OS BAILES MASCARADOS
Os homens passam descuidados durante séculos por diante de montanhas em cujo seio se ocultam imensos tesouros, e nem os passados exemplos lhes fazem bater o coração de desejo de as explorarem, e nem a cobiça lhes desperta o ânimo, até que um mais feliz ou audaz, por acaso ou coragem, descobre uma partícula desse escondido tesouro; então acordam todos como de um longo sono, lastimam o tempo perdido, o que era indolência torna-se em agitação, e todos, obedecendo a um só pensamento, atiram-se insôfregos na exploração da montanha, e cavam-na por todos os lados, cruzam as suas entranhas com minas e galerias, e o ouro que delas extraem recompensa de sobejo os seus trabalhos e fadigas.
É esta a história dos bailes mascarados entre nós.
Há muitos anos que não se ignora por cá que nos teatros da Europa dão-se bailes mascarados nos dias do carnaval, e que os empresários desses divertimentos colhem avantajados lucros; e no entanto ninguém se havia lembrado de imitar esse uso, tendo tão bons exemplos para seguir. Acresce mais que o jogo do entrudo era reputado bárbaro e perigoso, e como tal a população sensata o queria ver banido dos nossos costumes; as autoridades policiais iam de acordo com esse voto, e, apesar dessas circunstâncias favoráveis, não se movia uma só pessoa a fim de dar impulso a esse novo gênero de espetáculo e explorar a curiosidade pública. Uma resposta davam quando se estranhava essa indolência: “A nossa população, diziam, não está ainda educada para tais divertimentos; é uma má especulação.” Assim pensavam também os homens ao passarem por junto da montanha: “Aqui, murmuravam entre si, não há ouro, e cavar minas seria uma má especulação.” E aqueles tanto se enganavam como estes. Ouro havia a ajuntar na montanha e no teatro; só faltava o primeiro impulso, o exemplo animador que guiasse os indecisos.
À Sra. Delmastro coube a glória de abrir esse exemplo. Ou pelas reminiscências que tinha da Europa donde viera, ou por cálculo e coragem, julgou que os bailes mascarados nos teatros podiam lhe ser lucrativos, e, sem temer os obstáculos e o perigo das inovações, ofereceu-nos os primeiros bailes no Teatro de S. Januário no carnaval do ano passado.
Estavam dados os primeiros passos; a especulação tinha sido feliz, caíram os obstáculos, e cresceu instantaneamente o desejo da imitação.
[...]
Serão os bailes mascarados capazes de substituir o entrudo e fazê-lo desaparecer dos nossos costumes? É esta uma questão difícil de responder-se.
O entrudo é um jogo bárbaro, pernicioso e imoral. A autoridade, que tem o dever de zelar sobre a moral e a tranqüilidade pública, assim pensa, e há anos a esta parte que se afadiga em publicar ordens nos jornais para que ele cesse, ameaçando os infratores com multas e prisões; mas não e fácil extinguir com ordens de jornais e algumas patrulhas usos arraigados entre o povo por espaço de anos. Antes dessas proibições o povo jogava o entrudo consigo em toda a liberdade nas ruas e praças públicas; depois dessas proibições subiu ele para as janelas e o joga com as autoridades nomeadas para o evitarem. Essas cenas ridículas, a que todos nós temos presenciado uma ou mais vezes, são de péssimo exemplo.
Houve uma câmara municipal que compreendeu, e com muita razão, que este meio de que se tinha lançado mão era ineficaz, e que um divertimento popular só se substitui por outro mais popular, e prometeu um programa de bailes e danças mascaradas. Meterem a ridículo a idéia, e seus autores recuaram diante dos motejos. É de lastimar que não tivessem ânimo os vereadores para prosseguir no seu intento. A experiência mostrou como seria bem recebida a inovação.
Os bailes mascarados aclimaram-se entre nós graças a uma mulher; agora compete à autoridade sustentá-los, porque só com eles pode combater o entrudo. Não julgue porém que da sua parte só basta fazer regulamentos para que os bailes principiem às oito da noite e acabem às três, e que os máscaras sejam respeitados e não digam insolências. Não: é preciso que a sua intervenção seja mais ativa, e direi vital, e que as suas vistas alcancem mais longe.
Uma das causas do furor do entrudo é a privação em que se vê o povo durante um ano, esperando pelos três dias: aplique-se este meio aos bailes; sejam proibidos durante todo o ano; negue-se-lhes licença, quaisquer que forem as alegações que apresentarem, e designem-se unicamente para eles certos dias do carnaval. Além dessa medida, outra devia se tomar. Os bailes nos teatros são dispendiosos, e nem todos podem comprar bilhetes de entrada; a maioria da população fica deles excluída. Organizem-se, para remediar essa falta, danças mascaradas e correrias burlescas pelas ruas e praças, que o povo as seguirá, esquecendo-se da água e do polvilho.
Outras muitas providências poderíamos lembrar; porém tememos já ter ultrapassado os limites permitidos a um folhetim de teatro. Desculpa pois pedimos, e deixamos a quem compete dar as providências que julgar acertadas.
Temos, sem querer, falado sério em objeto de tanta folia e galhofa: é que encarávamos o fim, esquecendo-nos dos meios, e que talvez levássemos em vista esboçar o começo da história dos bailes mascarados no Rio de Janeiro.
Eia!... os bailes nos chamam. Pelas portas desses imensos salões improvisados soltam-se torrentes de luz e harmonia; por todas as ruas correm apressados, e às vezes apupados, imensidade de mascarados; aqui e ali vêem-se pendurados das janelas trajes diversos, como convidando os passageiros a entrarem para se travestirem; desusado motim e alvoroço ecoa pelos ares; o delírio também de nós se apodera: tomemos uma máscara, um dominó, por ser o mais cômodo e leve, e corramos para misturarmo-nos com a multidão e gozarmos dos seus prazeres, e presenciarmos os seus folguedos.
Onde entraremos primeiro?... Difícil escolha!... Preferência daríamos sem hesitar à Reunião Campestre; mas tememos ofender susceptibilidades levando às páginas de um jornal público a descrição de um baile particular. Permitam-me só duas palavras: esteve magnífico!...
Entremos no Teatro de S. Pedro. A orquestra toca a quadrilha do Ferrador. De um dos camarotes lançamos um olhar sobre o imenso salão, que ocupa todo o espaço da platéia e de grande parte do cenário; a ária é grande para as correrias e danças dos mascarados; sua iluminação é suficiente, mas não brilhante como podia ser; no fundo à esquerda, em um coreto, a orquestra executa deliciosas quadrilhas e valsas que agitam e enlouquecem a multidão colorida e variegada. É de sentir a falta do outro coreto com banda militar, que havia no ano passado, para tocar sinfonias nos intervalos das danças. O silêncio da música em um baile mascarado fá-lo perder um dos seus prestígios. O sussurro e zumbido da multidão alegre é o melhor baixo contínuo de uma orquestra de carnaval; mas esse sussurro, só e desacompanhado, torna-se incômodo; e, além disso, o som dos instrumentos encobrem muitas palavras que ou não se quer que se ouçam, ou não se devem ouvir.
Extraordinário e brilhante espetáculo é o de um baile mascarado! Todas as idades e povos aí têm seus representantes; os mais extravagantes e fantasiados trajes, as mais disparatadas anomalias aí se encontram; e toda essa aglomeração informe agita-se, corre, salta, brada, forma grupos que representam séculos, e o mesmo espírito a anima e a lança no turbilhão da dança. Turcos e cristãos, idólatras e judeus, só das crenças conservam os trajes: o carnaval os converteu à religião do prazer. Viva o carnaval!
Com um ano de existência não podem ainda os bailes mascarados chegar entre nós àquela perfeição que os torna na Europa tão agradáveis e únicos no seu gênero; mas para lá iremos caminhando. O enredo, essa alma dos mascarados, quase que nos é desconhecido; sem ele torna-se o baile mascarado simplesmente uma sala de dança tumultuosa, e perde aquela inquietação de espírito e cenas jocosas que sucedem pelo incógnito das personagens e curiosidade que despertam. Os máscaras entre nós são (perdoem-me a expressão) geralmente insossos: uma ou outra exceção aparece. Os seus diálogos reduzem-se a bem poucas e insignificantes palavras. Lá passa um por junto de pessoa que não quis mascarar-se e traz a cara descoberta, e diz-lhe: - Adeus, como estás? Eu te conheço. - Não admira, responde-lhe esta, não trago máscara. - E tu me conheces? torna-lhe o máscara. Não. - Pois eu te conheço. E dando-lhe as costas, vai repetir a todos que encontra estes tão espirituosos ditos. Outro, ao passar por um amigo, exclama: “Como estás? - Bom. - Depois que te deitei ao pasto nunca mais te vi.” E, muito satisfeito com a bonita graça que disse, faz uma pirueta e safa-se. Porém os mais intoleráveis são aqueles que procuram envergonhar os conhecidos que encontram.
“Olá! sicrano, gritam com toda a força da vozinha de empréstimo, tu não vais pagar aquela conta na Rua da Quitanda? Olha que o lojista quer te mandar citar”. Há sempre quem se ria nessas ocasiões, e a pessoa agredida toma o prudente partido de calar-se e de mudar de lugar. Estas e outras cenas e gentilezas sem sal nem graça repetem-se milhares de vezes em uma noite. Já dissemos que há algumas exceções; infelizmente porém são poucas.
Os indivíduos mascarados dividem-se em duas grandes classes muito distintas: os que se mascaram para não serem conhecidos e os que se mascaram para o serem. Os primeiros andam retirados e silenciosos, gozando do prazer do incógnito no meio de amigos: estes são inofensivos e só servem de ornamento ao baile; e os segundos atiram-se desesperados por entre a multidão, dizem palavras indiscretas até que sejam conhecidos, para que se lhes admire o bom gosto do trajar. Felizmente há uma outra pequena classe intermediária que não participa nem do acanhamento da primeira nem da sem-cerimônia da segunda, e esta é que constitui o verdadeiro centro do baile.
Há uma coisa muito notável a observar-se. Regra geral: toda a máscara bonita encobre cara feia, e vice-versa. Isto é fácil de explicar-se: os feios querem um dia ser bonitos, ainda que não seja senão mascarados; e os bonitos querem experimentar os efeitos de uma cara feia. É decerto uma consolação para um homem ou para uma mulher maltratada pela natureza poder ocultar por algumas horas, debaixo de linda aparência, suas horríveis e horrendas cataduras. Pobre gente! tenham ao menos esse desabafo! Quantos conhecemos nós que de boa vontade e coração trocariam a cara que Deus lhes deu pela máscara que compraram!
[...]
Mais duas linhas e terminaremos. Estes três salões de baile, o Teatro de S. Pedro, o Teatro de S. Francisco e o Tivoly, estiveram constantemente cheios; mas se pelo número dos concorrentes quiser alguém calcular os seus rendimentos, engana-se redondamente. Houve uma troca de senhas prodigiosa. Muitas pessoas conhecemos nós que, tendo comprado um bilhete por 1$ no Teatro de S. Francisco, aí se demoraram até meia-noite; depois, saindo, trocaram as suas senhas pelas do Teatro de S. Pedro, e para este entraram de graça; as duas horas foram para o Tivoly, e, graças ao mesmo manejo, também para este entraram novamente de graça, tendo assim corrido três bailes, ouvido três orquestras, visto mais de quatro mil pessoas mascaradas e desmascaradas, dançando, pulando e gritando durante oito horas, pela módica quantia de dez tostões! Há muito tempo que os empresários de divertimentos públicos fintam ao povo; chegou enfim a vez deste de fintar também os empresários; e por mais esta razão, gritaremos com força e pedimos que gritem conosco: Viva o carnaval!
Prometemos que falaríamos neste folhetim dos contratos-gêmeos das duas primas, modelos de sentimental e fraternal amizade; pedimos porém desculpa se não cumprimos esta nossa promessa, por falta de tempo: em outro número o faremos. Pela face que levam as coisas esperamos fazer um elogio à diretoria, mas um elogio magno e machucho como ela nunca chuchou, pela energia que tem mostrado. Custou! mas antes tarde que nunca.
16 de fevereiro de 1847.
(Folhetins. A semana lírica)