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Discurso de posse

 Senhor Presidente,
 
senhores representantes de Sua Excelência o Senhor Presidente da República e do Excelentíssimo Senhor Governador do Estado do Rio de Janeiro, excelentíssimos senhores ministros do Supremo Tribunal, excelentíssimos senhores senadores e deputados, embaixadores e cônsules-gerais, magníficos reitores, Reverendíssimo representante de Sua Eminência o Senhor Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Senhor representante do Excelentíssimo Senhor Ministro da Cultura, senhores oficiais generais, Excelentíssimo Senhor Prefeito da Cidade de Niterói, Senhor representante do Excelentíssimo Senhor Prefeito do Rio de Janeiro, digníssimos representantes da Família Américo Lacombe, senhores presidentes de instituições culturais, Senhor Acadêmico Abgar Renault, que me prezo de ter por paraninfo, minhas senhoras, senhores,
   
venho cumprir perante Vossas Excelências minha primeira missão nesta tribuna.
   
Senhores da Academia Brasileira,
   
minha palavra começa por ser de reverência e de amor à província natal. No seu adereço de prioridades, brilha a própria fundação desta Casa, idealizada pelo fluminense Lúcio de Mendonça e constituída graças à sua tenacidade sem eclipses, ao reunir em torno da bela ideia homens de espírito representativos da época, motivados, todos, por aquele auspicioso “convite” de que falou Joaquim Nabuco; convite do jovem de Piraí, do “moço”, como acabaria dizendo Machado de Assis em seu discurso inaugural de Presidente, referindo-se à nova Academia: “Idealizada por um moço...”, assim falou o inventariante de Brás Cubas. Não lhe declinou o nome, certamente pelo cuidado de não lhe salpicar na modéstia uma alusão direta. Cuidados machadianos?...

Mas não saberia eu evocar o meu antigo Estado do Rio, sem me concentrar na cidade-berço: Vila Real da Praia Grande ou singelamente Niterói. Lá nasceram e findaram meus pais. Devo-lhes uma bonita incentivação dos meus pendores nascentes. Mais que isso: devo-lhes um ambiente, uma atmosfera de cultura, de intelectualidade idealista e os melhores contatos literários em casa, como do portão para fora; contatos que explicam em boa parte esta noite. Lá, na modesta Niterói, também nasceu, viveu por longos anos e fruiu as primeiras grandes vitórias na profissão, como também fincou os pilares da prosperidade pessoal, um dos mais consagrados juristas do País, Levi Fernandes Carneiro, a cujos filhos, amigos militantes, devo a cativante iniciativa que me traz a emoção de empossar-me nesta Casa, envergando a espada acadêmica que usou sob este teto, em noites de gala, meu grande amigo e mestre. Como que estou a vê-lo aqui, onde ele me queria ver. E isto aviva o profundo sentido fluminense de uma amizade e uma gratidão sem nuvens ou simplesmente o sentido da terra. Mais do que nunca, sinto que a província é tudo, até porque, como expressão maior de pureza e fidelidade às origens, vem a ser, por isso mesmo, um ponto de resistência natural à distorção dos valores, à poluição do gosto, à transgressão cultural, à lesão da própria sensibilidade popular.

Cioso da sua província, ou precisamente do seu município, era aquele Acadêmico de França, Edouard Herriot, por trinta anos prefeito da sua cidade de Lyon e a ela tão fortemente apegado, que o Presidente Georges Pompidou, numa ousada mas excelente imagem, apontou nele alguém enlacé en sa commune comme un serpent amical...

Mas por que colher exemplo fora da barra, pondo em baila o autor de Madame Récamier et Ses Amis, se temos, mais que a prata, o ouro da terra fluminense, na atitude amorosa e lúcida do egrégio Raul Werneck de Avelar Fernandes, cujas inclinações de espírito, como escrevi há tempos, oscilavam entre Valença, Vassouras e Versailles. De lá, do palácio dourado dos reis de França – quando de uma reunião internacional por volta de 1918 ou 1919 –, a extensão e a gravidade dos seus afazeres político-diplomáticos não o impediram de enviar carta ao Governador do Estado do Rio, cobrando-lhe a pavimentação de uma estradazinha medíocre ligando, em Vassouras, um distrito a outro.

É belo tudo isso. A província é o ponto de irradiação dos entusiasmos sadios e dos amores mais puros. Só não o discernem os inseguros do próprio mérito, em geral imersos no ridículo do nuvorrichismo intelectual, social, político ou, numa hipótese menos negativa, os que erradamente indentificam no provinciano sempre o rústico, o rude, o roceiro. Não sabem que a mais forte aristocracia, exatamente pelo poder de possuir a terra, vem do campo – aqui e em toda a parte.

Estou a me lembrar de um dos mais completos sociólogos de nosso tempo, o insuspeito Lewis Mumford, norte-americano, quando implicitamente preferiu um fazendeiro de Boston a um senador por Nova York: politenThere is more ess in a Boston farmer than in a New York senator – lá está, com todas as letras, numa sua entrevista à televisão, em Londres.
 
Dizendo-lhes essas coisas a só um tempo simples e complexas, marco uma posição de fidelidade a certas matrizes culturais.

Seja eu como for, senhores acadêmicos, aqui estou. Fui eleito, e já não há mais recurso. Aos que me sensibilizaram com o voto consagrador, o agradecimento de um coração aberto; aos que puseram na velha urna de bronze outro nome, no pleno e belo exercício do direito de preferir – direito por excelência humano –, lastimo não possa dizer como o garoto da historieta de Álvaro Moreyra, aquele pirralho que, tendo vencido em concurso literário no colégio, eximiu-se quase a chorar: “– Desculpem. Prometo que não faço mais.”

E trago minha melhor palavra de reconhecimento também àquelas e àqueles que não pertencem a esta Casa, nem poderiam integrá-la, já que são muito mais de quarenta... Estou pensando em intelectuais, pessoas significativas e ainda mesmo nas criaturas intelectualmente desambiciosas que me trouxeram, falando e escrevendo, o seu apoio, seu impulso generoso, sua vibração brasileira. Foram, como lhes chamei, os meus eleitores subjetivos, camada de uma opinião realmente pública, não necessariamente a que se publica e pode ser de encomenda. O que tive foi o voto moral de uma comunidade cujas homenagens, após a eleição, se vêm sucedendo em ritmo encantador. Também nos braços desses muitos aqui chego.

Perdoem-me, senhores da Academia Brasileira, que esteja a falar de mim. A bem pensar, presto contas aos que me honraram com o seu voto, levando-me ao êxito. E seria de repetir aquela réplica, concisa e afiada, de José Américo de Almeida, quando o criticaram por falar de si: “– Falo porque posso...” Ou isso ou recordar Gilberto Amado:  “– Hei de falar de mim mesmo. Conheço profundamente o assunto.”

Seja como seja, e ainda que arrimado em gente de respeito, o bem melhor será mudar de tema.

A Academia, como diria o fino Aloísio de Castro, não enxertou “dentre as práticas da boa usança” o Termo de Compromisso nas sessões de posse. Quanto a mim, “velho menino” (houve quem o dissesse) ainda que bem diferentemente do outro, de Álvaro Moreyra, também tenho o que prometer. Desde logo, viver a Instituição, sentindo-a no seu essencial; assumindo, assim, o compromisso de evitar os caminhos da vulgaridade, que além de opostos aos caminhos acadêmicos, já nem levam mais ao povo. Ele quer ascender e está ascendendo – invadiu a escola. Equivocou-se demagogia. Viva o povo brasileiro – estamos em ponto e hora de repetir com o Sr. João Ubaldo Ribeiro, ainda convalescente da última eleição neste Condomínio sutil – ou “vitalício”, como preferiu Alcântara Machado, quando aqui se empossou.

Pode um escritor, mormente no mundo da ficção, trabalhar com certos dados do vulgar. Nada importa, se a sua especulação literária, pela técnica de construção, a graça, o alcance social e humano, insufla no leitor o desejo de rever valores, retificar velhos juízos apriorísticos e redescobrir a alma da sua gente. É o caso singular do Sr. Jorge Amado, de obra tão telúrica e tão universal, exatamente porque nos deu e nos dá páginas em que as rotinas e a inventiva simples do povo “miúdo”, ou os instantâneos do vulgo, se diluem no claro senso poético – um lírico de lugar marcado na Prosa Brasileira... descontraído, engenhoso, baiano.

Mas ia eu dizer a Vossas Excelências que uma forma de avivar meu Termo de Compromisso será resumir o que penso da Instituição quase centenária.
 
Quando me propus aos seus votos, pensei em dobro: na Academia, diretamente – claro; essencialmente, em academia. Explico-me: o que a sensibilidade me apontou não foi apenas uma academia, esta, sediada neste Palácio, presente da França de todos nós; o que vi e a rigor senti foi a Instituição Acadêmica como tal, sua significação no espaço histórico, seu papel, seu espírito.
 
Academia, para mim, tem a força dos símbolos. A própria gala que a singulariza, se já não bastassem a ideia de imortalidade, o toque aristocrático dos seus paramentos, a ousadia, talvez irônica, de uma espada civil, a própria gala, dizia eu, perfaz valores que não se diluem no chá das quintas-feiras, precisamente porque traduzem uma atitude, um gesto de crença na superioridade das inteligências polidas pela Cultura e municiadas pela decisão de defesa da liberdade de ser, de pensar e dizer. E é essa, afinal, a significação da espada sui generis, materialização de um espírito não apenas liberal, senão também vigilante. Desse espírito, há provas de peso e beleza, e dentre elas a mais completa – para não dizer a mais excitante – foi o duelo verbal a que se lançaram aqui mesmo Coelho Neto e Graça Aranha, nos idos de 1924, em torno de tradição e renovação, no campo da criação literária. A Academia Brasileira não mudou substancialmente, mas a divergência que estalou entre os dois maranhenses de talento na pena e sangue na guelra mostrou bem nitidamente que aquela, como a sua tetravó francesa, era uma casa de homens de espírito e, por boa consequência, livres.

Espírito assim livre e vigilante foi, por bom sinal, Joaquim Caetano da Silva, Patrono da Cadeira que me coube. Nesse gaúcho, nascido em 1810 e falecido em Niterói, em 1873, a linha eclética não veio a ser a linha da dispersão. O seu foi um ecletismo construtivo, produtivo, socialmente útil. Educado na França, lá se graduou em Medicina, em Montpellier. A formação clássica, notadamente no plano científico, ele soube pô-la a serviço do País, quando a Regência se tornava um período politicamente acidentado. Varando dificuldades naturais, fez-se professor do Colégio Pedro II. E o mestre completou-se na revelação de um administrador acurado: foi diretor do colégio. Mas o bom eclético mudou de rumo: aderiu à diplomacia. Creio que terá sido a melhor das suas opções, a mais benéfica ao Brasil-Nação e ao Brasil-Estado; no serviço diplomático, lidou avisadamente pelos interesses do País nas questões de limites das Guianas. Como se não bastasse, deixou em livro escrito em Francês – L’ Oyapoc et l’Amazone, de par com um sólido atestado de erudição, uma clara expressão de espírito público.
 
Esse alto espírito não faltou, por seu turno, ao fundador da Cadeira, fluminense de Magé, Alcindo Guanabara, cuja vocação de jornalista lhe brotou com os primeiros fios de barba: tinha a ninharia de dezessete anos quando apareceu em folha de Imprensa. E jornalista ficou sendo para sempre, por entre faiscações na Crônica Política e nos editoriais notadamente. Escrevendo para jornal, de 1882 a 1918, foi uma vocação que não se perdeu. Muito ao invés; para ela apelaram os grandes do Império e da República.

Um dado de sua vida trepidante envolve o problema da crença. Generalizou-se a impressão, suponho que produzida por certas expansões de fundo mais ou menos boêmio, que o jornalista era um agnóstico ou um ateu. Não era. E um dos seus discursos mais veementes, pouco depois da Proclamação da República, não faz dúvidas. Dizia ele textualmente: “Onde não existe a fé, não vibra a paixão pelas coisas superiores. [...] Não podemos submergir [...] roídos pelo ceticismo e sem fé religiosa.” E, inaugurando uma obra de assistência a crianças abandonadas, dizia a bom dizer: “Esperamos firmemente em Deus que nossa obra será abençoada. Deus estará conosco.”

Eis aí a demissão do ateu, se algum dia o foi; D. Silvério Gomes Pimenta, arcebispo de Mariana e primeiro sucessor do grande jornalista, tinha, como sempre, a consciência em paz. Aqui entrou sem suceder a qualquer ateu. Não foi preciso às ovelhas do Bispo que se fossem queixar ao Papa...

A obra do prelado escritor começa por um livro aparentemente convencional, por assim dizer de uma didática litúrgica, como sugere o título: A Prática da Confissão. Mas o certo é que, no precioso volume, o doutrinador católico deu as mãos ao escritor ameno; o mesmo que se impôs em outros volumes de interesse para a memorialística em termos de biografia e nos enternece com a evocação da figura materna, no dia triste da morte.

A D. Silvério sucede Gustavo Barroso, cearense de 1888 e escritor definido, a partir das primeiras tentativas na imprensa de Fortaleza, onde andou publicando contos, reunidos mais tarde em volume sob o título de Praias e Várzeas. Chega ao Rio em 1910. No Jornal do Commercio é o cronista vivaz e ali acumula matéria para um outro livro: Ideias e Palavras. Em qualquer hipótese, o que se destaca a produção do jovem Gustavo é o zelo do passado, uma espécie de culto da tradição. Notou-o, aliás, o Sr. Alberto Faria, quando aqui o recebeu em 7 de maio de 1928. Mas o seu livro-chave é Terra de Sol, publicado em 1912.
 
O Sr. Josué Montello, com a lucidez que nele é provérbio, recordava há dias o vigor literário e o alcance social do livro fascinante. Eu me permitiria acrescentar que há um quer que seja de euclidiano na técnica expositiva do autor, mergulhando no drama da terra e do homem, vítimas periódicas dos caprichos sinistros de uma natureza homicida. Uma inspiração ecológica, geopolítica, político-social, psicofísica atravessa a obra de Gustavo Barroso. Foi um telúrico bafejado por uma vibração literária que o Nordeste explica. Mas a visão, às vezes folclórica, do agreste inevitável e dos “chapadões bravios” não fez secar na sua sensibilidade o encantamento pelas revelações da heráldica e das genealogias insignes. Foi, no seu tempo, o peito brasileiro mais guarnecido de honrarias em ouro e prata, glória que o Ministro Ataulfo de Paiva suportou com dignidade e paciência de rival superado. Sofreu com elegância...

De Antônio da Silva Mello, o terceiro sucessor na 19.ª Poltrona, fruí a prodigalidade e a graça do convívio, jantando, almoçando, telefonando ou falando por escrito, nas cartas. Foi das criaturas mais singulares que frequentei: assim nas rotinas de vida como na própria Ciência. Havia nele uma espécie de insatisfação criadora que lhe aguçava o desejo de descobrir, de recriar a vida de cada dia, em cada cliente. Foi, sem dúvida, médico de consultório, hora marcada e jaleco. Mas a sua ciência transcendia o expediente comum. Tinha o senso e o gosto da inovação, na profissão e em tudo o mais. Porque afinal, por bem dizer, havia na composição da sua alma os traços do boêmio.

De elite, mas boêmio. E viria daí não o gosto de fazer Medicina, mas de refazer, de revolver, a arte da Clínica. Outra coisa não foi a sua famosa terapêutica emagrecedora, que lhe engordou altamente o renome e a bolsa burguesa. E o que foi como médico, um profissional dialético, polêmico se quiserem, foi por igual como escritor. Aquela sua série dos Prós e Contras – Estados Unidos, Religião, Israel – mostra excelentemente o seu espírito reformulador, redescobridor, revisionista. Numa palavra: sadiamente inquieto. Na sua pena, extremamente comunicativa, correntia, coloquial – graciosa e digna, ainda quando versava o rasteiro – na sua pena, ia eu dizendo, havia sempre uma claridade, uma invenção realista, sociológica e antropologicamente válidas. De permeio, a nota bizarra, longe de comprometer, contribuía mais e mais para fixar o leitor na sua especulação científica ou para atraí-lo ao centro nervoso do seu argumento.
 
Quando me presenteou com um exemplar do seu Religião – Prós e Contras, logo lhe telefonei para agradecer. Muito rapidamente, permutamos algumas ideias sobre o tema das suas novas páginas. Uns cinco minutos após, ei-lo a chamar-me pelo fio. Na sua voz, como que abafada por uma toalha no fone, voz anêmica, voz de cansaço, muito dele, logo me disse: “– Gostei da nossa conversa e do seu projeto de escrever sobre meu livro. A verdade, seu Marcos Madeira, é que o Cristo foi uma figura muito interessante.” Se há extravagâncias carinhosas, essa terá sido uma delas...
 
Silva Mello: o singular na Ciência, na arte de escrever, viver e conviver.

Medito agora no contraste, que está na história e na graça de tantas academias: ao agnóstico e pré-socialista, patrono da Sociedade dos Homens de Cor, homem de salão e de bar, veio suceder o austero, o católico rigoroso, o historiador e escritor exigente consigo mesmo. E com que lisura, com que finura perfeitamente acadêmica tratou o predecessor, sem sair da verdade, por amor de Deus.
 
Sou eu, agora, quem se preza da sucessão e de vir louvar o amigo.

Américo Jacobina viu a primeira luz em cidade de nome carregado de inspiração religiosa; inspiração que marcaria toda a sua vida: nasceu em São Sebastião do Rio de Janeiro. A família, culta e católica, foi-lhe um exemplo; bebera nas mais puras fontes de Cultura e Humanismo. E Humanismo e Cultura, àquele tempo, eram brilhantes incrustados no mesmo ouro. A ideia de seleção intelectual entrelaçava-se na ideia mesma de formação humanística.
 
Américo Lacombe sorveu o mel dessa filosofia, produtora do conceito aristocrático de elite, que sociologicamente já se poderia considerar, ainda mesmo àquela época, um conceito unilateral. A democratização da escola e por isso mesmo da Cultura repercutia no espaço social como ressonância de um boato. Fosse como fosse, meu ilustre antecessor educou-se para uma sociedade que pautou as realizações da inteligência na linha de altitude, de polimento e de austeridade; aquela austeridade que vinha a ser a própria elegância da sabedoria. Bem principalmente a sabedoria de transmitir modelos.
 
Na constelação doméstica, cintilava a estrela guia, o bisavô magistrado, Conselheiro Albino José Barbosa de Oliveira, que exercera a presidência do Supremo Tribunal de Justiça. O avô, Antônio de Araújo Ferreira Jacobina, primo e amigo de Rui Barbosa (nem todo primo é amigo), tornara-se doutor em Ciências Físicas e Matemáticas pela Universidade de Coimbra e bacharel em Filosofia pela Sorbonne, onde um dos seus colegas chamava-se Antônio Gonçalves Dias...

O pai era Domingos Lourenço Lacombe, de estudos de Humanidades seriamente feitos no Liceu Condorcet, de Paris. Seu professor de Inglês: um certo Mallarmé... Um dos seus colegas: Henri Bergson. Do casamento com a educadora Isabel Jacobina, nasceu, além dos filhos em carne e osso, o Colégio Jacobina, onde me prezo de revelar que estudou minha filha primogênita e onde, numa bela manha, falando em nome da Associação dos Pais, atirei minha eloquência da janela do Chalé sobre ouvintes distintos e resignados...

O Jacobina era a força de um belo exemplo intragrupal. Aquela classificação sociológica dos grupos, definindo a família como grupo natural, porque biológico, e a escola, grupo intermediário, o educandário da Rua São Clemente na verdade desfez: grupo natural era nele a escola, pela boa razão de que vinha a ser uma família. Uma família não apenas a inspirar, mas de fato a gerir, não só administrando como ensinando. Ensinando e administrando na casa e em casa. Havia um quer que fosse de superiormente doméstico naquele núcleo do ensino carioca; uma pedagogia a um tempo séria e afetuosa, interação caseira. Isso explica a saborosa incidência do apelido, que ali pude logo observar.
 
A diretora, minha digníssima e querida amiga Professora Laura Lacombe, era, para as alunas, Dadá, como a própria fundadora não escapara de ser Belinha. E Marietinha, a secretária? E Memé, a professora de Português? Mais que o nome, o cognome é rico de substância afetiva; por isso mesmo, mais aproximativo e, em boa decorrência, mais forte como fator de coesão, de enlaçamento das almas. Quem estudasse a função social dos cognomes como veículo de solidificação do próprio afeto e de eficácia das relações de companheirismo, atingiria conclusões de um auspicioso imprevisto.
 
O Jacobina era todo um espírito de família, numa família de espírito. Luís Viana, em seu discurso de posse nesta Casa, e Homero Senna, em conferência no Instituto Histórico, já haviam comentado que “Américo Lacombe cresceu dentro de um colégio, onde fez os primeiros estudos (sublinhou Homero Senna), orientado por sua mãe, notável educadora”. Eis aí. A ambiência intelectual, o clima moral, as sugestões de ordem vocacional e cívica teriam de fazer do jovem Américo um conservador; ele tinha o que conservar – tinha o que perder. E isso daria a compreender mais tarde o culto quase religioso da criatura pelas criações do passado. Terá sido historiador à sombra da árvore genealógica? Por impulso doméstico, familial? É a pergunta que entrego à Academia.
 
De toda maneira, o que importa ao País é a seriedade da sua obra; é seu acuro, o zelo no expediente da pesquisa, a segurança e lisura no processo conclusivo. Era a negação do afoito: decerto por isso, historiador em profundidade. E claro que não trabalhava com pressupostos; não o comprometia nenhuma arrière pensée – ia ao subsolo dos fatos. Ou mergulhava no passado brasileiro com tenacidade de escafandro, como se quisesse, no fundo do tempo, apalpar coisas, épocas, acontecimentos, instituições. Sua meta, fruto do próprio gosto pessoal, era ver a História viver, obreiro, que sempre foi, daquela living history de Toynbee, com as suas raízes ao sólido Gibbon, no agudo Fustel de Coullanges e em tantos mais, consideradas apenas as diferenças de forma ou estilo.
 
A bem pensar, por mais extravagante ou paradoxal que possa parecer, havia nele uma espécie de impressionista da Historiografia: um impressionista diferente, a seu modo. Sim, porque foi, em essência, um visualista do fato histórico, apaixonadamente empenhado em conferir a crônica do pretérito, a história em livro, com o documento na mão; por excelência, em gênero e escopo, um documentalista. Mas o interesse pelo documento não era evidentemente, no seu caso, um sucedâneo da paciência maníaca dos filatelistas, à procura de raridades; a verdade final é que Lacombe, como ia eu aventando, parafraseava, sem querer, os escritores franceses filiados ao Impressionismo. Aquela divisa – Ecrire pour les yeux – ele parecia ajustar à sua metodologia: Rechercher pour les yeux. A mim mesmo me ocorreu dizer-lhe que a sua tríplice residência psíquica ele a havia fixado em nosso Arquivo Nacional, no Instituto Histórico e na Torre do Tombo, em Lisboa. Sorriu a seu jeito, um meio de concordar sem dizer. O silêncio, nele, era muitas vezes uma forma de discrição conceituosa, um gesto de convergência implícita. Não abraçava desde logo as ideias como era também econômico nos abraços a pessoas. Sem me inclinar à conclusão de que era furreta no carinho, dou-me a crer que tinha um como que pudor do próprio afeto. Repetiria ele o exímio parnasiano, um dos fundadores desta Casa, o grave Alberto de Oliveira, para dizer-nos que “jamais abrira seu coração em público”?... Não, não terá sido assim. O que há é que a sua afetividade e suas intenções carinhosas vinham nos atos, antes que nas exteriorizações da ternura física. E não estaria assim preservando das expansões vulgares, do automatismo de certas práticas, ou praxes, a própria essência da afetividade? O certo, senhores acadêmicos, Vossas Excelências bem sabem: um afetivo era Lacombe; efusivo é que não era. Reflita-se sobre o claro exemplo, que deixou, de amor à sua Igreja. O marido extremoso, orgulhoso das virtudes de sua mulher, e o zeloso pai de cinco filhos deram as mãos ao paroquiano irrepreensível. E os netos? Nas visitinhas domingueiras, quantas vezes lhe suspenderam a austeridade e a velhice, se é que não as desmoralizaram carinhosamente?

Um dia, motivado por fortes amizades antigas, cuidou que seria possível juntar no relicário de amor, de permeio com o seu Deus e sua Família, sua Pátria. E alistou-se no Partido, que fora inicialmente um movimento de Cultura, de espiritualidade e brasilidade. Mas, quando entrou a ver que sua grei se desfigurava, desviando-se do rumo prometido, desligou-se honestamente do compromisso partidário. E contou ele próprio a Homero Senna que reuniu correligionários para assentar o desligamento, mediante a divulgação de uma espécie de manifesto. Um dos companheiros começou a ler o documento, mais ou menos nestes termos:
   
– Considerando os últimos acontecimentos que envolvem a Ação Integralista Brasileira; considerando que tais acontecimentos revelam desvios de rumos políticos, gerando frustração entre correligionários e consideráveis parcelas da opinião pública, os abaixo-assinados acordaram em...
   
Nessa altura, um dos companheiros aparteou, sugerindo: “– Pronto, fiquemos por aí: os abaixo-assinados acordaram.”

Uma das características de Lacombe era a fidelidade às ideias, o que explica a sua continuidade de conduta, no plano político inclusivamente. Não era homem de intervalos morais. E no comportamento do historiador isso se reflete claramente. É frequente na sua obra a decisão de retificar, para condenação final, o que lhe parecesse afirmação de má-fé ou pesquisa falseada, tendenciosa. Nem sempre será possível aceitar suas conclusões; mas impossível será negar que na ciência do historiógrafo palpita a consciência do homem sério. Assim, num só exemplo, a sua posição quanto à consistência ou profundidade da República entre nós, como movimento de opinião pública ou desígnio popular.

No velho debate em torno da descoberta do Brasil, fruto de um acaso, submeto à Academia a conclusão de que foi também a sua consciência moral que se fez sentir. As longas e largas pesquisas a que se lançou deram-lhe a crer firmemente que o apoio à tese da descoberta casual conflitava com o que ele mesmo averbou de “epopeia” da era das navegações portuguesas. De maneira que abraçou um critério não apenas descritivo, em nível de arrolamento ou inventário factual, mas, visivelmente, critério-defensivo, tendente à reparação do que tinha por incorreções ou injustiças contra uma “era de glórias”. Esta linha metodológica, se por um lado pode parecer um abrandamento do seu reconhecido rigor de objetividade, por outro lado está a demonstrar que o historiador, sempre arrimado no documento, não sacrificava, muito apesar disso, a capacidade interpretativa do pesquisador, ou seus dotes de historiador hermeneuta, seguro de uma exegese específica.

Se não há dúvida de que primou pelo apego ao documento e pelo incentivo a uma correta operacionalidade dos nossos arquivos públicos – e daí as suas afinidades com um Rodolfo Garcia, por exemplo –, uma outra verdade é que soube combinar essas tendências para a História verificada, contada, ou factual, com a História deduzida, dinâmica ou reconstruída – e daí os sinais da influência de Oliveira Viana, como notou o Professor Arno Wehling, num sumarento estudo que foi sua última conferência no Instituto Histórico.

Entre pesquisas e ideias, entre ação e “pensação”, como diria o sempre douto Sr. Antônio Houaiss, fluiu o trabalho de Jacobina Lacombe. Mas volto a dizer por outras palavras que era correta nos seus textos a distribuição das ideias; elas circulavam sem tropeços pelo centro do argumento capital, exatamente porque vinham de uma espécie de decantação dos documentos, resultado natural de uma bem vivida técnica de cotejo. Assim em toda a sua obra: Mocidade e Exílio (anotações e prefácio à correspondência de Rui Barbosa); Um Passeio pela História do Brasil; Introdução ao Estudo da História do Brasil; À Sombra de Rui Barbosa; História do Brasil; A Obra Histórica do Padre Hoonaert; Relíquias da Nossa História; Ensaios Brasileiros de História e Afonso Pena e sua época. Este último rebento da sua produtividade, a crítica o erigiu em obra mater. Com Razão e Motivo, como garantiria o Padre Manuel Bernardes. É que o livro não perfaz uma biografia como tantas outras; não é, tão só, o perfil de um homem de Estado, senão também de um estágio da política e da administração da República – livro que junta densidade e agudeza, claro exemplo de História deduzida, não apenas exposta. Foi sua obra cardeal.

Mas de interesse todo especial para a Academia terá sido, por certo, a presença do escritor no historiógrafo. Em não poucos dos seus ensaios, são fortes as vigas da construção literária, e sobre elas acabou instalando peças de leveza e graça. Sua comunicabilidade na palavra escrita vem exatamente de um certo despojamento artístico. Sim, porque simplicidade também é Arte, desde que não configure um mero truque literário, que o leitor de logo percebe, já que identifica no processo esse pitoresco paradoxo de afetar naturalidade. Não. Lacombe era escritor comunicativo, elegantemente comunicativo ou sugestivo, porque intrinsecamente simples. E a sobriedade, fruto da sua austeridade orgânica, avivava nele a figura do escritor desatado de compromissos com o frasismo ou a verbiagem, embustes que respondem pela incidência de uma demagogia literária. E meu caro antecessor, antítese plena do demagogo na vida, deixou-nos exemplo de sinceridade na página. Por isso, era não raro um historiador dialogal. Tudo porque esse historiador severo era aquele escritor liberal, descontraído, fácil. Veja-se, por exemplo, seu livro, dos mais conhecidos, cujo poder de comunicação começa literário no título ameno, convidativo, de sabor turístico: Um Passeio pela História do Brasil. Logo num dos primeiros parágrafos, com uma ironia que é um dos ingredientes do seu processo literário, lamenta reconhecer que se “espantam” os estrangeiros logo ao primeiro contato com a História Brasileira, marcada pelo signo do acaso... circunstâncias, aventuras... tudo terminando por um príncipe meio desequilibrado que se revolta contra o pai por simples teimosia, funda um império de brinquedo... passa tudo a um filho sisudo, despedido por militares sôfregos, que estabelecem uma república, cansados de monotonia.

Não podendo revogar a realidade ou impugnar o depoimento dos fatos, o historiador Lacombe, por um atraente mecanismo de compensação, refugiou-se – e impôs-se – no Lacombe escritor, visível no humor do estilo crônica, a apresentar-nos, dentre outras coisas, “militares cansados de monotonia”.

Já quando recorda, no mesmo Um Passeio pela História do Brasil, a figura do Infante D. Henrique, o escritor cronista, num desdobramento da personalidade literária, transfigura-se em prosador de corte poético. E, quase lírico, dá-nos esta frase azul-rei: “Poucas vezes a humanidade contou com exemplares desta espécie, reunindo a cultura de um sábio, a vontade de um herói e a crença de um santo.” Como arranjo verbal, senhores acadêmicos, seria de concluir que é perfeito o jogo rítmico do período; período que poderemos ler como uma pauta melódica. E esse sentido de harmonia na composição do pensamento escrito sensibilizava, de fato, o escritor que tentarei substituir sob este Teto histórico.

No estudo sobre Afonso de Escragnolle Taunay, quando lhe analisa o estilo, o ponto em que se concentra é aquilo a que chamou, bem literariamente, o “arredondamento dos períodos”. E o mais interessante: um tal “arredondamento”, ele não só o considera uma resultante de “gosto musical” do autor, como a isso atribui o fato de não haver cacofonias na sua prosa. Para esses detalhes, converge expressivamente a atenção do ensaísta. E que a consciência do escritor repelia fealdades sonoras, choques silábicos incômodos.

Essa fidelidade a certos padrões de Arte Literária o acompanha em toda a sua obra. Um dos seus volumes em que a cogitação estética mais se acentua, creio que vem a ser o último, editado pela própria Academia, na Coleção Afrânio Peixoto, entregue à boa diligência do Sr. Arnaldo Niskier. A publicação recente é mais uma confirmação auspiciosa das excelentes relações entre o historiador e o escritor. Mas esse escritor não é apenas expressão de uma estética ou de um certo tipo de simpatia verbal, na armadura do texto; estética não apenas na trama da ironia, do humor, ou na busca da clareza e leveza essenciais, senão ainda na manifestação de uma eloquência que não extravasa e por isso mesmo conquista.

Atente-se nas meditações que nos legou no seu último livro, sobre o estudo da História. Comentando a distinção, que lhe pareceu “sutil e provocadora”, entre o verdadeiro e a verdade na Arte (distinção que ficamos devendo a Alfred de Vigny), aproveitou Lacombe a filosofia do nobre francês, para ajustá-la ao trabalho de perquirição dos historiadores. “A verdade”, diz o meu predecessor, “é um simples ente de razão, sem vida, sem consequências. O verdadeiro é uma realidade humana, sopro e sangue, cicatrizes e ressentimentos”. A verdade “não move uma palha”; o verdadeiro “move massas humanas, derruba governos, destrói nações, inaugura novas eras”.

Há nesse lance literário uma nítida mostra de eloquência do pesquisador que também vibrava, espiritualizando o seu material, os documentos, os papéis... Há o escritor.

Mas não saberia eu concluir, sem que me desse ao prazer de recordar o zelo de certos valores em cuja defesa nos vinculávamos: o espírito de latinidade ou o humanismo latino e a figura condoreira de Rui Barbosa. Nunca me esqueceria de sua faina, em Paris, na Maison de l’Amérique Latine, de que foi diretor exemplar – um diretor que ficou. Muito especialmente ficou aquele outro, que esteve a zelar, por meio século, na própria casa do grande cidadão, seu alto patrimônio espiritual.

De Rui Barbosa, devo e desejo dizer que o entusiasmo pelo escritor-orador, ambos às vezes wagnerianos, como pelo homem público, pelo lidador dos direitos humanos, é o mesmo da minha mocidade. Mas os estudos, a vida vivida, a visão do meu mundo e do meu país indicaram-me outra linha de pensamento.

 Já me vou cansando. Senhores, dessa liberdade apenas declarada, declamada, verbal, a produzir uma democracia de superfície, formal, desigual, brilhantemente enganosa. Aqui, como em todo o planeta, o problema de milhões de seres humanos já não é o da liberdade política, mas seguramente o da justiça extensiva, uma justiça que não seja a congestão da própria liberdade, a ilusão de ser livre, sob um regime de convivência tragicômica entre a liberdade política e a opressão social e econômica. Sim, senhores da Academia Brasileira, já me vai cansando essa recitação de liberdade, agitação no espaço sem realidade no tempo, como já me acudiu escrever. Politicamente, sou um passageiro que enjoou a bordo. Penso em Franklin Delano Roosevelt, um grande insuspeito, a apontar certos pecados do Liberalismo Político, para averbá-los de “maldades estabelecidas”. Tinha razão: o Liberalismo Clássico já trazia consigo, nas dobras do individualismo agressivo, o vírus da injustiça, do mal viver, do mal-estar, a vitimarem, na rotina dos dias, homens, mulheres e crianças, que a rigor não viviam; estavam apenas durando.

Nem se diga – e muitos dizem – que a Revolução Francesa, de influência universal, viu apenas direitos políticos. Muito ao invés: na própria trilogia gloriosa, sentiu o mundo que a liberdade há de prolongar-se ou fortalecer-se, senão mesmo legitimar-se na igualdade e na fraternidade, que são, em essência, seu óleo vital, sua substância social e cristã, sua moral. Mil setecentos e oitenta e nove não nos deu apenas a visão do homem ante o poder público, senão também dentro da vida. Assim se adensava a democracia política, pela caracterização social da própria liberdade. O Estado liberal teria de ser, antes de tudo, um Estado justo. E, mais do que nunca, este é o problema capital do Estado brasileiro na hora que passa. O mais é bailar sobre as palavras.

Mas Rui Barbosa, herói carlyleano de Américo Lacombe e meu por igual, continua no ápice da minha admiração. Apenas o transferi de pedestal. Já não me entusiasma o artífice da Constituição de 1991, de costas para a realidade social em carne viva; Constituição omissa, demissionária, perfeita na técnica jurídica, mas lastimável na visão (ou não visão) do homem brasileiro, da problemática do meio e suas urgências. Desse Rui modelado e embevecido pelo individualismo anglo-saxônio e, por luxo doutrinário, imerso no federalismo jeffersoniano, antes que nas carências da porção majoritária da nossa gente, desse Rui, eu de fato me despedi. Reverencio sinceramente a outro, inimigo do Estado, não diria forte, mas Estado bruto, primitivo, policial, total, totalitário; continuo a exaltar o Rui que pregava a ampliação dos benefícios judiciais do habeas corpus, o que libelava o arbítrio, os desmandos, as licenciosidades do poder; e ficou-me também profundamente aquele outro, que magnificamente projetou a renovação de métodos e processos de ensino nos três níveis, madrugando, em 1882, para uma filosofia e uma nova política de Educação. Como igualmente me reencontro com o ardoroso cidadão, quando lhe releio os dois discursos em que fala de direitos sociais, mas deploro, confesso, que tenha sido aquilo algo de episódico, sem a consistência e sobretudo a continuidade das posições definitivas e profundas. E não me despedi do gênio verbal, do criador de eloquência, do talento na página, porque vejo no seu barroco, tão malsinado, o fruto de uma pressão de agentes culturais de sua época, em termos precisos de formação ou educação do gosto. Nem se diga que, em certos casos, não se tenham instalado variantes, por vezes grotescas, desse mesmíssimo barroco, nos textos abstrusos de uns tantos modernos de hoje, a começar pelos militantes da verbiagem tecnicista. Prefiro o barroco inteligível, ritmado, harmonioso. Prefiro o voo da “águia”, não sei de Haya, mas seguramente da Bahia, onde o Brasil começou...

Numa das nossas muitas conversas, resumi essas reflexões para Américo Lacombe. Ele me olhou meditativo e opinou: “– Você tem razão.” Depois, num dos seus ultimatos afetuosos (só não me deu prazo), sensibilizou-me com este remate: “– Reúna logo essas ideias num ensaio.” E foi andando, muito a seu jeito, sem se despedir. Mas voltou de repente; voltou sorrindo de lado (isto era dele). E tirou da memória o seu Mallarmé: “– Tudo existe para acabar num livro.” Por fidelidade à fonte (também dele era isso), expandiu-se em Francês, agitando o indicador quase no meu rosto: Tout existe pour aboutir à un livre.

Foi a última vez em que o vi. Perdão, senhores acadêmicos, continuo a vê-lo – sempre o verei.

11/11/1993