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Discurso de posse

Foi uma longa trajetória, esta que me trouxe à Academia Brasileira de Letras, e não estou falando apenas dos mil e duzentos quilômetros que separam a cidade de Porto Alegre, onde moro, do Rio de Janeiro. Estou falando daquela trajetória que percorrem todos os escritores, uma trajetória de auto-descoberta e de autoaperfeiçoamento e que, às vezes, chega a esta Casa. Quando isto acontece, vive-se um momento de inusitada emoção, um peculiar momento em que, de súbito, descortinamos uma imensa paisagem literária, da qual somos, mesmo na condição de humilde detalhe, integrantes. De repente nos damos conta de que aqui fomos precedidos por grandes escritores, figuras verdadeiramente lendárias em nossa vida e em nossa formação. Como disse Isaac Newton, nossa visão então se alarga, porque, mesmo diminutos, estamos sobre os ombros de gigantes.

 Esta constatação, ao tempo em que aumenta nossa responsabilidade, proporciona-nos a oportunidade de evocar aqueles que nos precederam e de quem, e de alguma forma, somos credores. Aprendemos sempre e descobrimos sempre. Uma das coisas que aprendemos é homenagear os nomes que fizeram a literatura brasileira. Neste momento cabe-me destacar, em primeiro lugar, aquele que me antecedeu na Cadeira n.° 31, o mineiro Geraldo França de Lima, figura exemplar de nossas letras. Nascido no interior de Minas Gerais – Estado cuja contribuição à literatura brasileira já é legendária – Geraldo França de Lima começou a escrever muito cedo. Foi ainda no início de sua carreira que veio a conhecer aquele cuja influência se revelaria fundamental: João Guimarães Rosa. Depois de estudar Direito e de trabalhar como jornalista no Rio de Janeiro, regressou a Minas Gerais, onde foi nomeado professor de escola pública em Barbacena. Ali, durante a Segunda Guerra, conheceu Georges Bernanos. O autor do celebrado Diário de um Cura da Campanha (Journal d’un Curé de Campagne, 1936), vivia, desde 1938, no Brasil, numa espécie de auto-imposto exílio. Bernanos tinha evoluído de uma posição de militante da Action Française para uma posição independente, que o levara a condenar o regime franquista e o armistício que a França celebrara com a Alemanha nazista. Sobre Bernanos, Geraldo França de Lima escreveu importante ensaio, publicado (1960) por Paulo Rónai em Comentário. Trata-se de um trabalho primoroso, que não apenas revela o Georges Bernanos ser humano como descreve a angústia de um intelectual diante de um mundo em que a razão cede à força das armas. É particularmente comovedora a descrição do encontro entre Bernanos e Stefan Zweig, ambos exilados. Zweig, diz França de Lima, “estava desfigurado: triste, abatido, sem esperança”, um prenúncio da situação que o levaria ao suicídio. Bernanos tentou animá-lo, sugerindo uma ação de protesto contra o Holocausto, à época já em curso. Postura generosa, e, na conjuntura política de então, corajosa; bem de acordo com o auto-retrato que forneceu ao próprio Geraldo França de Lima: “Quando um dia perguntarem a você o que sou, responda que sou um antifascista que odeia a mediocridade, a falsa modéstia, a virtude fingida e estudada, a mentira e a superficialidade. Sou um antifascista e pouco me importa que o fascismo esteja na Itália, na Alemanha, na Espanha, em Portugal, na Rússia ou nos Estados Unidos. Sou um homem que acredita em Deus e que acredita que o homem foi feito por Deus para amar, ser amado e respeitado.”
 

Até então, a produção literária de Geraldo França de Lima expressara-se sobretudo em artigos. Mas o ano de 1961 seria decisivo em sua carreira, graças ao acaso, mas graças sobretudo à visão e à generosidade de Guimarães Rosa. Na casa de um amigo comum, o escritor mineiro encontrou os originais de um romance intitulado Uma Cidade na Província. Levou esses originais consigo, leu-os e, de madrugada, telefonou à dona Lygia, esposa de Geraldo, dizendo aquela frase que todo ficcionista iniciante sonha ouvir, sobretudo vinda de alguém como Guimarães Rosa: “Ou muito me engano, ou estou diante de um grande romance.” E não se restringiu a essa declaração; sugeriu uma mudança no título, que ficou sendo Serras Azuis e encarregou-se de levar a obra inédita ao editor Gumercindo Rocha Dórea, que a publicou. Finalmente, no lançamento do romance, na Livraria Leonardo da Vinci, pediu a palavra, ele que não era dado a discursos, saudando o surgimento de um novo talento na ficção brasileira. Serras Azuis teve imediata repercussão e, naquele ano, ganhou o Prêmio Paula Brito de Revelação Literária, concedido pelo Estado da Guanabara. Mais tarde, seria adaptado inclusive para a televisão.

Serras Azuis é obra extraordinária. Mais que um romance, é um verdadeiro painel sobre a vida em uma pequena cidade brasileira. O que temos aqui é, em realidade, uma sucessão de pequenas histórias, cujos títulos já nos falam de lugares, de situações, de personagens típicos: “As Marcolinas”, “O bacharel”, “O assustado”, “Esquina do pecado”, “À la mode de Paris”, “O Salão Elite”, “Lino Gago”, “Totó Berruga”. Vejamos, por exemplo, como ele define o caudilho local:

“O Coronel Eleodegário Souza não é um coronel das armas, mas vale mais do que um marechal-de-campo: é o chede único e supremo do situacionismo serrazulense. Serras Azuis é um mar e ele um almirante. Concorrências, não as admite: Serras Azuis é seu feudo e acabou-se! [...] É o Coronel Eleodegário quem manda e delibera imperativamente. E o faz com jeitinho especial: reúne os amigos e deixa-os discutir. No momento psicológico, intervém com uma fórmula conciliatória e soberana: ‘Eu sugiro...’ É o suficiente: todos batem palmas.”

Nestas poucas linhas está sintetizada a fórmula que permitiu a autocratas sem conta governar municípios, estados, o país: a mistura bem dosada de tolerância e despotismo. Mas a política não se esgota, claro, no manda-chuva: há grupos e grupelhos, como o dos Tico-Ticos, que se reúnem na botica da Esperança para um café mineiro típico, acompanhado de pão de queijo, broinhas de fubá e biscoitos de polvilho. Ali estão o Fulgêncio, rico proprietário, o Beijo, vereador e dono da Pechincha, armazém de secos e molhados e que enriqueceu, segundo uns, furtando na balança; o Beto Calça-Curta, guarda-livros e beletrista; o Militão Pacheco, que, diferente dos outros, só toma cerveja; o Ló Garnisé, queixando-se de doenças e da crise, e o papa do tico-tiquismo, o Dr. Rivaldino Paleólogo, que usa camisa de peito engomado e abotoaduras de ouro, com monograma de brilhantes. De antiga casa serrazulense, é médico, com ambições políticas e ousou desafiar o Coronel Eleodegário: em vez de desposar a sobrinha deste, casa com uma moça do Rio, filha de ministro, irmã de deputado. A vingança do coronel é paradigmática: finge apoiar o Dr. Rivaldino em uma eleição local, mas manobrando astuciosamente, consegue derrotá-lo. Comenta um serrazulense: “O Coronel é como pão-de-ló: quanto mais apanha, maior fica. O Dr. Rivaldino é como um balão: quanto mais sobe, menor fica.”

Depois da política, a vida do intelecto. Que França de Lima assim descreve:

“Tem de tudo em Serras Azuis. Em matéria de belas-letras, como expressão de cultura, de inteligência e de talento, o fraco é a oratória: quem falar bem está feito na vida. O serrazulense se derrete por um bom discurso e não pede muito ao tribuno: dispensa mesmo a sintaxe, as boas figuras de retórica: gosta é de ouvir falar alto, empolado, grosso e depressa. [...] Depois do verbo, vem, então, a musa. Nesse campo disputam a primazia o alexandrino e o madrigal. O mundo avança, mas em Serras Azuis o alexandrino se conserva. O Telmo Plecá não deixa passar um domingo sem publicar nas folhas locais pelo menos um alexandrino [...]. Já o Lorzinho Branquela tende mais para o lirismo inocento de um madrigal. Penteia-se à la Castro Alves e as Marcolinas afirmam com certeza que ele toma vinagre para estar sempre magro.”

Mas a vida intelectual não se esgota em versos. Há mais. Diz França de Lima: que o estudante serrazulense, mal entra no ginásio, já sabe qual o seu caminho: tem de se formar em Medicina, Direito ou Engenharia. “Profissões de elite. [...] Odontologia, Farmácia são consideradas profissões menores, que não dão direito ao Dr. [...] O lar serrazulense só se completa com um filho doutor. Se não há filhos, a normalista enche a casa.”

Antes da universidade, porém, o Ginásio de Serras Azuis: “Sobradão colonial, vetusto, imponente – glória excelsa da comunidade, templo do saber eclético. Sem biblioteca, sem laboratórios, sem mapas, sem professores. [...] O Ginásio de Serras Azuis: bravatas, impostura, ignorância.” Um exemplo é o professor Zequinha, lente do vernáculo: “Afirmava que se devia falar o brasileiro com termos clássicos, caliginosos, de destroncar a língua... Falar bem, dizia, é não se fazer entender.”

Serras Azuis é assim um microcosmo, a síntese de um Brasil que é liricamente, comovedoramente, pateticamente retrógrado. Um Brasil que rapidamente desaparece, numa época em que três quartos da população concentra-se em megalópoles em que a regra são as relações distantes, anônimas, não raro substituídas pela violência pura e simples. Que Geraldo França de Lima tenha conseguido, com tanta sensibilidade e perfeição, traçar este revelador retrato deve-se sobretudo a seu grande talento, talento este que se manifestaria em obras como Brejo Alegre (1964), Branca Bela (1965), Jazigo dos Vivos (1969), O Nó Cego (1973), A Herança de Adão (1983), A Janela e o Morro (1988), Naquele Natal (1988) e Sob a Curva do Sol (1997).

Em 30 de novembro de 1989 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, substituindo aquele outro grande observador de nossa realidade, o José Cândido de Carvalho, notável jornalista, contista e romancista. Admirador de Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, José Cândido de Carvalho estreou na literatura em 1939 com o romance Olha para o Céu, Frederico! Só 25 anos depois publicou a obra que representaria sua consagração definitiva, O Coronel e o Lobisomem, extraordinário sucesso tanto de crítica como de público, e que já ultrapassou 40 edições. Minha geração literária foi muito influenciada por esta ficção que mistura humor e fantasia, e que é profundamente brasileira.

Uma linhagem gloriosa, portanto, que remonta ao fundador Pedro Luís, tem continuidade com Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior, cujos versos – “Uma ilusão gemia em cada canto / chorava em cada canto uma saudade” figuravam em todas as antologias escolares brasileiros, com João Ribeiro, historiador e filólogo, com Paulo Setúbal, o popular romancista histórico autor de A Marquesa de Santos (1925) e O Príncipe de Nassau (1926), Cassiano Ricardo, o modernista poeta de A Flauta de Pã (1917), Martim Cererê  (1928), e Jeremias-Sem-Chorar (1964).

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Como Geraldo França de Lima venho, não do eixo Rio–São Paulo, ao redor do qual, tradicionalmente, circula a vida cultural do país, mas de um Estado relativamente distante. Que, como Minas Gerais, tem uma cultura própria, expressa numa vigorosa literatura, reflexo, por sua vez, de uma história verdadeiramente épica. Conquistado aos espanhóis, o território rio-grandense foi cenário de ferozes lutas que resultaram em sua incorporação à coroa portuguesa. As vastas extensões territoriais foram divididas entre os conquistadores. Resultou daí o latifúndio, que deu à região a sua primeira riqueza: o gado, criado extensivamente no pampa. E aí surge também o gaúcho, que logo inspiraria os primeiros escritores rio-grandenses, notadamente Simões Lopes Neto. A partir de meados do século XIX o eixo econômico do Rio Grande deslocar-se-ia para o Norte, para o planalto central e a região serrana. Nesta região estavam em curso vários projetos de colonização, destinados a absorver os emigrantes que então chegavam. De uma Europa empobrecida, devastada por guerras e conflitos étnicos, milhões de pessoas atravessavam o oceano, nos navios de emigrantes que Lasar Segall tão pungentemente retratou. Eram alemães, italianos, eslavos e também um grupo de algumas centenas de famílias judias originárias da Europa Oriental (no ano de 2004, a propósito, esta presença judaica no Rio Grande do Sul completará um século). Vinham em busca do sonho americano, simbolizado, no porto de Nova York, pela Estátua da Liberdade (em cujo pedestal, aliás, estão gravados os versos da poeta judia Emma Lazarus: “Dá-me teus exaustos, teus pobres / tuas confusas massas que por ar livre anseiam.”). Na América Latina, continente então escassamente povoado, os imigrantes eram favorecidos por uma política sintetizada na frase do intelectual argentino Juan Alberdi: “Governar é povoar”.

O projeto de colonização judaica no Rio Grande do Sul não foi bem-sucedido. Provindos de pequenas aldeias, os emigrantes não tinham, contudo, experiência com o trabalho da terra, sobretudo numa região de escassos recursos como era então o interior do Estado; breve, eles se juntaram a outros colonos que deixavam o interior rumo à cidade. A família de meus pais, portanto, ficou em Porto Alegre. Radicaram-se no bairro do Bom Fim, onde viviam em casas minúsculas, exercendo profissões como as de marceneiro, alfaiate, vendedores ambulantes. Era uma vida difícil, de muitas carências, mas compensada pelo espírito comunitário, pela coesão familiar. Todas as noites estas famílias se reuniam para aquilo que era quase um ritual: ficavam tomando chá (logo substituído pelo chimarrão) e conversando – contando histórias, em geral sobre suas primeiras experiências de Brasil. Estas narrativas, que me encantavam, despertaram em mim a vontade de contar histórias – mas de contá-las por escrito. Porque eu era, desde cedo, um grande leitor; fui motivado a isto por minha mãe, que, com grande força de vontade, conseguiu estudar; era professora primária e grande leitora. Foi ela quem me introduziu à leitura. E logo eu estava devorando os autores que me fascinavam: Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Jorge Amado. Logo estava também colocando no papel as minhas primeiras historinhas, que eram lidas com admiração por meus pais e que passavam de mão em mão no bairro: todos diziam que eu era o “escritorzinho do Bom Fim”. E a verdade é que nunca pretendi ser mais do que isto. Tudo o que veio depois, os livros publicados, traduzidos, até mesmo premiados, e finalmente a indicação para a Academia Brasileira de Letras representou uma inesperada gratificação. E foi também o resultado de inestimável auxílio. Das pessoas que leram meus primeiros textos, que me ajudaram e aconselharam: professores, amigos, pessoas como o pintor Carlos Scliar e Érico Veríssimo. Meus editores, os primeiros dos quais arriscaram num autor desconhecido e de potencial incerto. E os leitores, e aqueles que trabalharam em minha obra – tanta gente, que um grosso volume seria pequeno para listar os nomes.

Chega a hora dos agradecimentos, que são numerosos. Quero manifestar minha gratidão, em primeiro lugar, ao generoso povo do Rio Grande do Sul que, com entusiasmo caracteristicamente gaúcho, fez desta eleição uma causa. Foram incontáveis as manifestações de apoio que recebi, sob a forma de cartas, de mensagens diversas, de listas de assinaturas: apenas uma delas continha 6 mil nomes, isto sem falar nas numerosas pessoas que me procuravam, oferecendo ajuda para aquilo que imaginavam como uma campanha eleitoral. Importante foi o apoio institucional, vindo do Governo do Estado, da Assembléia Legislativa, das bancadas gaúchas na Câmara e no Senado, do Poder Judiciário, de Ministros de Estado, de prefeituras, de universidades e escolas, de instituições comunitárias. A Rede Brasil Sul de Comunicações, da qual sou orgulhoso colaborador, deu à candidatura toda divulgação possível e transformou a cobertura da memorável campanha num trabalho jornalístico de primeira qualidade.

Não menos gratificante foi a repercussão da eleição. As mensagens de congratulações vieram aos milhares; numerosas foram as homenagens, para as quais tive de, verdadeiramente, me desdobrar. Empresas gaúchas presentearam-me com o fardão que estou usando.

Para mim, está claro que aqui estou representando a literatura gaúcha. Sou apenas um dos numerosos nomes que integram a extensa lista daqueles que fazem do Estado do Rio Grande do Sul o cenário e a motivação para sua literatura. De outra parte, esta intensa mobilização reflete a importância da ABL no cenário cultural brasileiro. Uma importância que crescerá proporcionalmente ao intercâmbio da Academia com as instituições culturais das diversas regiões. Esta abertura se faz cada vez mais necessária e aponta para novas e promissoras possibilidades.

Quero também agradecer a pessoas. Em primeiro lugar aos membros da ABL que, desde os primeiros momentos, acolheram-me com calorosa afeição e honraram-me com sua confiança.

O fato de eu morar em Porto Alegre naturalmente dificultaria a candidatura, mas aí pude contar com o precioso auxílio de pessoas como Bella e Georges Jozef e do jornalista Gabriel Oliven. A equipe administrativa da ABL, chefiada por D. Maria Carmen de Oliveira, ajudou-me e orientou-me em todos os momentos.

Enfim, este é um momento de celebração. Entristecido pela ausência daqueles que não estão aqui, celebrando comigo: meus pais, José e Sara, emigrantes que lutaram duramente e que me ensinaram a lutar também, e a acreditar. Como um dia acreditou na literatura aquele gurizinho do bairro do Bom Fim que, de algum lugar do tempo, me olha com seus grandes olhos, um olhar de admiração e de espanto – espanto e admiração à qual junto, neste momento, a gratidão de toda a minha vida.