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Discurso de posse

Para tomar posse da Cadeira 15, que vem sendo nesta Casa a da Poesia, escolhemos o mais poético dos meses, talvez por ser na Europa o da Primavera e entre nós o das Mães e de Maria. Quando optamos em maio pelo dia 23, o nosso Presidente não pareceu muito de acordo por razões de ordem prática, mas logo cedeu às do coração quando lhe disse – a ele que assistiu ao centenário de sua mãe – ser, justamente, o aniversário da minha, que perdi aos dois anos. Deixai que vos recorde o segundo quarteto do famoso soneto de Luís Guimarães Júnior, “Visita à Casa Paterna”:

Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,
o fantasma talvez do amor materno,
tomou-me as mãos –, olhou-me, grave e terno,
e passo a passo, caminhou comigo.

Não é apenas a piedade filial, senhores, que me faz evocar a mãe que não conheci, e ter a impressão de ser conduzido por suas mãos ao transpor esta noite os umbrais da Academia. Vereis em breve por quê. Mas permiti que antes me demore um pouco a fitá-la, nesse dia em que faz anos na eternidade.

Não consigo porém imaginar-lhe o rosto. Deixou apenas vagos retratos, do tempo em que a fotografia era ainda uma descoberta tateante, e os amadores do interior se contentavam com pouco: o que importava era mais a invenção, a maravilha, a mágica, que a pessoa fotografada, cujas faces descoravam no retrato antes mesmo que a morte as viesse empalidecer. O seu rosto...

Minha mãe era bonita,
era toda a minha dita,
era todo o meu amor!

disse célebre poeta, patrono de uma das vossas Cadeiras, Junqueira Freire, que usou por algum tempo o mesmo hábito que eu. Eu só posso repetir o primeiro verso: “Minha mãe era bonita.” Mas apenas de ouvido. Quando diziam “Era a moça mais bonita da cidade!”, o seu rosto se desenhava, nítido, ante aqueles olhos estranhos que o haviam refletido, mas onde eu não podia divisar – ai de mim! – senão um vago clarão...

Creio que sua constituição delicada é que levara o seu tutor a transferi-la do Rio para Minas, com as cinco irmãs órfãs, como no poema de Alberto de Oliveira:

Foi para melhores climas,
que o médico em voz austera:
“É já levá-la, dissera,
para as montanhas de Minas”.

Lá encontraria, por breve tempo, a saúde e o marido. E, quando mais tarde partiu, não deixou a casa vazia como a moça do poema:

Ficou deserta a casinha
inda a lembrar tristemente
o vulto esguio da doente
e o longo adeus que lhe ouvira. 

Pois quatro crianças enchiam a sua de bulício, mesmo naquele dia, sendo que o terceiro, eu creio, mal começava a falar...

O FUNDADOR DA ACADEMIA

E quem seria, senhores acadêmicos, esse tutor de minha mãe, esse Tio Lúcio cuja memória aprendi a venerar, e que em breve passava a ser, para o menino que só dispunha de poucos livros e duas antologias, uma espécie de elo com a vasta galeria de poetas e romancistas que começavam a desfilar ante os seus olhos maravilhados? Quem seria ele senão Lúcio de Mendonça, talvez o principal arquiteto da Casa imaterial que nos abriga esta noite? Passemos a palavra a Machado de Assis, no primeiro discurso deste Cenáculo: “Iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com alma nova, naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária.”

Se restasse alguma dúvida sobre o moço a quem se refere o primeiro presidente desta Casa, bastaria consultar o discurso, logo em seguida, do secretário Joaquim Nabuco:

Nós somos quarenta, mas não aspiramos a ser Os Quarenta. Nenhum de nós lembrou seu próprio nome, todos fomos chamados e chamamos quem nos chamou... Houve uma boa razão para nos reunirmos ao convite do Sr. Lúcio de Mendonça. [...] As Academias, como tantas outras coisas, precisam de antiguidade. Uma Academia nova é como uma religião sem mistérios; falta-lhe solenidade. [...] Não tendo antiguidade, tivemos que imitá-la, e escolhemos os nossos antepassados. Escolhemo-los por motivo, cada um de nós, pessoal, sem querermos, eu acredito, significar que o patrono de sua Cadeira fosse o maior vulto de nossas Letras.

Não podia ser maior a importância de Lúcio de Mendonça na organização desta Casa, onde se encontrava também seu irmão e quase pai, Salvador de Mendonça, combativo republicano, mas amigo do imperador que o faz ministro plenipotenciário em Washington e lhe dizia, segundo o testemunho de minha prima: “Faça a sua República, mas me nomeie professor no Pedro II...”

Perdoai-me, pois, se a Academia, de que escutava falar tão menino e tão longe dos grandes centros de cultura, se me afigurava, como nos confidenciou também Otávio de Faria, uma espécie de “destino”. Destino a que em vão tentei fugir batendo às portas de um mosteiro, ao terminar meu curso de Direito e interromper o de Letras. Ia acontecer-me o mesmo que a Thomas Merton, nascido igualmente em setembro de 1915, e que compara sua aventura, em O Sinal de Jonas, à do profeta bíblico, que a baleia engole e vai lançar em Nínive, onde Deus o mandara. No seu Mosteiro de Getsêmani, em obediência ao abade, empunha de novo a pena, e vê-se em breve projetado em todas as línguas e praias culturais. O mesmo sucedeu comigo, ainda que em proporções bem menores, como sói acontecer entre coisas americanas e brasileiras. E eis-me batendo à vossa porta.

A VINGANÇA DA PORTA

E agora seja-me permitido lembrar ao menos o título de um dos mais conhecidos sonetos de Alberto de Oliveira, “A Vingança da Porta”, e voltar um pouco a Lúcio de Mendonça, talvez temeroso de defrontar-me, como é preciso, com as sombras luminosas de Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Amadeu Amaral e Guilherme de Almeida –, enquanto a de Odylo Costa, filho me sorri e anima.

Minas é a terra das manhãs brumosas,
das noites cheias de ideal poesia.
Como a Alemanha, legendária e fria,
Minas é a terra das canções saudosas.
Aos filhos cerca de extremoso afeto.
Chega o estranho... pois bem-vindo seja!
Nos altos morros a geada alveja,
mas arde a chama no hospedeiro teto.

Nessa Minas, sul de Minas, Cristina, que celebra nesse poema que não encontro em seus livros mas em carta de minha mãe, Lúcio de Mendonça contrai as primeiras núpcias com aquela a quem saúda, um pouco blasfematoriamente, “Ave Marieta”, vindo depois a casar-se no Rio com uma Süssekind. Minas e a Alemanha, como no poema. Era pois natural que para Cristina, já lhe tendo respirado o ar tão puro, levasse as sobrinhas órfãs, sem perceber que se cumpria o provérbio: “Deus escreve direito por linhas tortas.”

Os que conhecem a obra de Lúcio de Mendonça (que não merecia ser tão esquecida em seu conjunto) devem lembrar-se o quanto atacava, não só o imperador e a Monarquia, mas igualmente a Igreja, o papa e o Clero... Eram Vergastas e Clamores, como nos títulos de seus livros, misturando-se às Névoas Matutinas e às Canções de Outono... E eis que as sobrinhas, levadas para Minas, iam integrar-se, em contato com a família de meu Pai, na fé católica e na prática dos sacramentos... Desde os meus primeiros alvores, portanto, vi-me rodeado de toda a corte celeste no quarto de minha tia mais velha, verdadeira Doutora da Igreja, que me falava de todos aqueles Anjos e Santos que subiam e desciam pelas paredes, e do Filho de Deus deitado na manjedoura ou pregado na cruz. Isso explica que esse sólido universo religioso tenha lançado raízes e crescido comigo, a ponto de tê-lo ido buscar mais lenamente nos claustros de um mosteiro, de onde agora tenho a permissão de ausentar-me de vez em quando para o vosso convívio.

O Mosteiro de São Bento... Felício dos Santos conta-nos, em Casos Reais a Registrar, seus baldados esforços para obter que Lúcio de Mendonça votasse, no Supremo Tribunal, a favor dos monges, cuja causa era justa e podiam perder tudo o que tinham. A resposta foi negativa: os monges não lhe pareciam sequer dignos de justiça... Caro Tio Lúcio! Se lembro isto esta noite, esta vingança de sua porta que se abre para um monge beneditino, é apenas para ver nesse episódio um sinal de que outra porta, como no Salmo 23, abriu-se enfim para ele: a da verdadeira, a da eterna imortalidade.

UM MAU EXEMPLO

Mas estou até aqui dando um péssimo exemplo a falar de mim próprio, quando essa difícil tarefa caberá ao vosso Decano, designado pelo Presidente, que soube adivinhar meu coração. Tendo alguém dito a Gilberto Amado que o discurso de Alceu Amoroso Lima, ao recebê-lo, fora melhor que o seu, replicou o novo acadêmico: “Pudera! Com o material de que dispunha...” Hoje Tristão de Athayde não dispõe de um mapa-múndi, como chamou a Gilberto, mas de uma parca obra e um pífio autor, que tornarão mais admirável ainda a bela oração que irá produzir, e cujo texto não conheço ainda, pois preferimos ambos a mútua surpresa... Deixemo-lo com sua difícil incumbência e enfrentemos a nossa –, difícil, ao contrário, pela extensão da matéria e a grandeza daqueles que me precederam, sobretudo o Patrono da Cadeira.

A CADEIRA DA POESIA

A Cadeira da Poesia... Odylo Costa, filho começou o discurso de posse discordando de Guilherme de Almeida, que assim a chamara no seu. Poetas houvera em muitas outras, e não eram apenas poetas os ocupantes da nossa. E passa logo a mostrar como Gonçalves Dias, Bilac, Amadeu Amaral e Guilherme haviam sido todos homens de jornal, conseguindo Gonçalves Dias, como assinala minha saudosa amiga Lúcia Miguel-Pereira, colaborar ao mesmo tempo nos dois Correios (o Mercantil e o da Tarde) que se atacavam ferozmente...

Ora, a intenção de Odylo – poeta bissexto que fora sobretudo jornalista e só bem tarde, escorrendo sangue e lágrimas, começara a jorrar poesia – era não parecer, aos antigos colegas, desprezar o antigo ofício. Pois viu-se obrigado a reconhecer mais adiante:

Não foram apenas poetas Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Amadeu Amaral, Guilherme de Almeida. Mas foram antes de tudo poetas, acima de tudo, poetas. E poetas inovadores, com a inquietação dos abridores de caminho. Com Gonçalves Dias nasce a poesia romântica brasileira. A poesia romântica? A própria poesia brasileira. O parnasianismo de Bilac era, no seu tempo, uma revolução. Com Amadeu Amaral a forma se desprende do seu rigor parnasiano. Guilherme de Almeida, como o escafandrista, se mostra um minuto à superfície das águas, para depois mergulhar cada vez mais à procura dos segredos escondidos – peixes cegos, conchas, abismos, estrelas do mar...

E não será esta, então, Senhores, a Cadeira da Poesia?

A CANÇÃO DO EXÍLIO

Sim. E esta Cadeira privilegiada, que é a própria história da Poesia em nosso País, o roteiro de sua própria evolução, constituiu também para aquele que dela se aproxima – e ei-lo de novo a falar de si próprio – a história da Poesia em sua vida. Creio que os primeiros versos que me soaram como versos, que me deram a ideia de uma realidade além da realidade, foram, como para tantos, os da “Canção do Exílio”:

Minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá.

Eu não sabia
ainda o que significava essa bonita palavra “exílio”, que só entrava no título; mas compreendia logo, pelos versos seguintes, que o poeta (outra palavra misteriosa) estava longe das coisas que amava:

As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.

Observa Odylo, com muita argúcia, a rara circunstância que tornava possível esses versos: estar o Poeta em Portugal, onde se falava a mesma língua da pátria distante. “Qualquer de nós” – comenta ainda Odylo – “trocaria tudo o que escreveu pela canção da mais singela simplicidade”:

Minha terra tem palmeiras,
onde canta o sabiá.

Poesia sem um só adjetivo, como observa Aurélio Buarque de Holanda. Poesia que poderia ser a própria Canção da Simplicidade sonhada por Guilherme de Almeida. Poesia que terminou engastada, como joia, em nosso Hino Nacional.

O menino de Minas não sabia ainda o que era “exílio” nem o que fosse “poeta”, mas já compreendia que era triste estar longe das coisas amadas (“as aves que aqui gorjeiam / não gorjeiam como lá!”), e já compreendia o que era saudade, “palavra doce, / que exprime tanto amargor”. E muito cedo iria compreender que há uma outra saudade, uma saudade vertical, que não pode ser calculada em algarismos, como sugeria Bastos Tigre (“distância multiplicada / pelo fator querer bem”), mas que resulta do “desconcerto do mundo” (como diria Gustavo Corção) e da ânsia de abarcar, aqui e agora, o Bem e o Belo eternos. Esta consciência da Poesia, ninguém a formulou melhor que Baudelaire em trecho citado por Maritain:

É esse imortal instinto da beleza que nos faz considerar a terra e seus espetáculos como um vislumbre, uma “correspondência” do céu. A sede insaciável de tudo o que está além do que a vida revela, é a mais evidente prova de nossa imortalidade. É ao mesmo tempo “pela” poesia e “através” da poesia, “pela” música e “através” da música, que a alma entrevê os esplendores situados além do túmulo; e quando um poema extraordinário nos traz lágrimas aos olhos, essas lágrimas não são o sinal de um excesso de gozo, mas antes o testemunho de uma melancolia irritada, de uma postulação dos nervos, de uma natureza exilada no imperfeito e que deseja apoderar-se imediatamente, ainda na terra, de um paraíso entrevisto.

O artista – e não será o poeta o artista por excelência? – é sempre, nos seus momentos mais altos, alguém como Jacó em plena noite, tentando vencer em árdua luta o anjo, que desaparece pela manhã e o deixa coxo. Por isso é que as obras de arte se multiplicam: o absoluto jamais é atingido e falta sempre alguma coisa à beleza criada, até mesmo quando criada por Deus. “La beauté boite”, diria Jean Cocteau em esplêndido trocadilho. E o poeta será sempre o albatroz do soneto: “ses ailes de géant l’empêchent de marcher”. Ou aquele que escutou, ao nascer, a maldição do anjo torto: “Vai ser gauche no mundo!”Mas não podemos dizer que Gonçalves Dias já possuísse, como Poe ou Baudelaire ou Drummond, essa nítida consciência da poesia, que vai florescer, indubitavelmente, no último ocupante desta Cadeira, a ponto de ter chamado Cantiga Incompleta ao mais importante de seus livros.

O ROMANTISMO DE GONÇALVES DIAS

A poesia de Gonçalves Dias, mesmo na “Canção do Exílio” e a despeito de sua filiação romântica, era uma poesia com os pés na terra, e sobretudo na terra brasileira:
 
Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha:
nas débeis cordas da lira
hei de fazê-la rainha...

E o consegue plenamente. Tendo voltado de Portugal, não se torna apenas o maior poeta do Brasil de então, como se revela, na opinião de Alexandre Herculano, superior aos portugueses, repetindo a proeza da nossa Escola Mineira. Gonçalves Dias – como a última flor do Lácio que ele elevou tão alto – foi também, podia-se dizer com toda propriedade, “flor amorosa de três raças tristes”: filho natural de um português que lutara por manter o Maranhão sujeito a Portugal, e de humilde mestiça analfabeta, onde se cruzavam, não sabemos em que proporção, sangue de índio e de negro. Assim o seu indianismo, longe de ser apenas um postulado do Romantismo e uma questão de moda, era uma afirmação da pátria e de si mesmo, capaz de produzir obras-primas como o “I-Juca-Pirama”:

Um amigo não tenhas piedoso
que o teu corpo na terra embalsame,
pondo em vaso d’argila cuidoso
arco,  frecha e tacape a teus pés!

Se de um lado Gonçalves Dias terá, como romântico, idealizado os selvagens, que falam e procedem como personagens de Corneille, de outro lado quantas observações exatas em relação ao temperamento, aos costumes, aos rituais e à história dos índios, já reveladoras do historiador e do etnógrafo!

Porém não só o Nacionalismo e o Indianismo, tão evidentes em Gonçalves Dias, caracterizavam os românticos. Devemos acrescentar ainda o amor infeliz e o sentimento da morte. Nesse capítulo, o do amor infeliz, como foi romântico o nosso poeta! Pois ainda que se tenha entregue a mil aventuras e chegado a contrair casamento, por despeito, com a inditosa Olímpia da Costa, jamais pôde esquecer Ana Amélia, que a mãe lhe negara por mestiço, e que termina também casando-se com outro, tanto mais amada quanto inatingível:

Contradições da alma humana!
Fui, sim, quem te dei o exemplo,
isso quis, e ora contemplo
essa grinalda – a chorar,
a fonte pálida, pálida,
e o branco véu a ondular!

Dizia o meu saudoso amigo Fernando Carneiro:

O momento perigoso do qual o romântico fugia, era o da correspondência amorosa. A coisa sonhada era enorme, desmesurada. Ter de vê-la de perto, sentir seu sabor natural, teria por força de ser uma decepção, da qual instintivamente fugia. As mulheres que os românticos amavam deviam possuir olhos perjuros. Seu maior pavor era serem correspondidos... Nessa hipótese preferiam morrer. Morrer de amor.

E, prosseguindo, Fernando Carneiro se ocupa, com igual humour, da terceira característica que atribuímos aos românticos:

A antecipação da morte estava na linha do Romantismo. O ideal clássico era ser sadio e viver uma vida longa. Os românticos, entregando-se a todos os excessos, morriam cedo. Era um ideal morrer cedo, “na flor dos anos”. E assim morreram Álvares de Azevedo, Castro Alves, Casemiro de Abreu. Quando Gonçalves Dias ultrapassava os 40 anos, havia um mal-estar entre os românticos. Aquilo era um escândalo. E no ano seguinte Gonçalves Dias morria tragicamente, tuberculoso, só, num naufrágio, à vista da terra natal. Morria de várias mortes.

Uma “reabilitação”, concluía Fernando Carneiro.

O PRÍNCIPE DOS POETAS

Como vimos pelo discurso de Nabuco, cada fundador de Cadeira escolhia o patrono. Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, cujo nome é um perfeito alexandrino, escolhe Gonçalves Dias. Pois bem merecia o patrocínio do poeta máximo, o que seria proclamado, em concurso da revista Fon-Fon, “Príncipe dos Poetas Brasileiros”. Que Gonçalves Dias fosse o máximo não restava para Bilac a mínima dúvida, declarando em artigo que o maranhense fora “cinquenta mil vezes superior a Castro Alves e Casemiro de Abreu”. E seria Olavo Bilac realmente o Príncipe dos nossos poetas? Diz-se que o mais votado fora Alberto de Oliveira, mas os organizadores do concurso proclamaram Bilac para contentar o grande público. Certo escritor, ao lhe perguntarem qual o maior poeta francês, respondia suspirando: “Hélas! Victor Hugo...”  A que outro definiria: “Un fou qui se croyait Victor Hugo...” Também Bilac, entre nós, tornou-se o poeta por antanomásia. E para mim, apesar das preferências posteriores, continua com o cetro, por ter sido o que me cercou, na infância, por todos os lados. Se a “Canção do Exílio” é, na verdade, a recordação mais antiga, logo as Poesias Infantis me tomaram de assalto. Antes mesmo de tê-las na mão para meus exercícios de leitura, já as ouvia recitadas (minhas tias eram professoras) por todos os alunos do colégio. Antes mesmo que aprendesse as estações do ano pela experiência (e só temos praticamente duas!) ou pelas aulas de Geografia, via minhas irmãs e primas, de agasalho ou leque, com frutos ou flores, a representarem o Inverno, a Primavera, o Verão e o Outono:

Cantemos, irmãs, dancemos!
Espantemos a tristeza!
E, dançando, celebremos,
a glória da Natureza!

0Mas a mim, que aprendera a Ave-Maria ao mesmo tempo que a fala, surpreendiam-me os versos das Poesias Infantis que mandavam ler o que eu sabia de cor!

Meu filho, termina o dia...
A primeira estrela brilha...
Procura a tua cartilha,
e reza a Ave-Maria!

Mas logo eram milhares de estrelas que se acendiam. Pois, mesmo antes do fim das chuvas e de ter o adolescente entrado pelo sertão com “O Caçador de Esmeraldas”, o caderno de minha irmã se abria como uma janela para a contemplação das estrelas:

E eu vos direi: Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
capaz de ouvir e de entender estrelas.

A princípio meras confidentes de seus amores terrenos (observa Amadeu Amaral), as estrelas tornam-se depois as doce inspiradoras de seus sentimentos mais altos. Elas encarnam para ele (basta lembrarmos as “Virgens Mortas”) as virgindades eternas. Subindo da juventude à maturidade (prossegue o seu sucessor), ele subiu do materialismo alado dos primeiros versos a uma alta espiritualidade...

Amar para entender.

Dispensado de morrer cedo como os românticos, o parnasiano Bilac imitou Gonçalves Dias em dois pontos: falta-lhe a família e roubam-lhe a noiva. O Dr. Brás Martins o expulsa de casa quando troca a Medicina pela Poesia. E a noiva – aliás irmã de seu amigo Alberto de Oliveira e também Amélia como a de Gonçalves Dias – lhe é negada pelo irmão mais velho (o que prova que nem sempre Amélia é que é “a mulher de verdade”). Mas, ao contrário da outra, recusará qualquer casamento, a ponto de Bilac considerá-la a sua “viúva”. E só lhe resta, abençoando-a, maldizê-la:
Maldita sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu sem ter nascido!

Mas apesar de todos os ímpetos românticos, Bilac permaneceu fiel à perfeição da forma:

Quero que a estrofe cristalina,
       dobrada a jeito
do ourives, saia da oficina
       sem um defeito.

Aliás, para vergonha minha, autor de obras de tão pouco lavor e acabamento, vede o modelo que Bilac apresenta no seu famoso soneto “A um Poeta”:

Longe do estéril turbilhão da rua,
beneditino, escreve! No aconchego
do claustro, na paciência e no sossego,
trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

Beneditino, escreve... Vede a vantagem de minha presença na Academia: mesmo que eu não dê o exemplo de bem escrever, meu simples hábito lembrará a todos o conselho de Olavo Bilac, de quem agora me despeço para evocar, ainda que rapidamente, Amadeu Amaral.

PRO DOMO SUA

Sem a fama dos antecessores e mais que ambos jornalista, Amadeu Amaral mantém aceso o facho da Poesia. Se para Odylo sua forma se desprende do rigor parnasiano, prossegue no entanto na distorção romântica (e também simbolista!) em relação à vida monástica:

Quem me conheça, muitas vezes há de
ver que na dor, como hoje, me enclausuro,
monge vagando em corredor escuro,
alheio aos ecos da comunidade.
Por entre os claustros da Amargura arrasto
no pavimento a minha vil sandália.

“Não há um só ponto da existência, vocação e psicologia dos monges”,  observa André Frossard em relação aos últimos séculos,

[...] sobre o qual não nos tenhamos enganado! Nós os vemos ora a cavar a própria sepultura (segundo Chateaubriand), ora empanturrando-se (segundo Rabelais), – atividades dificilmente conciliáveis. Logo após termos cantarolado a preguiça dos monges, rendemos homenagem à paciente minúcia de algum trabalho, classificando-o espontaneamente de trabalho beneditino. Jamais os vemos como geralmente são: virtuosos, equilibrados, simples, quase sempre a sorrir.

De outro modo, senhores, como teriam civilizado os bárbaros, que vieram a constituir a Europa e aos quais transmitiam, com a Boa Nova do Evangelho, o cultivo da terra e do espírito? Sim, Bento de Núrsia, de cujo nascimento celebramos este ano o XV centenário, foi o mais equilibrado dos homens, unindo a oração e o trabalho, relegado pelos gregos e romanos aos simples escravos.

UM PEQUENO PRÍNCIPE

Mas deixemos os bárbaros do século VI e voltemos aos do nosso, para surpreender um deles, cinquenta anos atrás, a entrar na Academia. Guilherme de Almeida não uivava às nossas portas, como o bárbaro de Bilac, pois era sem dúvida o mais suave participante da Semana de Arte Moderna. Bastava trazer debaixo do braço os 33 sonetos do seu primeiro livro, Nós, que se juntavam harmoniosamente aos 35 da Via Láctea, de Bilac, formando uma esplêndida galeria, à espera de que Odylo Costa, filho viesse um dia com os seus. E Guilherme conseguia realmente renovar e conservar ao mesmo tempo, a ponto de poder propor aos colegas o seguinte dilema: “Ou me consideram um poeta passadista, e nesse caso devo aceitar as honras de acadêmico, ou me consideram modernista, e nesse caso a minha entrada (na Academia) representa um triunfo para nós.” E para o seu livro Nós. Por curiosa e profética coincidência, foi Guilherme de Almeida que marcou, após meu culto por Bilac, o meu tempo de Ginásio; pois ao sul de Minas daquela época chegavam mais facilmente as coisas de São Paulo que de Belo Horizonte, onde, a 24 horas de trem, Carlos Drummond de Andrade estava descobrindo que “no meio do caminho tinha uma pedra”...

Não, Guilherme de Almeida não era um bárbaro. E, mesmo antes de eleito “Príncipe dos Poetas”, fora, ao contrário de Gonçalves Dias e Bilac, um Pequeno Príncipe no asteroide de sua família campinense ou campineira. Transferido para São Paulo, tornar-se-ia, como observa Odylo, um poeta citadino, que cantou “a alma triste das ruas”, mas também, se não me falha a memória, a própria Rua da Felicidade.

Desta minha janela cá do alto
é que, aos poucos, minha alma se habitua
a sentir, nas calçadas e no asfalto,
a alma triste da rua.

E cantou as árvores. Não as que Gonçalves Dias foi contemplar no Amazonas ou as “Velhas Árvores” de Bilac (que só gostava da Natureza nos versos), mas as árvores da rua, as suas “verdes exiladas”, “doentes, raquíticas, plantadas / em longas filas paralelas”... Como cantou também os varredores “mudos de assombro, / sacola ao lado, vassoura ao ombro”.

E eles – coitados! – que, sendo honestos,
nada guardaram, varrem os restos
dos que tiveram para pôr fora!

E cantou também as órfãs, que já não mais existem:

Perpassam docemente as órfãs, olhos cheios
de sol, tontos de luz. E vão, duas a duas,
em fila aborrecida ao longo dos passeios,
na movimentação dominical das ruas.
Guilherme parece ter escutado o conselho de seu antecessor e amigo, Amadeu Amaral, que dizia:

Só vós, moços, chorais a vida que aborrece.
Só vós pedis à vida o que ela dar não pode,
e só vós recusais os bens que ela oferece!

Deixando de lado as frustradas paixões dos românticos, Guilherme de Almeida viveu e celebrou o amor singelo, ao alcance de todos:

Uma mulher me disse: “Vem comigo!
fecha os olhos e sonha, meu amigo!
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
Um telhado... Um penacho de fumaça...
Cortinas muito brancas na vidraça...
Um canário que canta na gaiola...
– Que linda a vida lá por dentro rola!”

Pela primeira vez, eu comecei a ver,
dentro da própria vida o encanto de viver!

Guilherme disse, ao tomar posse da Cadeira 15, que Gonçalves Dias fora as raízes, Olavo Bilac as flores, e Amadeu Amaral os frutos. A Árvore da Poesia já estaria completa, e só lhe restava passar. Ora, ele já desempenhara também a sua missão. Ele baixara os galhos da árvore para que o homem da rua pudesse alcançá-los. Ele tornara, sem nenhum prejuízo da beleza, mais sumarentos e brasileiros os frutos que pendiam, como ao escrever, depois de NósVocê.

A CANTIGA INCOMPLETA

Sim, com Guilherme de Almeida, a Cadeira 15 parecia ter atingido a plenitude, e ele poderia talvez repetir os versos de minha saudosa amiga Cecília Meireles:

Eu canto porque o instante existe
e minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Ora, Odylo Costa, filho vinha mostrar, paralelamente, que isto não era verdade. Que existia, além do instante, o eterno. Que a plenitude, sonhada por Poe ou Baudelaire, não se cumpre na terra. Por isso nos traria, como trouxe, uma Cantiga Incompleta. E vinha trazer-nos aquele Deus não apenas vislumbrado nas palmeiras e nas estrelas pelos outros. Mas que falara a Abraão, Isac e Jacó no Antigo Testamento. E se tornara visível, no Novo, por seu Filho, Jesus Cristo, que transforma a árvore da Poesia na da Cruz e da Vida, e nos ensina a molhar o pão na vontade do Pai.

UM NOME COM VÍRGULA

Antes porém de nos concentrarmos nesse ponto – o essencial e o característico de Odylo – gostaria de deter-me um instante em nossa amizade. Nascido apenas um ano depois dele (mas tão longe: Minas e Maranhão!) eu já deparava, ao terminar meu ginásio de interior, com o seu nome nos jornais do Rio! Nome que jamais esqueci, por ser o único nome que tinha vírgula e um filho com f minúsculo... Sem que o conhecesse ainda, quando em 1947 publiquei o meu primeiro livro, Teatro, com prefácio de Gustavo Corção, Odylo saudou-me, penso que na Tribuna da Imprensa, com generosa crônica, Perdi o recorte dessa crônica, como perdi também a que escrevi mais tarde sobre Odylo Costa, neto, crônica que viria selar para sempre nossa amizade. D. Aquino Correia começou o discurso de posse com esta queixa: “Triste e paradoxal condição é, de quem entra na imortalidade das academias, depararem-lhe, desde logo, os troféus da morte, no vestíbulo desses olimpos terrestres!” E ao pensar na morte de Odylo, impossível não contemplarmos, junto, a do filho, que o veio matando pouco a pouco. Perdoai-me, senhores, se, focalizando sobretudo esse acontecimento-chave na vida de Odylo, deixarmos de realçar como fora mister as várias facetas de uma carreira tão precoce e rica!

Comentei aliás no Conselho Federal de Cultura, onde foi maior o nosso convívio, que Odylo, capaz de integrar qualquer das Câmaras, tão entendido no campo das Artes, da Ciência ou da História, acabara servindo na das Letras, onde se integra melhor a Poesia, que é no entanto uma peregrina. E foi sobretudo a dor que fez surgir e dominar em Odylo a Poesia, que o traspassou como um gládio. Que fez dele um fingidor, a fingir o que deveras sentia:

A dor que Deus me deu, aceito-a. Ponho
máscaras mansas no meu sofrimento!

“Uma dor antiga”, como disse Drummond, “instalou-se em seu flanco esquerdo / (para não dizer que em sua alma se instalou)”, dor que acompanhou com fidelidade os seus passos sem torná-lo amargo ou revoltado. A ponto de que Odylo, de fala mansa e doce coração, convivia com ela, como o irmão a conversar com o irmão.

ALÉM DA BOCA DA NOITE

Para essa dor – a de perder da noite para o dia o primogênito que mal passava da adolescência à juventude – encontrei em crônica para O Cruzeiro, que Odylo então dirigia, senão um consolo, pelo menos uma razão plenamente justificada pela fé que partilhávamos –, sim, partilhávamos, pois o que para nós ainda é fé e esperança, passou a ser, para Odylo, face a face e plenitude. Cremos na Ressurreição da Carne, isto é, que os nossos corpos um dia, quando o Senhor voltar, ressurgirão do pó e se unirão às almas já em glória, participando então plenamente da ressurreição de Cristo. E, se o Cristo ressuscitado era o mesmo, embora glorioso, também os nossos corpos serão os mesmos, embora subtraídos para sempre ao império da morte. E como poderiam faltar na paisagem celeste os corpos dos jovens, aqueles que são belos até na terra? Por isso Deus Pai, que decidiu poupar o seu Filho recém-nascido, aceitou o holocausto dos meninos de Belém, onde o sangue se misturava ao leite, “formando um terceiro tom, / a que chamamos aurora”, para que não faltassem ao céu as criancinhas “brincando com palmas e coroas”, como as vê a Liturgia. E Deus, para poupar também seu filho adolescente e moço, que precisava chegar por nós à idade adulta, tem de escolher de vez em quando, na terra, os jovens que hão de constituir, em sua nudez restaurada pela graça, o mais belo ornamento do cenário divino.

UM GESTO DE GRATIDÃO

E desejaria, senhores, nesse momento de emoção, um parêntese, para focalizar um fato, um belo gesto de Odylo, ligado no entanto a isso tudo. Tendo ouvido que eu pretendera candidatar-me à vaga de Guilherme de Almeida, mandou-me dizer por nossa amiga comum, Maria Luiza de Queiroz, que estava pronto a retirar o seu nome, se assim fosse, não querendo concorrer com quem tanto o consolara! Sua candidatura foi avante e tomou posse com magnífico discurso, vestido – gracejava ele – de Mosteiro de São Bento, comparando à nossa velha igreja o ouro do seu fardão.

O venerável D. Silvério Gomes Pimenta, que procedera na Academia a D. Aquino, registrou em sua posse a perplexidade reinante: como fazer ele, um bispo, o elogio de Alcindo Guanabara? Mas as páginas piedosas que respiga em sua obra parecem não convencer a Carlos de Laet, pois lhe aconselha, em sua resposta, a precaver-se contra certos jornalistas que, ao lhe encomendarem um artigo sobre Jesus Cristo, perguntam simplesmente: “A favor ou contra?” Eu não podia ambicionar melhor sorte que o elogio de Odylo: o poeta, o amigo, cristão. O poeta bissexto que só se põe a cantar quando o filho morre –, e não um “Cântico do Calvário”, como Fagundes Varela, mas um cântico de Tabor!

Não cantem
os as dores mas o Cristo.
Nem quanto sangue nosso se perdeu
mas o jogo, a conversa, a gargalhada
que cantou infantil em nossa casa.
Odylo está falando no plural. Mas não se trata de um plural majestático. Está falando com a metade de sua alma, está falando com Nazareth, como no “Soneto do Amor Teimoso”:

Amo-te hoje do mesmo amor teimoso
daquele dia em que te vi primeiro
e se te amei desde o primeiro instante
hei de te amar até o derradeiro.

Somam-se em mim para te amar a vida
e a morte: nem jamais eu suspeitara
que do capricho pela adolescente
viesse essa força indefinida e rara.

Amor feito resina, porque chora,
calado como as coisas, como o chão,
mas capaz de irromper – estranha lava –

numa festa de flor, só flor, mais nada,
cobrindo o tronco velho e os galhos secos
como as quaresmas que o teu filho amava.

A CASA REPLETA

Se Odylo nos deixou uma Cantiga Incompleta, deixou-nos uma casa repleta. Pois diz da adolescente, que ele compara a uma palmeira esguia, com tranças de mel:

Mas nela havia tanta eternidade,
que pôs Nossa Senhora do Bom Parto
nove bocas em torno à nossa mesa
e uma sombra perene em nosso quarto.
Esta “sombra perene em nosso quarto”, que eu julgava ser a pequena Aurora, que não passou de aurora por não ter desabrochado plenamente em suas faculdades, essa sombra perene foi, como me esclarceu Rachel de Queiroz, um natimorto. Só ele foi sombra. Pois Aurora foi luz por 13 anos, apesar de tudo, como foi luz a ausência do primogênito, desabrochando em fé e poesia:

Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.

E o gosto pelo humano barro permaneceu em Odylo. E a tal ponto que até o barro de sua casa se humanizava e transfigurava, sentimento que transmitiu sem dúvida aos que o cercavam, como o genro poeta, que nos fala, num pequeno poema antológico, da velha casa que se abandona por outra e parece sofrer em sua carcaça e caliça.

DEUS NECESSITA DO PERDÃO DOS HOMENS

Encontramos, no Antigo Testamento, o salmo da família:

Feliz és tu, que temes o Senhor
e andas no seu caminho!
Ganharão tuas mãos o pão que comes,
 e viverás feliz!
Tua esposa é a parreira carregada
no coração da casa.
Brotam teus filhos como as oliveiras
em torno à tua mesa.
Eis com que bens será abençoado
o que teme o Senhor!

Na concepção do Antigo Testamento, onde brotaram os salmos, o justo era sempre abençoado e feliz, tanto que os amigos de Jó acusam-no de pecado, ao ver desabarem sobre ele as sucessivas catástrofes, que lhe arrebatam os filhos, os bens e a própria saúde, até que tudo lhe é devolvido ainda na terra. Mas “Odylo e Nazareth, tão irmanados / que um não é sem o outro na paisagem / de filhos e trabalhos ajustados / ao desígnio de Deus”, como disse Drummond, Odylo e Nazareth compreenderam a mensagem de Cristo no Novo Testamento, que transporta para a vida eterna – eterna! – a plena felicidade. E Odylo assim termina o seu “Soneto de Jó”:

[...]
A Teus pés volto. Faça-se o que queres.
Tanto me deste que por mais que tires,

sempre me resta do que Tu me deste.
Deus necessita do perdão dos homens
e é esse perdão que venho te trazer.

Com o coração rasgado, mas ao alto,
Senhor, Te entrego os filhos que levaste
pelo amor dos meus filhos que ficaram.

E Odylo volta-se para Nazareth, no “Soneto da Fidelidade”, talvez o mais belo saído de sua pena molhada em Camões:

Não receies, amor, que nos divida
um dia a treva de outro mundo, pois
somos um só, que não se fez em dois,
nem pode a morte o que não pôde a vida.

A dor não foi em nós terra caída
que de repente afoga, mas depois
cede à força das águas. Deus dispôs
que ela nos encharcasse indissolvida.

Molhamos nosso pão quotidiano
na vontade de Deus, aceita e clara,
que nos fazia para sempre um.
E de tal modo o próprio ser humano
mudou-se em nós, que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.

A OBRA-PRIMA DE ODYLO

O próprio Odylo, que se considerava frustrado por não andar de bicicleta, não dirigir automóvel e não falar inglês, e que se queixava de não saber fazer poesia concreta e tinha por incompleta a sua cantiga, considerava que sua casa fora a sua obra. Não tanto a casa de barro, que também se humanizava, mas a casa viva – o pai, a mãe, os filhos, entre os quais genros e noras, e entre os quais a doce sombra dos mortos. Esta casa, que se abria generosa e acolhedora, para tantos e tantos amigos, só transpus o seu limiar no último Natal, para ver-lhe os netos representarem diante do presépio. O mesmo presépio armado na sala de entrada como quando Odylo, agora ausente, era criança. E lembrei-me então do último verso do seu “Soneto de Natal”:

E Deus nasce do chão como uma fonte.

Na água desta fonte e na que lhe brota dos olhos, Maria Nazareth continua a molhar o pincel que povoa de anjos, crianças e bichos os livros do marido. Como continua a molhar o pão quotidiano “na vontade de Deus, aceita e clara” num gesto odylico – e para ela idílico.
Recordemos ainda uma vez os versos de Odylo:

Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.

Poeta até então bissexto, Odylo Costa, filho percebeu afinal que o seu mais lúcido dever era cantar. E cantou-nos, quase à Boca da Noite, uma Cantiga Incompleta. Pois sabia que a completa, a que ele canta agora, não pode – ai de nós – ser cantada na terra, neste vale de lágrimas. Estamos ainda no exílio e não na Pátria. E

As aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.

NAS MÃOS DE UM PAI

Senhores! Se por mãos de mãe fui introduzido nesta vossa Casa, nela acolhem-me agora mãos de pai. Bastaria dizer que de Alceu Amoroso Lima recebi quem foi para mim o mais caro dos irmãos, segundo o espírito, Gustavo Corção, que ele confiou aos meus cuidados, no tempo em que fui seu secretário. Como também nos deu por irmã Madre Maria Teresa, a abadessa que colocou nos lábios de suas monjas os salmos que traduzi. Vejo facilmente, nas mãos que me recebem, as de meu pai segundo a carne, que se cruzaram para sempre, mas não cessaram de abençoar-me. Como também as de outro que há mil e quinhentos anos nascia em Núrsia, e continuam a traçar sobre nossa cabeça, pelas mãos de nosso abade, o sinal da cruz e da paz.

E a vós, que hoje me acolheis, senhores acadêmicos, que podia dizer-vos senão aquela mesma saudação que ouvimos tantas vezes dos lábios de Cristo, nestes dias de Páscoa:

“A paz esteja nesta Casa!”

23/5/1980