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Discurso de posse

Elevando-me a esta culminância parece-me sentir a exaustão de uma longa caminhada. De onde vim para chegar até aqui? Que ásperos caminhos interiores rasguei, pisando vivos pedaços de alma, para não faltar a este encontro marcado a mim mesmo num puro sonho de mocidade, quando a sagração acadêmica era o prometido quinhão de glória destinado a coroar esta dedicação integral às cousas do espírito num esforço que adivinhava ser largo e ser rude?

Ingênuo era o moço que tal se prometia não levando em conta a desproporção da recompensa diante da indigência de suas possibilidades. Tinha, porém, a desculpá-lo, a precoce intuição da vossa generosidade.

Vós, heróicos caminhantes de peregrinações anteriores, viestes esperar-me nesta cumeada. Brilha nela o sol da imortalidade. É aqui a zona neutra do espírito na qual os mortos estão vivos, porque mortos e vivos realizam o milagre terrestre da presença perene dentro das suas criações de arte. Penetro, finalmente, no sentido da vossa “imortalidade”. Ela existe em função da vossa constância, que é soma de crença, de trabalho e de criação e, depois, sucessiva substituição de alma por alma, quando um corpo exausto a devolve à perenidade das memórias e o outro corpo a recebe como o archote inda intacto recebe, do que se extingue, a alegria festiva da chama!

Resgate de uma dívida

A glória desta Academia me reconduz a um ensolarado trecho de juventude, na Itapira dos céus inconfinados, com seu parque suspenso como um jardim babilônico sobre as escarpas de Cubatão, mirante destinado a mostrar as cambalhotas líquidas de que é capaz o Rio do Peixe, as tonalidades verdes que enriquecem a várzea e a fascinação nômade dos acampamentos dos ciganos. Agita tudo isso – memórias de homens e desenhos de paisagens – uma tão espessa rajada de lirismo e de saudade que traz nas suas asas a música ingênua das estrofes dos Poemas do Vício e da Virtude, balbucio inaugural de minha descolorida aventura literária, livro de estréia que Souza Bandeira paraninfou.

Eu me lembro de duas mãos trêmulas, rasgando um envelope que possuía algo de terrível e de mágico: a chancela desta Casa. Lembro-me da letra firme do mestre inesquecido, letra que um grafólogo catalogaria entre as dos homens leais e sem mistério; do palpitar louco do coração daquele rapaz de dezessete anos depois de ler tão suspirado prefácio. Quem diria que a esse rapaz, poeta provinciano, fora dado, no seu crepúsculo, atingir esta altitude, não para vangloriar-se nela, mas para relembrar como foi generoso para com a mocidade aquele companheiro morto. Quis apenas resgatar velha dívida reverenciando, com esta referência pessoal, na porta da Academia, a sombra amiga daquele que me abriu as portas das Letras.

Democracia espiritual

Senhores acadêmicos, aqui estou, um pouco ofegante, porque toda a subida é, no fundo, uma canseira. Não tenho ainda prática deste Olimpo de deuses terrestres, nem pude respirar com fartura este clima de imortalidade. Por instinto, porém, mais que por experiência, posso imaginar que nos é dado aqui, com mais serenidade, embora não sem melancolia, avaliar melhor todo o passado esforço. Não há como conduzir vaidade para esse auto-ajuste de contas uma vez que já se entra por aquela quadra da vida em que as primeiras sombras da tarde, senão as primeiras trevas da noite, tiram ao contorno das paixões suas pontas mais agudas. É condição humana chorar sobre o próprio sucesso. Esse tributo de lágrimas que a emotividade presta à própria glória tem a força de um símbolo: é a contrapartida de angústia, de drama ou de decepção, que causa a todo homem qualquer forma de realização de si mesmo.

Para mim, a maior dor neste instante tão decisivo para minha vida é não ter o meu pai a meu lado. Eu poderia evocar, neste momento, sua tímida figura de imigrante. Ele está morto. A terra brasileira tem agora seu corpo como teve, antes, a sua alma. Essa evocação não seria uma festa íntima de memórias: seria uma tese, a tese da democracia brasileira, democracia que é simbiose de raças, fraternidade humana, solidariedade das criaturas de todos os quadrantes do mundo na terra mais livre do universo.

Eu imaginaria o navio chegando ali por volta de 87, atracando no cais de Santos, num porto fumegante de cargueiros alinhados em trapiches de tábuas e ainda sem o milagre profilático de Emílio Ribas e Osvaldo Cruz, não sonhando com o esplendor orgiástico e cosmopolita dos cassinos e tendo a barrar o céu a sombra verde e impressionante dos contrafortes da Serra do Mar, nos quais parece entrincheirar-se o planalto contra a repetida audácia das múltiplas entradas.

Seria uma criatura assustadiça e escoteira, tomada de pânico diante da terra-enigma, com o complexo do expatriado na alma, com a timidez do meteco nos olhos, com uma alerta reação de defesa em cada ângulo do espírito. Seu drama seria igual ao de centenas de milhares de criaturas desraizadas dos seus lares pela necessidade, pela inadaptação de seus espíritos libertários dentro de velhas civilizações estagnadas ou reacionárias ou por uma inquieta e fecunda sede de aventuras e de panoramas.

A causa não importa. Importa é a conseqüência. A conseqüência, na generalidade, é isto: uma paga de muito amor à terra que lhes deu guarida, paga de amor que, por misteriosa hereditariedade, se torna mais violenta na progênie.

Lembrei toda esta história, para explicar a carga de paixão pelo meu País que ficou no meu espírito e que palpita em todas as pobres páginas que escrevi em verso e em prosa. Meu incandescente nacionalismo talvez tenha sua raiz subconsciente numa gratidão ancestral pela terra farta e rica que não se trancou esquiva ou egoísta ao forasteiro que veio de longe, galopando nas ondas do mar, à procura de uma pátria nova. Não ignoro que, num país que tem pouco mais do que quatrocentos anos, todas as famílias podem guardar o nome do navio que conduziu de além-oceano os seus antepassados. A gloriosa aventura cabralina inda se assinala, num calendário contemporâneo. Há nos Pereiras e Albuquerque, nos Cavalcantis e nos Dórias, nos Wanderleys e nos Cochranes, o longínquo sotaque luso, italiano, holandês ou britânico, que seus heróicos progenitores trouxeram dos rincões nativos. É justo, entretanto, que os que não têm, no mesmo Estado que nos serviu de berço, os “quatrocentos anos” de planalto que ilustram o brasão patrício de gloriosas vergônteas bandeirantes mas sentem no corpo e na alma aquela funda solidariedade humana que vem de alguns milhares de séculos de convivência dentro das mais tremendas vicissitudes da História, que, ao se lembrarem da gasalhada oferecida aos peregrinos de outras plagas, tenham orgulho de pertencer a uma pátria assim generosa e assim livre. Essa é a alma das Américas! Esse é o exemplo humanitário das Américas! Esse é um título de honra e de glória para o Brasil.

É por isso que amamos e adoramos este Brasil, pátria de todas as liberdades, matriz viva da democracia concebida na mais pura, mais vasta e mais humana das suas formas, a fraternidade, isto é, a união, a solidariedade e a cooperação das criaturas numa comunhão na qual foram eliminados todos os preconceitos que dividem os homens. Aqui Sem, Cam e Jafet não trancam as entradas das suas tendas neste colorido acampamento para que seus filhos se cruzem, operando-se assim o mais belo amálgama étnico da História. Aqui, realizando a admirável imagem de Alberto Torres, o mito de Babel se inverte para operar-se não a confusão, mas a fusão das línguas. Aqui os deuses de todos os céus do mundo saem das suas catedrais, sinagogas, templos e mesquitas para se confraternizarem na sublime essência de um Deus único, cuja religião é a solidariedade entre os homens. Aqui não há a estulta patrulha do orgulho racista a indagar aos que, através do caminho oceânico, vêm bater à nossa porta: “De que recanto do mundo trazes o pó das tuas sandálias?”

É que, por força de um destino, foi irradiado, de uma terra fadada à mais extraordinária experimentação social, um chamado festivo dirigido a todos os espíritos livres, a todos os proletários de boa vontade, a todos os temperamentos aventureiros e imaginosos, a todos os homens que sonhavam com um estilo de vida inédito e liberto. E, atendendo a esse chamado, por mais de quatro séculos, homens de todos os quadrantes aqui foram-se reunindo dando como resultado este maravilhoso Brasil, nossa Pátria, terra da esperança no mundo.

O drama de uma geração

À minha geração foi dado um triste lugar no mundo. Surgiu ela para a consciência social no instante dramático em que a estrutura de um ciclo histórico rompia-se mercê da revolução da técnica. A Arte – que é uma constante sondagem do espírito em todos os setores da atividade humana – denunciou essa quebra de ritmo antes que a ordem burguesa tivesse consciência do cataclismo. Fomos bruscamente atirados para a zona vulcânica de terríveis reajustamentos. Nessa fase, que implica na quebra de velhos quadros políticos, estéticos e sociais, cabe aos artistas procurar os novos rumos.

É natural que tenhamos cometido muitos erros. Rasgar caminhos no desconhecido é, possivelmente, tomar atalhos que desbordam no abismo, mas ninguém negará bravura a essa caminhada conduza ela às verdades do futuro ou aos erros do momento.

Nossa luta consistiu em alargar o campo das nossas liberdades cada vez mais comprimido pelo próprio gênio criador da humanidade. No setor da economia, assistimos ao gigantesco desenvolvimento da máquina e ao subseqüente antagonismo entre a máquina e o homem e ao crescente verticalismo plutocrático em oposição ao crescente horizontalismo da miséria. Sedentos de justiça social batemo-nos por uma mais intensa democratização das massas num sentido efetivo e largo, o que importava em povoar de alguns pesadelos a letárgica noite da burguesia.

Como se vê, as descobertas da técnica não ajustadas à ordem social implicam em novas formas políticas. Por outro lado, essa mesma técnica, no campo espiritual, torna-se uma prisão e uma limitação. Encurtando as distâncias, encurta o mundo. Explicando os mistérios, esvazia-os de toda magia. Esteriliza e limita. O desconhecido foi sempre uma área de infinito disponível à imaginação do homem para a realização da sua plenitude dentro do domínio plástico e sedativo do fantasioso. A ciência, ao tempo que amplia o domínio dos conhecimentos, reduz a uma realidade sem margem de mistério um pobre mundo positivo e explicado. Dentro da sua aridez racionalista somente poderia surgir uma geração céptica ou revoltada, se não tivesse ela a virtude de ter sido revolucionária e heróica. É que o trabalho de redução de um superado estilo de vida implica no aniquilamento de todo um sistema de idéias, de processos e de formas pertencentes a um caro e doméstico quadro de valores morais, políticos, estéticos e sociais que é mister recompor.

Diante desse novo mundo racionalizado dentro de um excesso de objetividade, que traz como conseqüência, tal qual observa Thibaudet com relação a Voltaire, “um caos de idéias claras”, teve nosso instinto que procurar renutri-lo de lirismo. Todo nosso esforço tem consistido em descobrir, nesses escombros do mundo que nós mesmos ajudamos a destroçar e nos vagos lampejos da Era Nova que nasce num monstruoso parto de sangue, a sua íntima e prodigiosa poesia. De fato. Pensando bem, nunca foi o mundo – este mundo esquematizado pela técnica e planificado pelo cientificismo – mais torvo e enigmaticamente poético no seu cataclísmico drama. Superamos Ésquilo. Renteamos João, o visionário de Patmos. Não há nada que contenha mais sobre-humana poesia que o Apocalipse. A época é nitidamente apocalíptica. Há um sentido oculto em todo o desdobrar pavoroso de eventos. Veremos arcanjos nos céus tocando as trombetas das anunciações. Não serão anjos de cinema: serão as potestades das profecias, forças concretas do destino aguardando sua hora num debrum de mundo ainda não devassado pelos instrumentos científicos.

Procuramos renutrir o universo com poesia. Na ordem econômica, encontramos a poesia das reivindicações sociais, poesia de massa, largo coral prodigioso de solidariedade humana. Na ordem política pusemos em campo todas as pesquisas numa inquieta e fecunda procura de mais eqüitativos e mais livres processos de convivência, procurando aí a poesia da cooperação e da camaradagem. Na ordem estética quebramos os velhos moldes rígidos em que o verso, como o coral, se calcinara na parada monotonia do desenho duro e exterior. Transpusemos as fronteiras do subconsciente e do supra-real, incorporando uma vasta área de pura sensibilidade e de valores mágicos ao patrimônio anterior criando assim novas possibilidades e novos ritmos. Esse trabalho ousado e renovador teve seu ponto de partida na revolução modernista de 1922, data expressiva por assinalar o primeiro centenário da nossa independência política e por tornar-se um marco divisor de duas épocas assinaladas por duas mentalidades.

Sinto orgulho por ter pertencido a esse pelotão de vanguarda na revolução do pensamento brasileiro. Disse “pensamento brasileiro” no seu sentido universal, porque, dentre vós, Cassiano Ricardo – que foi, com outros acadêmicos, nosso companheiro –, enquadrando-se na falange revolucionária que já se rebelaria contra o regime estético reinante, declarou, em oração que ficou famosa em meu Estado: “Esta revolução não se restringe aos arraiais da arte: ela atingirá, sobretudo, a estrutura política.” E podíamos acrescentar mais tarde: ela marcha frontalmente para o campo social.

Lá estão, na atormentada história da elaboração do pensamento novo, nas idéias dos seus grupos e na movimentação polêmica das suas dissidências, os germes de todos os caminhos e descaminhos ofertados como hipóteses de solução a este momento crucial da Pátria. Uma fecunda angústia nutriu-os de certa ou errada vocação profética no nobre intuito de querer antecipar para o nosso povo a forma social do seu amanhã, procurando entrever, ainda na sua matriz confusa e hoje sangrenta, as linhas que marcarão o perfil da Era Nova.

Meus numes tutelares

Senhores acadêmicos,

Três nomes estelares debruçam-se em constelação sobre a cadeira que vossa generosidade me destinou: Manuel Antônio de Almeida, Inglês de Sousa e Xavier Marques. Sob céu tão estrelado vai abrigar-se um poeta caipira e canhestro fabulador da terra dos cafeeiros. Tudo falta ao substituto: o “humor” do primeiro, a paisagem de magia em que viveu o segundo e o clarão solar que iluminou o terceiro.

Sentando-me, porém, na Poltrona azul, o primeiro dos seus patronos me impõe logo sua presença de mestre. É com ele que devemos aprender como se faz um romance brasileiro. Manuel Antônio de Almeida – com as Memórias de um Sargento de Milícias – é cartaz de hoje. Xavier Marques, ao registrar a estranha força dessa obra, que vara um século e se reatualiza como se a escrevesse romancista de agora, observa: “Saiu assim a pintura de Manuel de Almeida tão viva e tão natural que a crítica de hoje, apesar de nosso vigoroso rigorismo em arte, de boamente lhe revelou o desalinho da frase e a inconstância da forma, tendo por excelentes compensações a veracidade e a fidelidade com que foram reconstituídas as figuras corriqueiras da velha sociedade carioca.”

Naquilo que o mestre baiano veladamente censura, talvez residia o segredo da atualidade surpreendente do novelista carioca. “Naturalidade na exposição – segundo Silvio Romero –, viveza no diálogo e nas cenas descritas”, “nacionalismo do assunto e das cores do quadro”.

Eis onde queria chegar: aos ingredientes substanciais que dão a um romance brasileiro seu verdadeiro corpo e alma: “nacionalismo e naturalidade”. Nacionalismo é marca espacial, destinada a localizar uma obra dentro de uma zona da história; naturalidade é sua imersão na verdade humana, limpa do pecado do intelectualismo. A obra de arte populariza-se tanto mais quanto mais tenha naturalidade. De outra parte, universaliza-se tanto mais quanto mais exprima nacionalidade. Torna-se, dessa maneira, documento vivo, isto é, parcela original de um processo humano a somar-se ao acervo universal da Cultura, como contribuição inédita da expressão vital de um povo em dado instante da sua história.

Se Manuel Antônio de Almeida era, através das suas criações, um mestre de boa brasilidade, não menos o foram Inglês de Sousa e Xavier Marques. Pedaços vivos do Brasil, os três romancistas fixaram nos seus livros: a capital do Império na pitoresca fase colonial, o fabuloso cenário da Amazônia e a Bahia sempre tão variada e tão rica de módulos de vida nacional.

Seus temas são os da terra e do homem e seus problemas são os da nossa comunidade. Seus personagens não ficam com os pés no Brasil e a cabeça na Europa. O destino de Leonardo, o futuro “sargento de milícias”; o drama do padre Antônio de Morais, de O Missionário e a evolução de Nazário, em As Voltas da Estrada, são três posições do homem brasileiro dentro de três ambientes nitidamente nossos. Na capital ensolarada e alegre, é a movimentação jovial de uma plebe pitoresca, tangida às vezes pelo bengalão do Vidigal, mas sequiosa do prazer ingênuo de apinhar-se em torno dos andores do Espírito Santo ou de cheirar a pólvora queimada dos fogos de artifício no Campo dos Ciganos. Na dramática Amazônia é o pasmo e o silêncio do homem diante do obscuro drama de um mundo larval, resto ensombrado e verde da oficina da Criação, que talvez um Deus, cansado ou expulso pelas máquinas, houvesse abandonado ou esquecido e na qual ainda se pode acompanhar a fáustica gestação de monstros vegetais e animais, que rompem da vasa como de um ventre apocalíptico. Na Bahia, mãe do Brasil, são seus mares e suas ilhas, suas cidades e suas aldeias, com seus tipos e seus costumes.

É assim, num sadio e doméstico clima de brasilidade, que vou agasalhar a minha. Ela vai ser a irmã pobre nessa trindade milionária. Traz apenas os acordes de um violão de fazenda; o canto dos colonos carreando café dos espigões para o terreiro; apitos de fábricas; corais proletários de um parque industrial que ensaia uma ousada forma de civilização nesta parte da América. Num pobre livro que evoca o “despertar de São Paulo”, traz também o murmúrio de dois arroios quase rasos, mas que tão fundamente vincaram a História nacional: do Anhangabaú, que deu água para amassar a taipa do primeiro Colégio, e do Ipiranga, que ofertou a água lustral para o batismo da nossa Independência.

Xavier Marques

Xavier Marques foi um dos preparadores e anunciadores da minha geração. Sutilmente pressentiu o drama mundial, porque sua inteligência era argutamente política. É verdade que todo o homem de letras que disponha de algum gênio possui, por função, um conhecimento universal, pois a própria obra de ficção é uma sondagem no corpo vivo da sociedade. Há mais “sociologia” em A Comédia Humana de Balzac, que no ingênuo rigor científico de obras que, na sua época, tentaram estudar a conduta dos homens e fixar suas leis. O mundo da decadência romana está todo na prosa jornalística de Luciano. A Divina Comédia é globalmente a Itália política, jurídica, religiosa e social da aurora do Renascimento. O escritor antecipa o sociólogo. A força de vaticínio que se atribuía ao vatum não é mais que rigorosa e utilíssima pesquisa. O artista é a vanguarda social. Penetra nos problemas antes que a ciência os analise. Descobre, pois, por antecipação. É por isso que se lhe atribui a faculdade de aparentemente “adivinhar”, quando apenas o que ele faz é “saber antes”, e o que nele é mera ânsia de conhecimento e irrequieta curiosidade torna-se, para o vulgo, dom mágico de profecia.

Canto de amor à Bahia

Permiti, porém, que antes de falar sobre o baiano, desfira meu canto de muito amor à Bahia... Nossa Pátria está desde o dia do seu nascimento impregnada de Bahia e mesmo os que, como eu, jamais se destacaram das comportadas garoas do planalto, vivem, em imaginação ardendo sob o clarão solar e jovial da Bahia, da Bahia que é “boa terra”, que é a Belém americana onde tornou a nascer Jesus, o Jesus crioulo e pitoresco dos andores municipais. A Bahia, colorida farândula de raças, esquina do mundo onde marcaram encontro “o índio e o negro da África, o corsário bretão e o fidalgo espanhol, o marinheiro batavo e o soldado flamengo, o cigano bargante e o judeu mercador, o colono português e o mestiço brasileiro”, “os arcabuzeiros de Melst e os capitães da Ronda de Rembrandt”. Bahia! Não posso evocar essas três sílabas, que lembram três notas musicais, sem lhes juntar a cadência de um ritmo, um ritmo agudo e tutucado, fundamental na marcação harmônica do que há, em acústica, de mais brasileiro. Bahia! Não posso ouvir tal nome sem me guindar a píncaros condoreiros, entre os relâmpagos das imprecações, entre chibatadas verbais que zurzem, não mais a carne esmolambada e sangrenta do escravo, mas a bochecha panda e deslavada do traficante de negros. Bahia! Bahia de mulheres incríveis, que morrem pelo Brasil como somente sabiam morrer, pretos de pólvora, queimados do sol da África e dos gelos da Rússia, por seu ídolo e seu imperador, os soldados da Velha Guarda; mulheres que a morte condecora com a medalha de sangue das feridas; mulheres prontas a tombar com o crucifixo no peito como Joana Angélica, ou com o rifle na mão, como Maria Quitéria. Meu civismo, Bahia, ergue tribunas políticas no meu sangue e Rui nelas se debruça e perora, formidável, antecipador, cheio de advertências e de vaticínios, como um profeta. Bahia! Bahia dos professores colendos, dos borrascosos ministros imperiais – Cairus, Zacarias, Saraivas, Cotegipes –, de uma culinária mais apimentada que política e de uma política mais ardida que a pimenta. Bahia que vi apenas nos cartões-postais, colorida como um presepe, nacional como o verde e amarelo da bandeira, requebrada e típica, culta e original, terra do amor e para se amar, terra do bem-querer para a gente bem-querer... Há em todo o brasileiro amor e orgulho pela Bahia, pela Bahia que todos exaltam, mas que eu amo de maneira mais desinteressada e melhor, como François Rudel amava a “Princesse Lointaine”, o bem que ele não vira, o bem que não vi.

Dessa Bahia é Xavier Marques, seu narrador, seu homem de pensamento, seu poeta. Mas Xavier, a meu ver, é uma Bahia diferente, mais ática, menos temperamental.

O nacionalista

O nacionalista em Xavier Marques não é o xenófobo: é o homem compreensivo do destino humano e social da sua gente e o enamorado de sua terra, a “Pindorama”, exposição universal de virgens belezas e de inéditas formas de liberdade.

Os fenômenos das reações étnicas preocupam o pensador e alertam o político. Ele sabe que a terra é muita e que o homem é escasso e que o sangue novo dá renovadas forças ao velho sangue nativo, tão marcado por generosas e exóticas qualidades. Seu orgulho nacional não se fecha no anel egoístico das fronteiras, mas nutre-se daquilo que o colonizador e o íncola criaram dentro dessas fronteiras, como largo e democrático sentido americano de vida. Seus principais romances são, no fundo, um debate temático desses problemas, resolvidos sempre por um sentido compreensivo e largo, ficando a humanidade acima dos grupos, a fraternidade acima de quaisquer exclusivismos.

Em Sargento Pedro ele estuda a transfusão, através de complexa mestiçagem, do lusitano colonizador no novo tipo humano representativo da terra e como este reage, em função desse “espírito da terra”, contra o próprio colonizador.

Jackson de Figueiredo, crítico de Xavier Marques, assinala, num estudo, essa observação:

Naqueles trinta e seis capítulos faz-se a história e a psicologia de um dos momentos mais agitados da nossa vida social. Ali está toda a fervura de velhos ódios que se vinham acumulando havia centenas de anos entre o português emigrado para o senhorio da terra que descobriu e conquistara e o brasileiro, semente do seu sangue, sobre esta terra, que se tornara sangue inimigo e revoltado.

A violenta transmutação de valores sociais, provocada na velha organização agrária pela libertação do negro – mudança na direção das fazendas, queda de uma exausta aristocracia rural, modificação de processos de trabalho –, é a tese de As Voltas da Estrada. As reações dos métodos políticos nos velhos feudos urbanos são o tema de Terras Mortas.

Se a análise desses movimentos humanos, tão fascinante ao cientista e pensador num campo social como o nosso, onde os elementos estão ainda tão nítidos e vivos como organismos num caldo de laboratório sob a lente do microscópio, foi um dos objetivos principais de Xavier Marques, o resultado desses amálgamas e a “alma nacional” deles conseqüente fizeram o esplendor dos seus mais belos pensamentos de sociólogo. Um largo sentido de humanidade, nitidamente americano, ilumina sua concepção sobre a formação nacional. “Xavier Marques”, diz ainda Jackson, “com o sopro de beleza com que tem vivificado nossa História, o nosso passado, alimenta a intenção patriótica de ajudar as correntes de progresso que acaso venham a agir na formação da nossa raça histórica.”

Hoje que combatemos de armas na mão a expressão agressiva dos nacionalismos fechados, dos racismos egoístas e que eliminamos espiritualmente a prevenção das fronteiras dos povos no anseio de uma mais vasta interpenetração amorável e cultural, o pensamento de Xavier Marques ganha com sua atualidade um forte prestígio.

O pensador

No setor da esterilização das fontes da espiritualidade pelo rigorismo da ciência e da técnica, é ainda Xavier Marques um alarmado precursor da necessária reação espiritualista. Toma ele, instintivamente, a mesma posição lamartiniana quando o criador da A Queda de um Anjo via em Cedar o espesso demônio da dominação da natureza, da posse das suas forças materiais para tirar daí unicamente gozo e poder, isto é, desagregação moral e espírito de violência, antecipação profética do drama de 1939. Xavier Marques pressente que ao inconfinado do espiritual quer-se sobrepor o humano do mágico; que ao lirismo místico opõe-se o orgânico irracional; que o sublime e o patético substituem-se pelo “sentido de necessidade”, sempre insatisfeito embora debatendo-se dentro das fronteiras da matéria, excitando a imaginação com a força das alegorias polêmicas, não dando quartel ao espírito que procura evadir-se e diluir-se na compreensão de que há uma margem indevassável, inexplicável, intocável na vida: a sua margem divina. Ele pressente que essa “margem divina” é negada e comparada a uma página já escrita no livro do destino humano e que apenas ainda não foi lida pela sua ciência... Contra a nutrição materialista dada aos homens de hoje ele aspira o pão celeste, não no sentido meramente religioso, mas como uma irredutível necessidade, fruto do conhecimento imemorial que o homem tem dessa iniludível quota de divino que a todo o instante descobrimos haver entre o humano do mundo...

E agora – diz ele –, por onde quer que o especialismo e a tecnologia não estancaram as fontes de idealidade que alimentam a cultura geral e humanista, por toda a parte rompe o alarme, denunciando a conspiração das ditaduras obscurantistas (ele refere-se às totalitárias). Protesta-se contra os regimes e governos que regateiam o pão espiritual dos povos. Protesta-se contra os bárbaros que decretando a abstinência mental obrigatória esperam reinar comodamente sobre gerações de microcéfalos.

Este Xavier Marques pensador, tão sóbrio e tão pouco baiano no sentido de refugir a qualquer tentação de eloqüência, marca com nitidez a linha do processo do seu pensamento, exata e cheia de pudor, contida na precisão da análise e do conseqüente raciocínio. O doutrinador expõe e não declama. É, entretanto, dentro de processos possivelmente científicos que manifesta seu horror ao excessivo cientificismo esterilizante, opondo a este a cálida, a nutrida formação humanística da sua cultura, alargada até às fronteiras infinitas pelo seu idealismo.

O romancista e o polígrafo

Situado em seu tempo é Xavier Marques um dos nossos melhores romancistas. Do seu tempo, é também dos mais modernos. Nada tem do anatoliano Assis, nem do frondoso Coelho Neto. Boto & Cia.Jana e JoelPindoramaMariquita e O Sargento Pedro, seguidos por HolocaustoA boa MadrastaAs Voltas da Estrada, etc., mostram a sua força como romancista. A Cidade EncantadaPraieirosTerras Mortas, coletâneas de novelas, com seu notável estudo sobre a Vida de Castro Alves, completam sua vasta produção com Temas e VariaçõesA Arte de EscreverCultura da Língua NacionalDois Filósofos Brasileiros e outros ensaios. Insulares é sua coletânea de poesias.

O mal de alguns que fizeram prosa ao tempo de Xavier Marques foi o de pertencerem a uma quadra na qual ainda se “morria em prol do estilo”. Para que, muitas vezes, não morresse a forma, matava-se a idéia. A forma é tal qual esses parasitas letais, que tanto se multiplicam em ornamentos, nutrindo-se do vegetal em que florescem, que acabam por exaurir toda a seiva do caule que lhes serve de sustento. Essa tenebrosa quadra, com gramáticos soltos nas ruas das letras, semeando pânico, destruindo, a golpes de palmatória, vocações incipientes, criou na nossa geração o tremendo complexo do “pronome mal colocado”. Ser vernaculista era o maior título nacional de cultura. Rui somente chegou à culminância quando a Nação, admirativa e reverente, verificou, com prova provada em candentes polêmicas, que ao gênio baiano eram familiares todos os clássicos e que o ouro da sua prosa era fundido nos cadinhos vernáculos dos Bernardes e dos Vieiras. Houvesse o Sr. Carneiro provado que um só dos seus pronomes estivesse, como um deserdado da política, sem colocação ou com mau emprego, e a estrela de Haia piscaria sobre a fama do maior estilista da raça. E foi justamente porque vivemos por tanto tempo sob a ameaça da férula dos Corujas que um belo dia, na revolução modernista, entregamo-nos a uma bárbara orgia de solecismos, reduzimos a cacos todas as normas clássicas, barbarizamos o idioma proletarizando-o na expressão viva, nacional e pitoresca dos seus modismos plebeus e acabamos por tirar das suas excelentes colocações todos os pronomes, tal qual fazia outrora o partido político quando subia ao poder expulsando dos seus cargos todos os adversários...

Xavier Marques, sendo um dos mais hábeis e cultos manejadores do idioma, tinha uma exata compreensão do seu necessário abastardamento, ou melhor, da sua inata plasticidade ao procurar módulos ou termos aptos a exprimir paixões e cousas novas dentro de uma paisagem nova.

O português, no Brasil – afirma ele – é até supérfluo dizê-lo, modificou-se, diferenciou-se. O que ainda suscita dúvidas, escrúpulos, restrições, conforme o ponto de vista ou o sentimento com que se aprecie o fato, é se o português do Brasil, assim modificado, pode ser chamado com propriedade um dialeto.

Como se vê, o mestre não era dos que, com respeito à língua, tivessem a “obsessão da vernaculidade”, sendo tolerante e compreensivo. Essa atitude e a linha geral do seu pensamento na apreciação dos problemas nacionais e dos problemas humanos documentam a dúctil claridade da sua inteligência. Essa compreensão, porém, não o levava a sacrificar a paixão purista a que ficou ligado, àquela viva faculdade de criação vocabular tão capitosa e expressiva de que é dotada nossa gente, nem a perfilhar nossos pitorescos modismos, que vivificam, rejuvenescem e ampliam o mapa e a gama expressional da velha língua lusa. A forma importa no fundo. Jungir-se ao espírito da forma é sacrificar a forma do espírito. O amor excessivo à música e à plástica dos vocábulos desvia para eles a energia criadora. Nesse ponto, se houve pecado em Xavier Marques, o pecador não foi ele, mas a moda do tempo.

Estas observações, que podem implicar numa restrição, trazem à baila a injustiça do critério que há em se querer julgar com o pathos de hoje o que foi realizado para o “espírito de ontem”. Sem operarmos uma deslocação de plano temporal, imergindo-nos na atmosfera estética e no gosto corrente ao tempo em que foram concebidos Jana e Joel e As Voltas da Estrada, não poderemos tomar plena medida do seu extraordinário mérito. De qualquer forma, porém, sente-se em Xavier Marques – o admirável criador quase sempre confinado ao ilhamento espiritual da província – uma sutil força de adivinhação do que costumamos, não sei por quê, denominar “Modernismo”. Ele não tem, como Machado de Assis, aquele gosto introvertido, ou melhor, aquela volúpia burguesa e céptica de se perder em lentos passeios por dentro de si mesmo, num farto e egoístico esbanjamento psicológico de ironia e de sensualismo, drama pessoal, fechado, quase doméstico, comparável à tarefa de um funcionário público que dedicasse seu week-end a desmontar e a montar um relógio. Xavier Marques é mais “atual” no processo. Não tem, como Coelho Neto, o escultóreo e heróico furor da palavra, honesto mas truculento labor barroco que, vendo greda plástica em todo um vocabulário, passa a vida a esculpir imagens e a retorcer curvas de ornatos. Xavier Marques é mais “atual” no processo. Ele “narra”. Às vezes a tentação verbal, como as corvinas cantoras de Jana na hora indefesa da sua passionalidade, o seduzia para uma pequena orgia plástica, mas aí justa, porque nutrida de lirismo. As palavras, como búzios, ofereciam-lhe ressonâncias, vivendo uma pura vida musical, feita de cristalino atrito sonoro. Ouvi esta música do idílio de Jana e Joel:

Começaram a estalar beijos de quebrança, um murmurar confuso, misto de sonoridades líquidas e aéreas cercava o batel esguio e como que abandonado no fundadouro, ao jogo das águas revezas. Talvez soavam muito embaixo, no cristal do leito marinho aquelas harpas tinintes, vozes do peixe músico, vibração das estrelas ou ilusão dos sentidos... soavam por certo no mar, no firmamento, na alma; fosse onde fosse, elas retiniam multiplicando os círculos sonoros pelo espaço e pela noite, até que um rumor soberano, cheio de palpitações, as foi abafando e amortecendo numa surdina cada vez mais imperceptível.

Abandonando o demônio do verbo, Xavier Marques segue escoteiro a picada episódica, a curiosidade levando-nos pela mão através da floresta mágica da narrativa. É esse processo de “romancear” – isto é, a faculdade de criar uma intrincada fabulação e narrá-la com interesse, sem preocupações excessivamente descritivas ou expressamente verbais – que torna, entre a dos seus confrades de época, “mais moderna” a arte do novelista itapariquense. É, aliás, nesse gênero literário que ele mais se ilustrou.

O criador e as criaturas

Dos romances de Xavier Marques saltam para a vida alguns tipos que o artista construiu com bom material humano. Nazário, de As Voltas da Estrada, é algo mais que um personagem: é uma individualidade-tipo. É o mestiço invadente, repontando no cenário econômico e político da quadra nacional violentamente democratizadora que sobreveio à Abolição. É a criatura que ajuda a destruir os resquícios de uma nascente estrutura feudal, em que a casa-grande era o manoir e o latifúndio o condado. Essa criatura é explosiva de recalques, vulpina, escorregadia, inteligente e justiçadora, vingando-se da larga humilhação que sofrera entre soluços e sangue na noite da escravidão.

Nazário, o mulato, é o sucessor democrático de uma tosca aristocracia latifundiária, dessa classe amolecida nos braços das mucamas e que gerou, nos leitos espúrios das senzalas, a estirpe dos seus próprios carrascos: os fulos, os cabrochas, as ricas variações da mestiçagem. Desse livro inda surge com bastante vida a filha de Nazário, Pastora, criatura toda sexo, tostada de sol e de paixão, isca de carne destinada a atrair e a plebeizar os restos da pomposa fidalguia.

Esses tipos são, a nosso ver, pela sua significação dentro da nossa formação étnica, dos mais expressivos e humanos de quantos o autor criou. Mais que seus duques, seus marqueses, seus barões imperiais, mexendo-se entre velhos jacarandás e cristais de candelabros, enquadrando seus vultos barbados entre os grossos batentes dos palácios coloniais, são os mestiços – variada gradação cromática do prisma racial – que concentram seus melhores instantes de penetração psicológica e melhor se plasmam, com a carne das palavras, para viver a vida eterna da arte.

Múcio Leão vê na obra realizada pelo artista de Pindorama “um sólido monumento literário”. A emotividade é o elemento substancial do romancista, afirmou Goulart de Andrade. Clementino Fraga assevera “não haver dúvida que o romancista revela qualidades de observação e capacidade criadora, sem falar do ascendente da linguagem cuidada, elegante e sóbria”. São seus contemporâneos que o consagram, proclamando-o herdeiro da glória de Machado de Assis. Seja como for, ninguém poderá negar a Xavier Marques uma posição de mestre no seu tempo. Seu espírito, porém, era multifário. O pensador, o romancista, o ensaísta era também poeta.

O poeta

Por um erro denominam-se igualmente poetas tanto os que escrevem versos como os que realmente fazem poesia. O verso, que teve, antes, uma estrutura rígida e que hoje é plástico e fluido, tendo por

ambito los cielos fragiles

sendo

el viento la forma pura,

nem sempre é o Livro dos Sete Selos contendo a divina mensagem. Não se confunda verso com poesia. A questão da forma não tem nenhum sentido, uma vez que a presença da poesia num verso opera logo o milagre da transubstanciação, pois ela se funde no próprio corpo verbal que a encerra, tal qual a alma se integra no organismo que nasce. A anunciação angélica do milagre da Encarnação é, talvez, o melhor e o mais belo símbolo da poesia. As palavras, em tal caso – carne verbal que vai receber o espírito –, tornam-se por si mesmas poesia, porque são usadas em função poética, como som, como cor, como mistério. Raimundo Correia, ao classificar sua “madrugada” de “sanguínea e fresca” (soneto “As Pombas”), usava desses adjetivos como um pintor usaria de laca paunásia e de verde jade. Não foi à toa, na verdade transcendental do símbolo, que Rimbaud fez das tonalidades verbais uma palheta cromática.

Isto posto, força é convir que não há “poesia antiga” ou “poesia moderna”, mas apenas poesia, tenha esta por morada a balada de Vigny, o soneto de Baudelaire, uma trova de Adelmar Tavares ou o verso moderníssimo de García Lorca, de Neruda, de Alberti, de Valéry ou de Ribeiro Couto.

Poesia é essa comunicação inefável de algo hipersensível, que acorda em nós, através de simples ritmos, de suave música, de vaga sugestão, de patética narrativa, alguma cousa incomum, extasiante, que dilata horizontes de infinitas repercussões emotivas e sonoras dentro de nós. Se somos, de fato, degenerada progênie do anjo caído, Poesia é um instantâneo vislumbre compreensivo da linguagem celeste e ancestral, da qual nossa espessa carnalidade perdeu a chave misteriosa e divina. Essa linguagem está contida na vida universal, mas quase ninguém lhe conhece as mágicas articulações. O poeta é a criatura escolhida e iniciada para essa comunicação mediúnica, pelo que a Poesia tem algo de religioso, pois torna a religar o homem à sua mais obscura, escondida e alta essência.

Pensamos ter descoberto no ultraísmo surrealista ou no irracionalismo do subconsciente, elementos originais para enriquecer a expressão poética. Não descobrimos cousa alguma. O que fizemos foi apenas explicar um material poético de velho uso. O irrealismo, o irracionalismo – imaginação abstrata, instinto profundo, forças vulcânicas e subterrâneas do “eu”, que hoje se libertam na explosão irrefreável da absoluta liberdade poética, encarnando-se em formas sem nexo, valendo estas como pura plástica – já eram materiais da Poesia, pois, sendo esta linguagem divina, é linguagem integral, voz ecumênica, total como o próprio universo, oriunda do céu a da terra, do consciente e do inconsciente, do real e do irreal, do racional e do irracional. É por isso, por essa vastidão sem limites e por essa margem de mistério, por essa força e por essa graça, que denominamos Poesia não apenas a emoção que uma forma e uma sugestão verbal provocam em nós, como certos estados de espírito, quer oriundos da contemplação de um céu cheio de estrelas, quer do ritmo de um vôo, quer da simples imersão do nosso pensamento no mundo dormente e fabuloso que temos dentro de nós mesmos.

Aí está – e desejo dar esta explicação uma vez por todas, tantas as interpretações oblíquas que se tem procurado dar à nítida perpendicular do meu pensamento com referência ao problema – porque não me interessa saber se Xavier Marques, nas Insulares, foi modernista ou passadista. Para mim são poetas todos os que consigam fazer realmente Poesia e não apenas versos.

O que ficará dos poetas não será nem a escola nem o processo, mas a poesia que tenham conseguido fixar nalgumas estrofes. Do submerso Felix d’Anvers, sobrenadou da sua vasta obra apenas um soneto. É por isso que Castro Alves, o gênio trovejante da apóstrofe, e Casimiro de Abreu, o gênio do lugar-comum lírico, estão mais vivos do que nunca. A maioria dos que, em relação ao seu tempo, foram “modernos”, “preciosos”, “revolucionários”, morreu. Morrem os maus versos. A Poesia, porém, vive a vida eterna da sua divina substância.

Em Xavier Marques, um instintivo pudor mental – o terror de ser banal – fazia não raro murchar seu estro. É por isso que nem sempre foi visitado pelo anjo da Poesia que traz aos homens a divina mensagem. A “idéia”, o requinte ou a profundidade dessa “idéia” preocupavam o artista cioso de substância. Os dois temas dialéticos, amor e morte –  criação e destruição, princípio e fim –, são tentações constantes da sua lira.

Não! Não é pela vida que disputam
os pobres seres deste val tristonho:
é pela morte, horror!, que todos lutam.

(Soneto – “A luta pela morte”)

Ou ainda:

E emudecemos cheios de tristura...
Que sempre há de esflorar toda a ventura
a ponta d’asa desse abutre – a morte.

Xavier Marques, entretanto, sentiu o valor plástico das palavras como puro material poético. Esse cálido sensualismo musical descobre-se em “Adormecida”:

De uma das mãos a concha cor-de-rosa
some-lhe a face, qual à pomba o ninho;
seu belo colo suave como o arminho
cai sobre a colcha em curva graciosa.

Arfa-lhe o seio. Dorme... É de amorosa
o sorriso que os lábios, num carinho,
lhe afrouxa. Às formas se lhe ajusta o linho
da veste chã, traidora e luminosa.

Agora vejam-no desferindo, com asas plenas, o seu alto vôo parnasiano:

Indiferença

Sinto às vezes o arranco de uns impulsos
Que a teus pés não me curvam por bem pouco,
E vou quase a estreitar-te como um louco
Entre os meus braços trêmulos, convulsos.

Espreito-te o perfil, movo os meus pulsos;
Não tenho algemas não, pejo tão-pouco,
Qual a poeira zurzida do siroco,
Vejo os receios de minh’alma expulsos.
Então me agito e arrojo com firmeza.
Mas olho e vejo... Oh! que mortal frieza
No mudo olhar que eu súplice devoro!

E ao ver-te os olhos quietos, tão serenos,
Brilhando sem paixão, cada vez menos,
Recuo, paro, desfaleço e choro.

Este fulmíneo vôo sobre os poemas do criador de Insulares destinou-se apenas a revelar, na vastidão poligonal da sua obra, um ângulo lírico, se bem que o material poético nela poderia ser copiosamente colhido em certos filões da sua prosa. Mais que isso: teve por fim mostrar a pluralidade deste espírito, necessitando, para revelar sua plenitude, de várias linguagens, inclusive a Poesia, que é a linguagem dos deuses.

Curioso... Sinto quase criminosa alegria se minha insuficiência não conseguiu dar as majestosas medidas deste espírito, cuja glória, no campo das letras, mandam os ritos que eu celebre. É que assim conseguirei disfarçar a deficiência dessa substituição, suprindo vossa generosidade a larga margem de vazio que fica entre o muito que valeu o antecessor e o pouco que valha o seu substituto.

E vossa magnanimidade vai a ponto de enviar ao meu encontro Cassiano Ricardo, poeta dos maiores que o Brasil tem tido em todos os tempos e ensaísta e escritor que se liga à grande escola de pesquisa sociológica formada pela cordilheira dos Tavares Bastos, os Alberto Torres, os Euclides da Cunha, os Oliveira Viana, os Afonso Taunay, os Roquette-Pinto, os Gilberto Freyre, para citar alguns píncaros...

Talvez poucos mais do que eu se apaixonassem tanto pela sua aventura, quando em Martim Cererê, o poema da raça, imerge-se nas brumas da lenda entre uma fascinante fauna de mitos num bandeirismo de epopéia, para nos trazer do fundo da História, tal qual Fernão Dias Pais Leme do fundo do sertão, as esmeraldas das suas estrofes.

Eu vivi nessa paisagem de sonho essa heróica e perigosa aventura. Pelo sortilégio das suas evocações percebi, cheio de orgulho, que pertencíamos a uma Pátria tão grande que, para criar sua teogonia e povoar a aurora da sua formação com heróis e com deuses, não precisava inventar Olimpos imaginários, mas podia escolhê-los entre criaturas de carne e osso na vasta teoria dos heróis da madrugada do desbravamento. Lá está Raposo, o ubíquo, cujo perfil reponta em todas as paisagens da selva, como uma potestade telúrica, rival humano de Proteu; lá está o tempestuoso Anhangüera, o gigante que botava fogo nos rios, êmulo do vulpino Ulisses... Esse bando andejo de Jasões mateiros – Arzão, André de Leão, Borba Gato – move-se com um baixo-relevo de um friso homérico que Cassiano Ricardo houvesse chamado para a vida ao sopro misterioso da arte, renovando eles, no verde cenário americano, façanhas ainda mais prodigiosas que as narradas pela Odisséia.

Senhores acadêmicos,

Falei muito e não é geralmente quando alguém fala muito que diz exatamente o que mais desejaria dizer. O que eu desejaria dizer é simples, isto é, significar-vos toda a minha gratidão pela vossa generosidade. Teria, pois, feito um discurso magistral, porque exprimiria exatamente meu pensamento se, em lugar de ter dito tantas cousas, tivesse apenas pronunciado estas duas palavras:

– Muito obrigado!