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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Mário de Alencar

RESPOSTA DO SR. MÁRIO DE ALENCAR

SENHOR Miguel Couto:

Essa desaparição coube-vos a boa fortuna de vir desvanecê-la. Ouvindo-vos agora, tivemos um momento o doce engano de que nos surgia, trazida pela vossa mão, a pessoa de Afonso Arinos. Tanto é o poder de uma palavra luminosa e medida. Falastes-nos dele, sem exagero que lhe alterasse a fisionomia, nem omissão que lhe escurecesse a memória. Transmutou-se-nos aos poucos a saudade e quase nos esquecemos de que vínheis ocupar a sua mesma cadeira. É a sua glorificação, e já é a vossa.

Afonso Arinos, ressurgido, deverá fitar-vos com o olhar surpreso que tem a estátua, emergindo do mármore, para o seu estatuário. Ao toque dessa palavra alada, a imagem, flutuante em névoas, foi-se definindo em corpo, configurado, e ao mesmo passo tão diáfano, que nos permitia acompanhar-lhe a operação do pensamento e a atividade recôndita do coração. Vimo-lo assim numa totalidade que não pudéramos surpreender na sua curta passagem pelo mundo.

Para perfazê-la não vos bastaria o só talento. Sem a simpatia essencial, que procede de semelhanças intrínsecas e ilumina o interior secreto, não há dom divinatório nem talento formador que recomponham alma alheia nas suas feições angulares. Reavivastes a pessoa de Arinos, porque moralmente sois como ele. Bondade e gentileza foram os fios que o destino urdiu no vosso caráter e no do vosso antecessor; são fios ao parecer frágeis, tênues e dóceis, mas tal força possuem na sua brandura, tal resistência na flexibilidade, que formados, crescidos, e entrelaçados, não há vento que os estale, nem machado que os rompa.

Mencionastes como símile de Arinos o nosso jequitibá; nenhuma comparação fora mais expressiva; essa é a árvore originária das nossas florestas, brasileira por excelência, inconfundível, inaclimável com a sua pujança em outro solo; alta, surgida em fronde acima das outras na mata, mas sem sobranceria, sem a vaidade balouçante da palmeira; forte, naturalmente, pela robustez das suas raízes profundas e largas.

Foi na inalterada constância do sentimento brasileiro de Afonso Arinos que melhor se patenteou a força do seu caráter. Viajor habitual, em idas e vindas pelo oceano, quase ave de arribação de pouso alternado, Arinos nunca deixou de ser a alma sertaneja, a pura planta dos agrestes de Paracatu. Aonde quer que ele fosse, do que quer que ele falasse, e fosse qual fosse a língua, falavam pela sua boca a alma e a voz brasileiras. Atos e idéias não tinham nele outro molde que as formas vazadas pelo ambiente da infância no subconsciente que explicastes, salvando-lhe o nome do nacionalismo intencional com que lhe rotularam a memória.

Bendissera-vos Arinos pela reparação desse erro incrustado na sua fisionomia literária, pois lhe devera magoar o gosto e a isenção de escritor o suporem-no pregoeiro tendencioso das cousas da pátria. Ele amava o Brasil ingenuamente, por haver nascido no Brasil, e mais a sua Minas do que o resto do Brasil, e ainda mais o seu Paracatu do que todo o resto de Minas. O sertão era o panorama da sua cidade. Amava-os do amor que não reflete, como é todo o amor verdadeiro, força instintiva e irredutível.
O sentimento pátrio não se adquire e não se ensina, porque é nativo; é como as sementes que ninguém semeia e no entanto, sem plano, erigem-se em árvores e compõem sobre toda uma terra a sombra e a riqueza das grandes florestas. É sentimento habitualmente silencioso, porque é forte; é como a íntima gestação do fogo subterrâneo que só comprimido rompe as camadas do solo de pedra e espadana em chamas lavas.

Se em seus escritos Afonso Arinos alguma vez se referiu a esse amor natal, foi com singeleza e candura, sem premeditação, como num grito da alma a extravasar de saudade. E era tão sincero que não vencia nem temia a infantilidade das lágrimas, como nos lembrastes, contando a sua emoção na leitura do drama O Contratador de Diamantes.

Era um coração de criança; e foi por sentimento, foi por saudade que ele escreveu; e daí o seu amor, e a sua intuição das eras mortas do Brasil.

As obrigações da vida tinham-no transferido da amplitude do sertão para o âmbito policiado de uma cidade acadêmica; e, nessa estreiteza, os olhos da alma se alongavam para o ermo campesino, e a voz lhe fluía em narrativas das aventuras de caça, ou no reconto das lendas e histórias ouvidas desde a infância como o acalento da sua curiosidade maravilhada. Eram façanhas sertanejas, e ele próprio em corpo e alma era um sertanejo; mas já o sertanejo que viestes conhecer muitos anos depois, aparelhado de tal gentileza, que, sem aprendizagem, apenas descobria a cabeça de sob o chapelão desabado, e desvestia o trajo rústico e descalçava as botas altas de pele de anta, assomava o gentil-homem no garbo discreto, no módulo dos gestos e maneiras e na graça da palavra; gentil-homem como os que mais o foram em todos os tempos de urbanidade e elegância. E por ser tal, passava como é próprio de toda distinção equilibrada, indistinto na turba dos estudantes. Estudante exemplar, versado nas Humanidades, era dos que mais sabiam as ciências do Direito; se não ostentava o seu saber, não o escondia, e ao contrário gostava de acudir aos que iam pedir-lho na sua república mineira, deleitados em escutar-lhe a voz bamboleada e clara.

Prestados os exames, fechava o gentil-homem nas malas o modelo fidalgo e remontava em horas de viagem um século de civilização, sertanejo de novo entre os sertanejos, caçador aventuroso dos campos gerais e das florestas e conversador incansável dos rudes espíritos da terra selvagem. Era tão abundante a narrativa daquela gente simples, que não foi preciso a Arinos inventar o tema dos seus futuros contos; a memória lhe transbordaria dos ouvidos e dos olhos. Bastava-lhe à imaginação o labor de avivar e consertar o discurso de bardos agrestes, acrescentando-lhes a paisagem, a que os sertanejos eram indiferentes por não a terem visto através da distância. Assim a vira Afonso Arinos e pôde sentir mais do que eles a beleza natural e o efeito dos contrastes. E na duplicidade inocente do seu espírito ingênuo e culto, entregou-se muita vez à admiração genuflexa da natureza, falando-lhe em êxtase e ouvindo-a, que lhe respondia, personificada, ou em vozes misteriosas do deus difuso no universo. Foram porém minutos de panteísmo.

O teor do seu espírito era normalmente o de um épico, narrador objetivo; e as histórias sertanejas davam para encher-lhe todos os quadros. Recordastes-nos o aprimorado desses contos, e a vossa atilada crítica acentuou curiosamente a dissonância entre a placidez dos cenários e a ferocidade das pessoas dos dramas. A explicação deve ser a que sugeristes.
Mas não será também causa dessa monotonia de tragédia a condição emocional e mental do nosso sertanejo?

A sensibilidade humana funciona porventura como o mecanismo de um piano: cordas interiores e um teclado aparente formam o conjunto, que se gradua desde a simples nota até a escala de sete oitavas, com os seus bemóis e sustenidos, o jogo dos pedais, e outros recursos de abafamento e ressonância, e ainda os efeitos da pressão, das pausas, e da agilidade dos dedos que atuam as teclas. Os ritmos são infinitos. Almas há de habitantes cultos dos centros universais que têm a complexidade de uma composição orquestral; e para analisá-la só a ciência do contraponto, se ainda for bastante. Mas no homem do interior brasileiro a alma é rudimentar, e move-se por um teclado de espineta; às vezes tão rudimentar, que não atinge a condição vibrátil de cordas, senão a simples estrutura de um tantã.
Que é que lhe faz o horizonte? A natureza, justamente porque ali está sua expansão total, não tem a multiplicidade dos aspectos, que assume em perspectiva ou recordação, quando nela interfere a obra do progresso ou colabora no cenário o passado histórico. A paisagem é igual e imensa como o oceano longe da costa; só o nascer e o pôr do sol dão as variantes da natureza.

Entre a manhã e noite há uma parada em que tudo entorpece. Opera então o automatismo do instinto: agem com necessidade e maquinalmente as forças da vida, e tudo entra na ordem das cousas fatais. O amor e a morte orgânica são fases da flora e da fauna, inevitáveis e vulgares, e ocorrem sem o recato e a beleza que lhes deu a civilização, sem o valor moral que lhes influiu a concorrência porfiante, sem a amargura ou doçura que produz na cidade o contraste agudo entre a alegria circunstante e o luto isolado. A sensibilidade do sertanejo, como a da planta e a do animal, adormece na inércia da natureza, e só acorda, só se espanta, só vibra nos instantes de crise do dia, ao nascer e ao pôr do sol, a que correspondem paralelamente duas comoções e duas idéias: a glória da força e a morte violenta. São os dois pólos da alma sertaneja, são os dois objetos da sua operação consciente, são os dois temas das suas narrativas monótonas e trágicas.

Conservando essa monotonia na urdidura dos seus contos, Arinos compôs a obra representativa do sertanejo. Não comentou, escreveu-a como poeta, ou por gosto de reassumir, como num parêntesis da civilização, ao cabo também monótona, alguns momentos de afinidade elementar com a rude gente do seu berço. Eram fugas de repouso, mais do que pensamento de ambição literária. A sua consciência de escritor foi um reflexo do aplauso e estímulo de escritores; para ele mesmo foi uma surpresa o seu talento, como notastes recordando o seu encontro com Bilac e Coelho Neto, porventura os fatores da estima daquele engenho dispersivo e descuidado da própria riqueza. Ao aparecer, a assinatura literária de Afonso Arinos deu efetivamente a impressão de um pseudônimo, tão estranhável era que surgisse assim um escritor acabado, dantes não sabido. E o nome obscuro, de um dia para o outro foi renome.

***

Essa circunstância do imprevisto caracterizou também a nomeada, Sr. Miguel Couto, do médico, do professor e do escritor que sois.
Foi um concurso na Faculdade de Medicina que vos revelou à admiração de quantos não vos conheciam, e eram quase todos. Dava interesse vivaz àquela prova do magistério a presença de um candidato, que ao seu mérito reconhecido juntava um vibrante esforço de ambição, e já no curso de estudante, já no estágio de auxiliar docente, firmara a ascensão para a conquista futura entoando a palavra eloqüente e nervosa. Todos sabemos o que vale esse dom verbal nas justas do pensamento, nas quais prepondera sobre o mesmo saber. E saber também ele o tinha, e tinha por si a simpatia dos mestres e o entusiasmo de colegas e os estudantes, cuja assistência anunciava em coro e influía a vitória do candidato. Vós aparecíeis velado na vossa modéstia, vínheis da sombra, e trazíeis na fala o cunho do pensamento solitário, criado no ambiente onde não há auditório que reclame tonalidades musicais de dicção, e a tranqüilidade do estudo afeiçoa o espírito ao vagar e às indecisões da palavra.

Era ao tempo em que, além das provas singulares, os concorrentes contendiam, como nas pugnas de força, entre si, face a face, argüindo-se, travando a porfia da agilidade e dos golpes destros, que desnorteiam, desconcertam e subjugam o pensamento, como ao corpo os passos do combate. Enfrentando o vosso competidor, não recorrestes a nenhum estratagema; usastes, como num diálogo a sós, do vosso saber e da vossa polidez; ao ímpeto nervoso opúnheis a calma, à cilada a defesa prudente, ao golpe atrevido a segurança, à facúndia sonora a expressão substanciosa, ao excessivo a sobriedade, e à ciência. E ficastes vencedor.

De um salto saístes da obscuridade para a fama. Não admiraria essa fama a quem tivesse acompanhado aquela obscuridade, trabalhosa, em que desde a vossa formatura repartíeis as horas entre acudir a doentes e versar os livros até noite velha, num sobrado da Prainha, cujo lampião era o último a adormecer naquelas redondezas, e parecia velar sobre o sono de tanta gente, alheia ao perigo das moléstias insidiosas. Muito retardatário regularia ali as horas pelo relógio de luz da vossa vigília.
Com a crescente nomeada de professor e de clínico, não se alterou essa elucubração noturna.

O lampião de querosene fez-se lâmpada elétrica, o sobrado da Prainha dilatou-se no palacete de Marquês de Abrantes, a clientela da Saúde universalizou-se em clientela de toda a Capital e do Brasil; irradiou o vosso conceito obrigando-vos aos múltiplos deveres de grande pessoa; e todavia, como nos anos de estudante e nos tempos de médico incipiente, continuastes, o hábito beneditino do trabalho, proporcionando as horas do sono às do vosso estudo, não as do estudo às do sono. Não consentis que o descanso vos feche as pálpebras antes de concluída a tarefa cotidiana, ou que ela ainda vos pese sobre os olhos além da madrugada. E quando é preciso conciliar o sono e a escassez do tempo, vós, na mesma cadeira de estudioso, numa postura que disfarça o descanso, governais a necessidade do corpo, iludindo as horas. E assim realizais a tarefa formidável de acompanhar pari passu as múltiplas, diárias, infatigáveis pesquisas e descobertas das ciências médicas que em anos edificam bibliotecas e inundam revistas de todas as línguas, num sem-conto que parece emular a ação das moléstias e da morte. E não me refiro às outras leituras paralelas, que só por si chegariam para encher as horas de um estudioso.

Exaustivo labor é o vosso; mas, o que é extraordinário, do vosso gabinete não saís com a veste em desalinho, que é o distintivo e a desculpa do sábio; nem trazeis o rosto severo e carregado das rugas da meditação. Não vos discerniriam pelo vosso exterior como um erudito. A vossa atitude é a da curiosidade tímida, que não abona para o comum dos homens a posse da sabedoria; a vossa palavra, quando não exercita o dever do professor, sussurra e pergunta, que não recita nem afirma; e o vosso semblante sorri em plácido alheamento de vós mesmo.

Esse é o vosso enigma, e eu quis entendê-lo, e penso explicá-lo – pedindo-vos que me releveis à conta de mau psicológico o meu engano ou a minha indiscrição. Sem o segredo do vosso espírito, eu não atinaria, ainda pressuposta a vossa modéstia, com a causa da inércia em que deixais sobre tanta matéria de composição o vosso talento de escritor. Não vos falece o principal nem o acessório. A erudição dar-vos-ia inúmeros assuntos, além dos que tendes pela observação pessoal. A vossa palavra escrita discorre tão fácil e tão precisa, que nem vos fora trabalho árduo a feitura de obra larga de análise ou coordenação. Nem aí há mister criar da imaginação, e quando o fosse não vos falta a imaginação, nem o engenho de conceber, nem a paciência da pesquisa, nem a perspicácia para interpretar. Contentastes-vos com as vossas lições de professor, que dão a medida do que seria a vossa obra, realizada num pensamento de glória. Sábio, sem o aspecto de sábio; autor em virtualidade, sem a ambição de o ser em grandes livros que seriam razão de orgulho para a medicina brasileira; erudito, sem intolerância; penso ter achado a solução do vosso enigma: vós sois um cético.

Atendei a céticos e céticos; e não pode haver absoluta conformidade em todos os que se destacam por uma característica; dentro de uma expressão distintiva há muitas variedades a que não corresponde a nossa escassez idiomática. Sois a um só tempo um crente e um cético: sois crente pela ação e pela vontade; cético, pelo próprio efeito do vosso esforço e da vossa inteligência que vos ampliou tanto o horizonte espiritual, que o vosso olhar dilatado pôde sentir o infinito desdobrar-se sobre o infinito. Essa é a fatalidade da sabedoria.

No campo visual dos que se demoram na planície, tudo é concreto e acessível; e a mesma ilusão ótica se afigura em miragem palpável. Mas vós quisestes ascender à montanha, e cada colina transposta vos descobriu outras colinas; e a curiosidade vos impeliu, além, a cimos sucessivos, que são como escalões, a surgir, onde parecia haver o pouso da fadiga esperançada. Tendes a certeza da realidade que ficou sob vossos passos e aos que debaixo vos olham e acenam, falais com a experiência liberal, que não recusa os proveitos colhidos e prodigaliza estímulos para o trabalho consolador e benéfico. Essa é a linguagem do mestre nas lições que vos obrigastes a dar aos discípulos. Formulais, sem faltar à sinceridade, os conselhos judiciosos, que eduquem o caráter profissional, e proferis a vossa profissão de fé na ciência, com o nobre objetivo de emudecer a vossa dúvida; porque em espírito bem nascido, como é o vosso, a dúvida mal apontada se circunvolve e subjetiva; e é da probidade mental que ela seja a última revelação nos lábios de um mestre.

Mas a sós convosco não ouvis resposta a muita interrogação; turva-se o vosso olhar fitado pelos horizontes imensos, que serão circunscritos em outros horizontes imensos; sentis, sem evocá-la, a aparição de realidades desvanecidas; e interpretais a inanidade dos maiores esforços do conhecimento. A própria ciência positiva que do homem, ser efêmero, verme diminuto em proporção à Terra, fez um mundo infinito de vida e elaboração de outros seres, essa mesma ciência descortinou o inacabável, e com os aparelhos de engrandecimento dos infinitesimais deu o primeiro degrau da escala de um novo desconhecido ao termo incognoscível.

Nessa condição de sabedoria dolorosa Fausto fez pacto com Mefistófeles. Vós, se outra fosse a vossa estrutura moral, vos contentaríeis com a negativa zombeteira, ou então com o dogmatismo, que muita vez dissimula a certeza da ignorância e outras vezes é uma forma de acomodação da ironia; vós, porém, fizestes o vosso pacto com um anjo de Deus, e na arte da Medicina achastes a ocasião de exercitar as forças do vosso sentimento.

Na Medicina a afirmação de uma verdade pode ser erro ulterior; a bondade é que nunca é falaz. A lei da ciência, a da ciência suprema que é a da vida, habitua à insensibilidade. Não há para vencer a repugnância do sofrimento como versá-lo e inquiri-lo; e para não sentir o horror da morte e alhear-se do seu mistério, basta assistir-lhe com freqüência à operação e explicá-la. Para os homens de ciência, que agem por exclusivo amor da ciência, as criaturas que sofrem não são mais do que objeto de experimentação e de prova, tão fria é a análise, tanto o poder absorvente do raciocínio. Mas à beira de um leito, ao lado de um sofrimento, o mestre e cientista que sois, se não basta a ciência, e vedes que não basta, cede o lugar ao poeta da bondade; e consolando o sofrimento, hauris o sofrimento, dando a saúde exultais de saúde, e diante da morte padeceis de morte duplicada, porque ainda aí tendes de simular a esperança da vida.

Mas, para que hei de estar a retratar-vos com outras tintas que aquelas mesmas de que usastes há pouco ao narrardes a reprodução do “suave milagre”? Ainda nos ressoa a doçura das vossas palavras.
Antes, em outro lugar, já tínheis revelado o vosso segredo, fixando, como norma profissional do médico, a bondade. Foi quando, ao fim de uma lição, dissestes aos estudantes de Clínica:

A vossa missão é correr pelos outros e a todos os momentos, pois tão sutil, frágil e delicada é a organização humana que mais admira que resista do que pereça. Não vos esqueçais então que se toda a Medicina não está na bondade, menos vale separada dela. A ciência poderosa vence, domina, aniquila o sofrimento e recolhe entre bênçãos para a vida o condenado ao último dia; mas a bondade mitiga, consola, acaricia e, sobretudo, mente; resignada perante o mal irremediável, aponta a Canaã de um bem que nunca virá.

É fácil pregar o conselho; mas praticá-lo só é dado aos que são o que sois; e ainda fostes além do que pregáveis, provando que a só bondade pode às vezes ser toda a Medicina.
Não vos escapou o sentido técnico da metáfora de Platão, que no Banquete definiu a Medicina como a ciência do amor nos corpos; mas o vosso sentimento acrescentou-lhe outro sentido, e realizastes a sua definição como a música do corpo em sofrimento, arte e exercício da poesia atual, em que parece ir-se desdobrando a vossa finalidade humana.

A outra poesia, a do escritor, essa vós a escondíeis aos olhos e ouvidos alheios. Acreditamos todos na vossa confidência de há pouco, mas tínhamos a suspeita e agora a certeza de que essa confidência ficou no primeiro passo daquela aventura de amor. A furtiva janela que se abriu sobre a habitação vizinha, ou não se fechou de todo, ou antes de fechada deixou passar a luz dos olhos de crispa. Acolheram-na olhos curiosos, e retina que essa luz feriu, não se lhe apaga mais a imagem. Que importa que se tivesse engradado a janela a sete chaves? Vivia a imagem, e deixai que vos diga, ainda que o sabeis, é sob os entraves e obstáculos que se forma e cresce o amor: e feito o amor, já não prestam as janelas de namoradas, pois que já se foi o tempo das escadas de corda; prestam as portas escusas ou largas, e mais as escusas do que as largas, onde o corpo se esgueira nas fugas e contrafugas, que dão perpetuidade ao enlevo, ao susto, ao encanto das primícias do amor.

Emudeceu a confidência, onde a vossa gravidade de professor e grande médico já não consentia quebras de discrição nem assomos de vaidoso. Mas agora que estamos, não em conferência de sábios, nem na outra vossa Academia, senão nesta Casa, da qual só está proscrito o mau gosto, quisera que me respondêsseis sem disfarce nem pejo se vos disseram ou fostes vós que sentistes aqueles fluidos e amavios, e o mel dos lábios, o aroma da cútis e a formosura do corpo. Como experimentado falastes, de tal modo se traiu a voz que os dizia, e tão suave foi a palavra, que nos recordou a doçura do sonhar acordado e cantar sonhando. Não sereis tão impertinente que conjeture os vossos devaneios, nem as horas de colóquio, por longos anos desses amores escondidos, e alongados, porque escondidos. O que vos afirmo é que esse amor foi fecundo; e tivestes de render-vos à evidência do que a pesar vosso veio à luz.

Mas ainda aí, por muito que se saiba e se imagine, é notável que um escritor, fora da literatura e sem ambição literária, apresente o que não consegue o esforço de muito obreiro das letras em anos seguidos de aspiração. Não pelo volume. Apenas algumas páginas, ocasionalmente escritas, quando não vos era possível deixar de escrevê-las; ou algumas cartas íntimas, ou um aviso de longe mandado aos incautos da defesa da pátria. Ninguém adivinharia, no vosso trato pessoal, em que procurais sumir dentro de vós mesmo o que pudesse denunciá-la, a vossa cultura literária e filosófica. Não ficou esquecida a grata surpresa exalada de uma carta escrita há anos, de Cambuquira, onde o médico, então enfermo, convalescia. Ouvi vós outros a graça e melancolia destas palavras, e vós, o autor, perdoai a minha indiscrição, e habituai-vos desde agora à indiscrição dos homens de letras.
Eis alguns trechos:

...posso também, com a mesma sinceridade, definir a minha existência, um grande projeto irrealizado. Talvez receba atônito ou incrédulo a minha confissão, tão diferentes parecem as nossas índoles. É que a solidão, isolando o homem, despe-o das suas exterioridades, e ele próprio, não raro, só então se enxerga pela primeira vez como realmente é. Ora, metade da medicina se dirige imperativamente ao sentimento para o levantar, e neste mister de todos os momentos o médico se envolve por tal forma na ação e nela se absorve que acaba julgando-se um forte, para quem não há na vida irrealizáveis. Um dia chega-lhe a desilusão...

A minha impressão foi magnífica de Cambuquira. Passei aí mais de um mês seqüestrado; depois embrulharam-me da cabeça aos pés em um xale, atiraram-me para dentro de um automóvel fechado, e deste para o interior de um carro de estrada de ferro, com ordem de caminhar para o infinito; só aqui me senti solto...
...No fim de uma semana tudo me enfarava na sua monotonia, até as rosas eram sempre deliciosamente belas.

Só uma coisa até hoje me arranca da nossa melancolia (desculpe o plural), é o carro de boi; ele nos conduz à meditação das coisas mais transcendentes, e até a sua cantilena eterna ehn-ohn... ehn-ohn... me enche de alegria. Como eu vejo nele nitidamente expressa a filosofia da vida! Que é esta senão uma canga que recebemos, cedo ou tarde, e temos de ir carregando, morro acima, morro abaixo, candeeiro na frente, até a morte? Oh! o candeeiro, solene e convicto, serpeando para um e para outro lado, escolhendo o caminho por aqui, por aqui, como é pitoresco!

...Nem os livros que trouxe me têm valido. Várias Histórias do grande Mestre, sempre interessantes e intangíveis, mas lidas e relidas. Não sei mesmo por que as trouxe, – talvez um ato subconsciente de respeito...
... Duas outras obras também meti na mala. Sociedade e Solidão e Sete Ensaios, de Emerson, solene e convicto, escolhendo caminho, a dizer à Humanidade – por aqui. Desde que os li, ao meu espírito combalido pela melancolia, começaram a aparecer, irreverentemente confundidos, o profundo moralista e o humilde candeeiro, com a sua vara pontiaguda...

Esta carta já era escrita por pena, que não é das de aço e fora do mercado, senão cânula de ave, apontada e afeiçoada pelo autor ao jeito menos dos dedos, que do pensamento; do que vos saiu uma pena de estilo. Nas idéias, as vazadas no improviso e descuido de uma carta, pode-se aquilatar, pela associação em que se entremeiam, o valor de um espírito: aquele rude carro de boi em rápido símile da humanidade, aquele candeeiro emparelhado ao filósofo moralista dos Sete Ensaios esboçam um livro e a autonomia e personalidade do pensamento que os aproximou de relance e de tão longe.
Já não foi surpresa um artigo de crítica lido anos depois, foi um gozo de sentir a perfeição nas suas linhas sombrias, cheias, discretas e elegantes. E a perfeição renovou-se em cada discurso feito pelo paraninfo de doutorandos, ou pelo Presidente da Academia de Medicina.

De cada vez pensava eu em Machado de Assis, com pena de que ele já não pudesse partilhar o prazer da boa nova, não tivesse ocasião de repetir o convite, como fizera por igual motivo a Afrânio Peixoto, para virdes proferir tais discursos nesta Academia. Depois, à instância de amigos esclarecidos, reunistes em volume as Lições de Clínica Médica; e esse volume, que é também de lições do idioma gentil, e mais aquelas páginas soltas e peregrinas, foram as vossas credenciais para vos sentardes, entre os sabedores do vernáculo como um sabedor, e entre os escritores de estilo como um estilista.
Com esses títulos, os vossos admiradores mais por admiração do que por amizade, e mais pela Academia do que por vós mesmo, conseguiram combater a vossa teimosia em ocultardes sob a fama do médico e o exclusivismo da profissão o vosso crédito maior na representação do pensamento. Se era amável e respeitável o médico, o que mais nos interessava e devia pertencer-nos era a companhia do vosso espírito. Parecia-nos uma honra para o sentido da nossa seleção o possuirmos como um dos nossos o escritor que em breves páginas de circunstâncias demonstrara com a plena arte da palavra uma personalidade de emoção e do pensamento. É isto o que sobremodo vale no ofício das letras.
O escrever bem é condição especial, mas não é tudo, e às vezes é demais.

O escrever só por escrever é um exercício inocente; e não há que objetar-lhe se ele se opera silencioso como um entretenimento pessoal, como um motivo de ilusão, para esquecer tanta coisa que é preciso esquecer no curso da vida. O mal é que não se contentam com este proveito os que escrevem por escrever, e podem e forçam a audiência alheia: e a tipografia serviu-lhes ao desejo, e tornou possível o desvirtuamento das letras em profissão. A profissão literária, degradando a nobreza do pensamento criador ao nível do mister mercenário, a instrumento de venda a retalho e a varejo, deve causar aos espíritos sensíveis e sinceros o desgosto da mecanização da imprensa.

Tanto é o torvelinho intelectual que produz a vertiginosa publicação dos livros, em concorrência ao mercado, e, como nas feiras, com todos os engodos, reclamos e atavios de sedução foram de invejar os que viveram ao tempo em que o pensamento criava em presença da vida, quando a beleza transfigurada nas criações anteriores se transmitia como música de ouvido a ouvido, ou a maneira oracular nas palestras, ou era depois fixada em pergaminhos e papiros, com a solicitude e o respeito de relíquias sagradas. A posse de uma cópia manuscrita era uma fortuna e uma bem-aventurança.

Naquele tempo, a flora do pensamento vicejava num delicioso campo aberto, de árvores grandes e alamedas batidas da luz direta do sol; surgiam arbustos espaçados, que davam a graça da vista, a flor e o perfume: as árvores grandes davam sob a sua sombra o repouso, e davam frutos, generoso e vivificante. O espírito perlustrava aqueles caminhos sem pressa, contente de espacear, e ora colhia o fruto no próprio galho, ora surpreendia a flor na sua viva fragrância, ora pousava na alfombra em descanso, que lhe permitia espraiar os olhos pelas alamedas claras, até além no horizonte remoto.

Hoje a flora do pensamento é uma floresta imensa; a ordem da natureza cedeu à força da abundância feita menos pelo tempo repousado que pela semeadura artificial e intensificada das máquinas. Nenhum vestígio das alamedas soalheiras, que atraíam os passos e guiavam para as árvores altas; em frente à floresta queda atônito o espírito perplexo na escolha e à procura de uma aberta e de uma trilha; não distingue o caminho; entre o folhedo e a ramada não consegue ver o sol; arma-se dos instrumentos, e à custa de labor e fadigas, rompe os primeiros obstáculos da penetração, ansioso por alcançar as árvores seculares, que essas ele sabe que olham em cima o firmamento; mas ao labor não responde o êxito; e a floresta já é brenha e matagal numa luxúria de produção que levanta do solo e rebaixa dos galhos, e enlaça de tronco a tronco muralhas espessas.

Redobra o labor, recresce a fadiga, acelera-se a ânsia, vencem-se alguns passos na aberta; e eis que o obreiro se surpreende contido, presos os braços na postura do golpe, peadas as pernas no impulso do esforço; não há prosseguir, não há retroceder, porque cada gesto, cada movimento mais o enleia na maranha dos cipós, que súbito o apreenderam com uma rede de caça. E ali permanece o espírito, envencilhado, e ao fim resignado a só espreitar de longe a cortiça das grandes árvores buscadas, olhando-as pelos claros que ainda não logrou fechar a garra das parasitas. E assim, na riqueza amazônica da flora do espírito, o espírito se há de contentar, sem outra esperança, com o espetáculo e o contato do cipoal; o mais está fechado ao seu desejo.

Não inspira esta apocalíptica visão o desespero de uma esterilidade, o despeito de uma desídia, o desamor de uma inveja. Fala-vos a amargura de uma ânsia de luz, que renova no domínio do pensamento os suplícios ideados pelos deuses para o maior castigo do homem. Há muito espírito que no silêncio de uma vida de estudo reproduz a condição e o estado de Tântalo e de Sísifo.
Nem os próprios gênios, que são como Deus, criadores do nada, ficam imunes do torvelinho do dilúvio. Schopenhauer queixava-se do mal que lhe fazia a sua Alemanha livresca, e profligava o erro dos que escrevem por escrever e dos que escrevem muito. “Para a posteridade, dizia ele, é longa a viagem; e o caminhante só irá seguro, se for escoteiro, depois de atirar à estrada o excessivo da carga.” E acrescentava a palavra espanhola de Graziano: “Lo bueno, si breve, dos veces bueno.”

Vós, Sr. Miguel Couto, como escritor de algumas páginas já feitas, e de outras que haveis de fazer e vos pedimos, não tereis trazido à flora do pensamento nem parasitas nem cipós: mas arbustos arborescentes, e porventura alguma árvore em que o espírito achará para colher flor de perfume e fruto de polpa. Porque sois dos que escrevem para dizer alguma coisa, aprendida ou concebida, sem o propósito de logo dizer-se. O vosso espírito não tem só a latitude da profissão nem a do momento. Sois médico e professor de clínica: viveis fora da política; e no entanto um político encontraria um programa de princípios e uma síntese de ética num pequeno escrito vosso, como nesta página de oportunidade perene:

Há uns tantos princípios, de ordem moral ou política, que só eles preservam o futuro de uma nação e a conduzem a seguros destinos. Na ordem moral só o estilo supersticioso da justiça, o sentimento de uma lei superior a cada um e igual para todos, a reverência aos seus magistrados como entes quase divinos, mantêm os homens unidos em uma sociedade, e só a instrução tão elevada quanto possível desses homens lhes dá a consciência do seu valor. Na ordem política só a obediência à vontade do povo, pela garantia absoluta do voto, expressão normal dessa vontade, aniquila os apetites oligárquicos e conserva a forma representativa; só a segurança da nação no seu território permite a tranqüilidade no trabalho, principal fator da sua grandeza. Sem estes princípios e estas garantias, de que servem progressos materiais, estradas de ferro, avenida, indústrias, de que valem as virtudes de um povo, se ele está desunido e desarmado e tem as suas portas escancaradas à cobiça dos mais fortes?

Sois médico, e nunca vos cobriu outra farda senão essa, ornamental e pacífica; sois por índole o menos guerreiro dos homens, e contudo, naquele mesmo escrito, aprenderia um militar a organização militar do Brasil para a eficiência da guerra, como profilaxia da peste rubra. Assim definistes a grande moléstia humana, em páginas comovidas e clarividentes, que não teria escrito um retórico, mas que assinaria com prazer um moralista, um sociólogo, um poeta. Nos vossos escritos o historiador deparará visão pessoal da história, um filósofo pontos de luz que a vossa retina guardou. Mas sobretudo a bondade achará o com que se fortalecer na sua prática; e todos encontrarão a serenidade que se difunde suavemente na alma, com o gosto de entender e o encanto de sentir.

De Francisco de Castro escrevestes um dia que ele dava razão a Renan quando este dissera: “A inteligência é um conjunto tão bem ligado em todas as suas partes, que um grande espírito é sempre um grande escritor.”
É o vosso caso tal qual; e porque sois assim, tivestes o respeito sagrado do vosso pensamento, e não quisestes para as vossas gemas outro engaste que o de ouro de lei nem outro escrínio que o do melhor veludo; e não houve cansaço, nem folga que vos detivesse do labor paciente de ir às fontes da língua para infiltrar na vossa expressão a pura ausência da linfa e comunicar-lhe o boleio com que ela influi na música nativa. Parece aos que lêem que Vieira e Bernardes são os vossos livros de cabeceira, se fora possível que a vossa mesa de cabeceira comportasse esses clássicos velhos, e mais os vossos familiares Horácio e Sêneca, e outros mais recentes companheiros que se contam por dezenas.

E admirável ainda é que estudais os fatos da língua sem pressa, com a atenção e o cuidado do clínico para os seus enfermos em leito, e com a mesma observação dos mínimos acidentes e a mesma graça alerta que tempera o olhar reflexivo do médico. Para entender nesse particular o que vai ser a vossa colaboração em nosso dicionário, basta ler as notas que apusestes às Lições de Clínica, notas de lingüista erudito, sem preconceitos, e liberal.

E por isso a vossa linguagem é um padrão de bom senso e bom gosto, mistura elegante do velho falar português com as modalidades do novo tempo e do nosso clima. Conservais a forma clássica desembaraçada para o movimento que lhe imprime a vida. Na vossa palavra sem o som estranho, mas sem a ênfase originária, canta a doçura do acento brasileiro, que é o embalo do nosso espírito.

Era também assim a palavra de Afonso Arinos, e a vossa voz, que subiu, lhe terá levado, com o vosso louvor, a suavidade do que ele tanto amava; e ele sentirá que continua entre nós, colaborando na nossa companhia, pela presença e pela ação do vosso espírito harmonioso, feito de força, de beleza e de bondade. Vede como nos sois bem-vindo a esta Casa, que já vos tinha há tanto tempo como um dos seus eleitos.