogério Duarte.

Desde "Deus e o Diabo na Terra do Sol" - afirma Ismail Xavier em “Cinema Brasileiro Moderno” - é nítida a influência de um velho debate sobre as formas de consciência do oprimido. Tais preocupações, no caso de Glauber, derivam de seu diálogo com "Os Sertões", de Euclides da Cunha".

Pode-se concluir que é o livro que se encontra nos  fundamentos do Cinema Novo.

Estamos na Bahia, com Euclides da Cunha e Glauber Rocha...

A cena pede a presença de Castro Alves.

É Euclides da Cunha quem o recebe com as palavras que empregou em "Castro Alves e seu Tempo", palavras que poderiam servir também para ele mesmo ser apresentado aos brasileiros:

"O aparecimento de Castro Alves, certo e oportuno, como o de todo grande homem, é, em grande parte, inexplicável. Ele não teve precursores, na sua maneira predominante. Os grandes pensamentos sociais e políticos que agitou não lhe advieram, como em geral sucede, de longas ou bem acentuadas correntes, nos agrupamentos que o rodeavam. Pertenciam generalizados à sua época. Nasciam do patrimônio comum das conquistas morais da humanidade. A sua grandeza está nisso: ele os viu antes do que os seus contemporâneos.”

Habituei-me a ouvir os versos condoreiros desde os tempos em que visitava com meus pais, aos domingos, a casa do padrinho Epaminondas, no então distante Bosque da Saúde de São Paulo. Nas festas de aniversário, sempre havia um conviva para assumir o palco e declamar "O Navio Negreiro". O mesmo ritual já presenciara na casa de companheiros da Rua Genebra, no cortiço do Anhangabaú.

Não se restringia às casas dos afro-descendentes o hábito de declamar Castro Alves em festas familiares. Na família de Laurita, minha primeira mulher, o declamador era seu pai, o saudoso Professor João Gabriel Sant´Anna, ilustre genealogista e historiador, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Nos saraus lítero-musicais da Juventude Comunista, repetia-se a devoção ao poeta, muito incrementada, é bom lembrar, pela publicação de "ABC de Castro Alves", apaixonante biografia escrita por Jorge Amado.

Cultivava-se sem pudor entre os estudantes o estereótipo de ter Castro Alves, o poeta do povo, como estandarte em todas as lutas consideradas políticas, desde a defesa da meia-entrada nos cinemas até a campanha pela Defesa do Petróleo ou pela Paz no mundo. Ou nos comícios de campanhas eleitorais. Repetia-se como refrão:

A praça é do povo...

O Poeta dos Escravos, o romântico intelectual militante, era portanto o modelo a ser seguido. Acrescente-se a isso que a sua invejável popularidade, hoje muito diminuída, era comprovada em pesquisas acadêmicas, das quais "Leituras de Operárias", de Ecléa Bosi, foi a mais concludente.

Com tais antecedentes, não poderia recusar o convite de Rudá de Andrade para escrever e dirigir um filme de ficção com o tema “Castro Alves em São Paulo”. Uma pesquisa sobre a trajetória do poeta na vida paulista foi realizada pelos seguintes especialistas: Ilka Brunhilde Laurita, professora de literatura na Universidade de São Paulo, Ricardo Maranhão, historiador, professor de História na Universidade Estadual de Campinas, José Roberto Graciano, arquiteto e urbanista; professor da Fundação Armando Álvares Penteado,  Plácido de Campos Jr, professor de Produção Cinematográfica na Faculdade Alvares Penteado,  Dalton de Luca, professor da Fundação Armando Álvares Penteado e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. O coordenador geral da comissão, o próprio Rudá de Andrade, cineasta, professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e, na época, diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Como consultor, o poeta, escritor e crítico de cinema Francisco de Almeida Salles e Guilherme Lisboa como produtor executivo.

O trabalho integrado das diversas áreas (História, Literatura, Arquitetura, Fotografia e Música) permitiu um rico detalhamento da pesquisa, uma vez que cada proposta apresentada por uma área exigia levantamentos e respostas das demais.

Desde a sua chegada a São Paulo, ao lado de Eugênia Câmara e acompanhado do colega Ruy Barbosa, Castro Alves enredou-se na agitada vida política da província. Era o ano de 1868, o quarto da guerra no Paraguai. O prolongamento do esforço bélico descontentava os fazendeiros de café, por causa dos impostos elevados, e aos brasileiros livres pelo recrutamento forçado de soldados para as forças armadas. O desejo de paz refletia-se no seio do partido liberal e nas páginas da imprensa ligada ao partido, ao qual pertencia o Chefe do Gabinete Ministerial, Conselheiro Zacarias de Góis.

Já na semana seguinte compõe e declama “As duas Ilhas” e “A Visão dos Mortos”, em Sarau realizado no Salão do Clube Concórdia. Colabora com Eugênia Câmara na preparação da montagem de sua peça “O Gonzaga”- A Revolução de Minas”, ao mesmo tempo em que produz os poemas de “Os Escravos”, como “Lúcia” , “Prometeu”, “Vozes D’África “ e  os líricos “A Canção do Boêmio”, “Fábula” e “O Pássaro e a Flor”.

Esse conflito político mobilizava a juventude acadêmica através das lojas maçônicas, que funcionavam como verdadeiros partidos políticos clandestinos. O poeta logo ingressou na loja América, ao lado de Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco e do poeta satírico, rábula e ex-escravo, Luís Gama.

A crise política agravou-se em nove de junho, quando, no Parlamento, o deputado José Bonifácio, o Moço, o professor e líder dos acadêmicos, pronunciou veemente discurso para denunciar a corrupção nos negócios da guerra e propor a paz com Solano Lopez, a fim de, liberada a nação do esforço bélico, pudesse cuidar das grandes questões internas, de alta prioridade, como a questão do trabalho escravo.

Os poemas muito inspirados nos acontecimentos políticos do momento, brotaram em reuniões públicas, nos salões e teatros da cidade. As mais destacadas e ruidosas foram: a de desagravo pela queda do Gabinete Liberal em 22 de agosto, no Ateneu Paulistano, onde vibraram as estrofes de “Pedro Ivo”.

República! Vôo ousado
do homem feito condor
!

E, como síntese dos acontecimentos, em plena comemoração do 7 de setembro, o poeta declama “O Navio Negreiro”:

Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...
Silêncio! Musa! Chora, chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra,
foste hasteado dos heróis na lança,
antes te houvessem roto na batalha,
que servires a um povo de mortalha.”

Para o poeta a abolição era a questão básica da nacionalidade, acima mesmo de patriotismo guerreiro nacionalista.

A pesquisa indicou que o universo político do poeta, “o bardo que fulminou a escravidão e a injustiça”, segundo Antonio Cândido, não era formado apenas pela sua imaginação e conhecimento histórico-literário; na sua lira refletiam-se os acontecimentos dos quais foi testemunha e protagonista.

“Ele foi”- disse Jorge Amado em “ABC de Castro Alves” - “o poeta da Abolição, da República e da Liberdade, além de ter sido o mais enternecido poeta de amor”.

No lirismo de Castro Alves encontram-se os mais sublimes pensamentos de devoção à mulher. Se o poeta foi um corajoso tribuno popular com a sua arte participante, nos seus poemas líricos legou aos jovens modelos de comportamento amoroso e de respeito à personalidade feminina. Versos “de exemplar simplicidade” – disse Manuel Bandeira - que só podem ser a expressão de vivências reais desse “poeta de comício e de alcova”, conclui Lêdo Ivo.

Os Antecessores

Do primeiro ocupante da cadeira nº 7, o poeta Valentim Magalhães, disse o seu sucessor , Euclides da Cunha:

“Destacara-se na faculdade de Direito de São Paulo entre companheiros que se chamavam Júlio de Castilho, Silva Jardim, Eduardo Prado, Ezequiel Freire, Raul Pompéia, Lúcio de Mendonça, Assis Brasil, Afonso Celso, Luis Murat, Julio de Mesquita, Raimundo Correia. Ora, Valentim foi a figura representativa no meio de tão dispares tendências, por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à atividade dispersiva”.

A produção literária do Valentim foi múltipla e variada: dedicou-se à poesia, ao conto, à crônica, ao romance e ao teatro. Como diretor da revista literária “A Semana”, que além de servir à literatura, fazia propaganda do Abolicionismo e da República, tornou-se o baluarte dos jovens escritores e poetas.

A partir de 1911, a cadeira n. 7 foi ocupada por Afrânio Peixoto, escritor e médico legista, o mesmo que assinara, em 1909, o laudo cadavérico de Euclides da Cunha, seu antecessor. Além de importante contribuição à medicina legal, foi político, professor, crítico, ensaísta, romancista, historiador literário e primoroso conferencista.

Deve-se a Afrânio Peixoto a primeira edição das obras completas de Castro Alves, com minuciosas anotações, bem como uma biografia intitulada “Castro Alves, o poeta e o poema”, uma das leituras obrigatórias quando dos primeiros passos nos estudos de literatura brasileira.
O site da ABL nos informa que, quando Presidente da Casa em 1923, Afrânio Peixoto promoveu, junto ao embaixador da França, Alexandre Conty, a doação pelo governo francês  deste prédio, o Petit Trianon, construído para a Exposição da França no Centenário da Independência do Brasil.

Em prefácio a “Arte de Furtar e o seu Autor”, na edição comentada por Henrique Leal, Sérgio Correa da Costa caracteriza como “um monumento que enriqueceu a nossa cultura” a pesquisa de Afonso Penna Junior, à qual dedicou 20 anos de sua vida.

Ao recebê-lo na Academia Brasileira em 1948, assim se expressou Alceu Amoroso Lima:

Vosso livro é um modelo de pesquisa literária feito com grande estilo... trabalho rigoroso e impessoal... sois um pesquisador de palhetas espirituais e a pepita que restituístes ao verdadeiro dono enaltece a vossa  longa vida de sábio e batalhador.

De Hermes Lima, o terceiro ocupante desta cadeira, a primeira imagem que me vem à mente é a da figura construída por Graciliano em “Memórias do Cárcere”:

Foi a pessoa mais civilizada que já vi. Naquele ambiente, onde nos movíamos meio nus, admitindo linguagem suja e desleixo, ele vestia pijama – parecia usar traje rigoroso. Amável, polido, correto de amabilidade, polidez e correção permanentes.

Jornalista, jurista, professor, ensaísta, memorialista e, sobretudo, político, fundador da Esquerda Democrática Hermes Lima foi Ministro do Trabalho, Presidente Primeiro Ministro do Conselho de Ministros, Ministro das Relações Exteriores do Governo João Goulart e, finalmente, Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Em seu discurso de posse, Dinah Silveira de Queiroz reproduz a descrição de como vivia e trabalhava o jurista Pontes de Miranda, o quarto ocupante da cadeira n. 7,  seu antecessor:

É um ambiente de artista que conduz a uma biblioteca de 70 mil volumes, do direito mundial e ciências matemáticas, físicas, biológicas, antropológicas e sociológicas, distribuída em dois pavimentos, nos quais, o mestre circula lepidamente, sem dificuldades.

Na sua obra imensa, destaca-se a bibliografia jurídica, de espírito múltiplo: concepção científica do direito, progresso científico, liberdade, humanismo, visão poética, antitotalitarismo, senso de democracia, inspiração filosófica, preocupação ética.

A segunda mulher a ser aceita pela Academia, a autora de Floradas Na Serra, A Muralha, Eles herdarão a Terra, Dinah Silveira de Queiroz, foi recebida pelo acadêmico Raymundo Magalhães Junior com estas palavras:

Impressiona a qualquer observador atento a multiplicidade de vossa obra, a variedade de vossa inventiva, a segurança com que passais destramente de um a outro gênero, do conto ao romance, da crônica à biografia, da literatura infantil ao teatro, da recriação do nosso passado histórico às projeções futurológicas da ficção científica e aos temas religiosos, na reinterpretação da vida de Cristo.

Ela havia registrado em seu discurso de posse que:

O destino, aliado a meus confrades, permitiu-me que eu fosse o sétimo ocupante da cadeira número sete, neste dia sete (ela tomou posse no dia 7 de abril de 1981),e que por uma dessas incríveis e misteriosas destinações chegasse aqui trazendo o próprio nome de Castro Alves, pois pela lei assim me chamo.

(Dinah Silveira de Queiroz referia-se ao fato de estar casada com o escritor e diplomata, Dario de Castro Alves).

Senhores acadêmicos, senhoras acadêmicas, meus amigos:

Sinto também algo “incrível” e “misterioso” nos caminhos que me conduziram até aqui para ganhar o privilégio da imortalidade acadêmica. Mas, se me fazem sentir quase um predestinado a flutuar na glória machadiana, a que honra, ...., consola e eleva, me trazem também a lembrança de que estou assumindo o compromisso de honrar a cadeira n. 7, tal como o fez o ilustre historiador, escritor e diplomata Sérgio Corrêa da Costa, meu proeminente antecessor.

Em seu discurso de posse, ele apontou, como “denominador comum”, no patrono e nos sete acadêmicos que o antecederam na cadeira n. 7, “um traço vigoroso de nacionalismo, de exaltação da terra e do homem, de amor romântico pelo Brasil, de afirmação do singular destino brasileiro.”

Como historiador, combinou essas características com a racionalidade do pesquisador desde o início de sua “longuíssima carreira” diplomática, quando foi designado para cuidar do precioso arquivo histórico do Itamaraty. Segundo revela no capítulo inicial de “Brasil, Segredo de Estado, deparou-se naquela ocasião com “avenidas de estantes de metal abarrotadas, de alto a baixo, de embrulhos de papel pardo, cuidadosamente alinhados. No lugar de fichários, livros de registros, cadastros, apenas etiquetas com três tipos de classificações: “Vários”, “Diversos” e “Miscelânea”.

Graças ao imenso apetite de trabalho dos seus 20 anos, dedicou-se a classificar os documentos acumulados há séculos. Identificou e reconstituiu o chamado Arquivo Militar de Lisboa, esquecido no Brasil por D. João VI e considerado perdido; reuniu mais de 300 cartas do marquês de Pombal, documentos devolvidos a Portugal por proposta sua; reconstituiu o arquivo do Conselho de Estado da monarquia, o que resultou em seu primeiro trabalho histórico, publicado sob o título “Pareceres do Conselho de Estado e do Consultor do Ministério dos Negócios Estrangeiros – 1842 – 1889”; encontrou a documentação inédita que proporcionou a elaboração de seu livro de estréia, “As Quatro Coroas de D. Pedro I” , seguido de “Dom Pedro e Metternich”, Traços de Uma Guerra Diplomática”, “A Diplomacia Brasileira na Questão de Letícia”, “A Diplomacia do Marechal: a intervenção estrangeira na Revolta da Armada”, em que desvenda a figura enigmática de Floriano Peixoto.

Segue-se um livro originalíssimo, “Palavras sem Fronteiras”, um livro de lingüística cujo autor não é um lingüista, mas antes um humanista, e um humanista do seu século – afirma Maurice Drouon, da Academia Francesa, no prefácio dessa obra que qualificou de "inteiramente original."

Após a aposentadoria como Embaixador, Sérgio Corrêa da Costa mergulhou no vasto material de arquivo acumulado, para escrever “Brasil, Segredo de Estado, uma incursão descontraída pela história do país”. Original e descontraído, esse livro apresenta novas versões e revelações surpreendentes para acontecimentos históricos.

No prefácio, o ilustre confrade Eduardo Portella conclui:

“Brasil, Segredo de Estado” concilia, de maneira exemplar, a veracidade da documentação (history) com a versatilidade do estilo narrativo (story). A história narrada jamais avilta a história acontecida. Pode e costuma ilumina-la, torna-la mais fascinante e convincente. Os grandes escritores sempre foram admiráveis narradores, que escreveram identificando e criando o discurso da história. É o que ocorre quando o historiador dispõe de elevada ética, solidez argumentativa, prosa fluente no melhor registro ensaístico – como é o caso de Sérgio Corrêa da Costa”.

Somente alguém possuído por um “amor romântico” por seu país teria ousado viver a aventura da mocidade que resultou, “no ocaso da vida”, a “Crônica de Uma Guerra Secreta”, livro que focaliza a presença do nazismo na América, durante e após a II Guerra Mundial.

A aventura, que conservou em segredo absoluto, até mesmo de seus familiares, aconteceu nos tempos de Perón e Evita. Conseguiu penetrar nos recintos mais vigiados do Arquivo Nacional Argentino e fotografar documentos ultra-secretos, altamente comprometedores do governo argentino. Isso aconteceu, fez questão de salientar em entrevista por ocasião do lançamento do livro, “muito antes de James Bond nos ter ensinado o caminho”.

Na mesma entrevista, explica que preferiu chamar o ensaio de crônica, porque gostaria de juntar a evocação de experiências pessoais ao resultado de pesquisas sobre a penetração nazista no continente.

“Reflete também – continua – minha preocupação com o desconhecimento da nossa mocidade sobre os riscos que rondaram o país na década de quarenta”.

A elaboração do livro custou-lhe imenso esforço, “que foi reviver aquela experiência no panorama da guerra secreta que se travou naqueles anos e da qual não extraímos ainda as lições que pode nos oferecer”.

Quais são essas lições?

"A mais importante – legou-nos Sérgio Corrêa da Costa - é  a de que não se pode brincar com a democracia. Nela se encontra a vocação legítima do Brasil”.

“Não há segredo para a História” – advertiu.

Gostaria de homenagear na pessoa de Sérgio Corrêa da Costa, pelo seu histórico nas fileiras do Itamarati, a figura do diplomata brasileiro, aquele profissional de altas e complexas qualidades que se ocupa do Brasil no Brasil e  fora do Brasil, na política, na economia e na cultura.

Muito Obrigado.

Quantas figuras ilustres das fileiras do Itamarati, no trânsito de suas ocupações rotineiras,  se dedicaram a expandir as fronteiras do país através das imagens cinematográficas brasileiras, aproximando a nossa cultura dos povos mais distantes.

Foi através desses embaixadores que chegamos com nossos filmes aos principais festivais de cinema e pudemos dialogar em igualdade de condições com as diferentes linguagens cinematográficas de tantos países em todo o mundo.

Devemos a dedicação de tantos deles, que se torna difícil enumerá-los, mas  não podemos esquecer de Raul de Sá Barbosa, Vinícius de Moraes, de  Arnaldo Carrilho, do Wladimir Murtinho,  Vera Pedrosa,  Antonio Houaiss, Celso Amorim e tantos outros que, no anonimato de suas funções, ajudaram a difundir pelo mundo a língua falada do povo brasileiro.

Muito obrigado.