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Discurso de posse

Senhores,

A comoção com que neste momento vos agradeço a honra de me ver admitido à Casa de Machado de Assis não se inspira somente na simpatia daqueles amigos que a meu favor souberam inclinar os vossos espíritos. Inspira-se também na esfera das sombras benignas, a cujo calor de imortalidade amadurece a vocação literária. A mim estimulava-me particularmente a lembrança de uma sombra familiar, a de meu tio Sousa Bandeira, inteligência tão fina e discreta, falecido prematuramente quando realizava a melhor parte de sua obra, evocadora da vida do meu querido Recife nos fins do século passado; meu tio que, sentindo talvez o perigo dos preconceitos parnasianos que tanto seduziam a nossa adolescência, me aconselhava na dedicatória de um tratado de versificação: “A meu sobrinho, para que recorde apenas a técnica do verso, porque quanto à essência o melhor é pedir inspiração à sua própria alma.” Conselho que segui sempre e a que devo o que porventura haja de menos mau em meus poemas. Estimulava-me a recordação do gênio tutelar desta Academia, o qual, entre outras advertências de sutil entendimento em matéria de poesia, chamara a minha atenção para a boa qualidade das rimas “ligadas ao assunto”. Estimulava-me a lição, no Externato Pedro II, de alguns mestres que foram vossos confrades e dos mais eminentes: Silva Ramos, que me iniciou em versar como matéria viva e não antigualha didática a linguagem dos velhos clássicos portugueses; José Veríssimo, que me abriu os olhos para ver em nossos poetas românticos os de mais rico e sincero sentimento que já tivemos; Ramiz Galvão, meu primeiro professor de grego; João Ribeiro, com quem posso dizer que aprendi a discernir o verdadeiro conceito da tradição, que jamais foi incompatível com as aventuras fascinantes do espírito. O afeto presente dos amigos vivos, a saudade dos mestres desaparecidos são motivos que nos levam lisonjeiramente à indulgência para conosco. Só depois de eleitos começamos a sofrer o peso da responsabilidade que nos incumbe. Só então sentimos em cheio que esta é verdadeiramente a Casa de Machado de Assis, simbolizado no nome do autor de Brás Cubas o que ela representa de tradição gloriosa para o nosso povo. Não se trata de uma conclusão a que cheguemos por avaliação pessoal: ela se impõe aos eleitos diante das manifestações de regozijo e carinho com que os envolvem desde logo os seus parentes, os seus amigos, alguns perdidos de vista desde a infância, simples relações e numerosas simpatias que eles desconheciam. A opinião pública como que sente obscuramente o papel que a esta Casa cumpre em nossa vida intelectual. A quem entra nesta Companhia não pode tal movimento de confiança deixar de influir as mais severas razões de modéstia.

A essa responsabilidade de ordem geral se me acrescenta outra: a de pronunciar o elogio de um homem – o meu patrono –, a cuja nobreza de inteligência e de coração não se fez ainda toda a justiça. O cinqüentenário de sua morte passou quase despercebido. No entanto, na hora atual, em que um sociólogo da clarividência de Gilberto Freyre denuncia com palavras cheias de apreensões o perigo que ameaça a velha cultura luso-brasileira, é de homens ardentes e combativos como Júlio Ribeiro que necessitamos, almas-procelárias com valor e coragem bastantes para enfrentar o tumulto das tempestades.

Da releitura atenta que fiz de suas obras saio envergonhado da minha fraqueza de poeta menor, capaz tão-somente de reduzir a ritmos a pobre melancolia de suas emoções pessoais; saio também com o coração pesado das injustiças que enveneraram os dois últimos anos do romancista de A Carne. Ao escritor vibrátil e inovador, que tinha até o ridículo a paixão das idéias, não lhe reconheceram os contemporâneos senão a glória de gramático. Grande gramático na verdade. Mas o gramático nunca repontou indiscretamente no escritor ou no homem. E o romancista foi justo consigo mesmo quando de sua pessoa falou indiretamente na famosa carta de sua personagem Lenita: “Júlio Ribeiro, um gramático que se pode parecer com tudo menos com um gramático: não usa simonte, nem lenço de Alcobaça, nem pince-nez, nem sequer cartola. Gosta de porcelanas, de marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que me dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência – nunca fala, nunca disserta sobre cousas de gramática.”

Glória de gramático não poderiam negar-lhe. Não foi gramático, como tantos outros gramáticos, para escrever mais uma gramática. Professor de sua língua, sentiu a necessidade de introduzir em nossos estudos lingüísticos os métodos adotados pelos mestres alemães, ingleses e franceses. Não era desses caturras que se encastelam na Gramática e depois se arriscam em incursões temerárias pela literatura. Não. Já tinha reputação firmada de jornalista intrépido e romancista de Padre Belchior de Pontes quando em 1881 deu a lume a sua Gramática Portuguesa. Era o rompimento com a rotina gramatical dos Soteros dos Reis e dos Soares Barbosas. Desde 79, em artigos publicados no Diário de Campinas, se insurgia Júlio Ribeiro contra a gramática “concebida como uma disciplina árida, autoritária, dogmática, como uma instituição metafísica existente a parte rei, como uma essência universal do realismo escolástico”. Gramática que tinha o desplante de acusar Camões de incorreto no verso “E folgarás de veres a polícia”. A gramática, ensinava ele, “não faz leis e regras para a linguagem; expõe os fatos dela”. Era o bom e novo conceito. Assim o sentiram os espíritos mais esclarecidos aqui e em Portugal. Teófilo Braga saudou o livro como o melhor do gênero em nosso idioma. Capistrano de Abreu exprimiu-se assim: “Não é só notável, é superior.” Claro que o prosseguimento dos estudos da língua dentro dessa mesma orientação aberta por Júlio Ribeiro deveria tornar o seu livro de interesse sobretudo histórico nos dias de hoje. O próprio autor avançaria mais e nas Cartas Sertanejas haveria de escrever que “o uso popular em matéria de linguagem é autoridade decisiva, jus et norma loquendi, quando a massa indouta e sensata do povo, em obediência inconsciente às leis da glótica, que afinal são leis fisiológicas, altera a forma das palavras matrizes”. Quero crer fosse, pelo menos em parte, essa inconsciente obediência às leis da glótica que tenha suscitado as formas brasileiras de colocação dos pronomes oblíquos. Nesse ponto manteve-se Júlio Ribeiro, em sua gramática, adstrito ao sistema português. Mas desrespeitou-o muito brasileiramente já não falo em Padre Belchior de Pontes, que é de 76, mas em A Carne, onde se encontram construções como “que sente-se”, “que dobram-se-lhe”.

Mas, falando do patrono de minha Cadeira, não quero insistir na questão gramatical, a que foi levado, penso eu, pelo seu amor das palavras, tão vivo nele quanto o das idéias. Tomava-as a todos os domínios da vida – aos vocabulários técnicos, ao linguajar do povo, aos idiomas estrangeiros, às novidades da moda. Valeu-se com abundância de brasileirismos: volta e meia se nos deparam em seus romances a “varanda” (sala de jantar), a “porunga”, o “chalo”, o “cambuto”, a “bifada”, e “caraquento” (craquento), “desguaritado”, “atabular”, “esmurregar”, “rostir” (esfregar), etc. Ao lado dessas formas brasileiras, não hesitava todavia em servir-se, e aqui com deslize do bom-gosto, de expressões portuguesas pouco usadas, como “hispidar”, “asir” (agarrar) e o medonho “adregar” (acontecer por acaso).

Esse amor das palavras e mais o gosto da precisão não lhe consentiam limitar-se nas suas descrições ao vago das expressões genéricas tão do hábito dos brasileiros.

O brasileiro nomeia a palmeira, a bananeira, a mangueira, e quase todas as outras espécies são para ele “árvore” ou, como no Norte, “pé de pau”. Já anotara Agassiz: The Brazilians seem to remain in blissful ignorance of systematic nomenclature; to most of them all flowers are “flores”, all animals, from a fly up to a mule or an elephant, “bichos”.

Nas descrições, tantas vezes soberbas, de Júlio Ribeiro, as nossas essências florestais comparecem com os seus nomes e, caracterizando a paisagem, as suas fisionomias:

Perovas gigantescas de fronde escura e casca rugosa; jequitibás seculares, esparramando no azul do céu a expansão verde de suas copadas alegres; figueiras brancas de raízes chatas, protraídas, a estender ao longe, horizontalmente, os galhos desconformes, como grandes aleijados; cachins de folhas espinhentas, a destilar pelas fibras do córtex vermelho-escuro um leite cáustico, venenoso; guarantãs esbeltos, lisos no tronco, muito elevados; taiúvas claras; paus-de-alho verde-negros, viçosíssimos, fétidos; guaiapás perigosos, abrolhados em acúleos lancinantes e peçonhentos; mil lianas, mil trepadeiras, mil orquídeas diversas, de flores roxas, amarelas, azuis, escarlates, brancas.

Enganaram-se aqueles que viram na Gramática Portuguesa o melhor fundamento da reputação de Júlio Ribeiro. A sua gramática envelheceu, superada entre nós pelos estudos de Said Ali, Mário Barreto, Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, Clóvis Monteiro. O Júlio Ribeiro que vive ainda é o romancista de Padre Belchior de Pontes e de A Carne, o jornalista das Cartas Sertanejas e de A Procelária.

A Carne teve em 1938 a sua décima quinta edição. Erram os que atribuem tal sobrevivência ao tema ousado, aos episódios escabrosos do livro. Não há nada disso em Padre Belchior de Pontes e este foi ainda ultimamente reeditado pela quinta vez. Faz poucos anos também foram republicadas as suas Cartas Sertanejas e impressos pela primeira vez em livro uma seleção de artigos de A Procelária. Estas duas últimas edições esgotaram-se logo e hoje não se encontra um exemplar delas nem nos alfarrabistas. A Biblioteca da Academia não as possui, e para lê-Ias tive de ir à Biblioteca Nacional.

A verdade é esta: com todos os defeitos, que reconheço grandes, Júlio Ribeiro romancista é lido, quer dizer, vive, e Padre Belchior de Pontes e A Carne estão definitivamente incorporados ao patrimônio da ficção brasileira.

Padre Belchior de Pontes. Sabemos todos pelo prefácio do autor que o prólogo do romance foi começado em Sorocaba, no ano 72 ou 73, “sem plano assente, sem seguir escola, sem pretensão de espécie alguma, só e só para encher o espaço de um periódico” cuja finalidade era a propaganda republicana. O prólogo foi tirado em volume, mas o autor queimou a edição de 150 exemplares, ressalvados apenas seis para memória. A continuação do livro apareceu em 76 e foi escrita, como confessa o romancista, “às furtadelas, em pouquíssimas horas, arrancadas quase às labutações duras da vida”. Não lhe parecia “grande cousa”. Parecia-lhe sim um romance essencialmente histórico, não obstante alguns anacronismos que achou necessários ao enredo, algumas ficções e uma ou outra personagem de imaginação. É ficção, e ficção sem fundamento nenhum na realidade, a profissão de fé protestante do Padre Belchior. Monstruosa falsificação da verdade histórica, sem dúvida, e que atinge também a verdade psicológica do romance. Porque ainda que se tratasse de um padre inventado e não do Padre Belchior, não se justifica a hipocrisia do sacerdote, hipocrisia por fraqueza, quando ele nos é apresentado como um santo, e, portanto de coração limpo e vontade forte, apanágio de todos os santos. O Padre Belchior, tão verídico a ponto de por amor da verdade infringir uma vez, e foi a única, a lei jesuítica da obediência cega; tão bom que só pisava de manso a terra, por ele venerada como a mãe comum a que todos temos de voltar; o Padre Belchior que os índios de Embu chamavam respeitosamente Abaré Tupã (o Padre Santo); o Padre Belchior tido por toda a gente como taumaturgo e profeta cuja férrea vontade se impunha os mais rudes tratamentos de cilícios e jejuns: o Padre Belchior aparece no romance degradado, simpaticamente na intenção do escritor, ao papel de um fantoche nas mãos dos seus superiores. Aqui o defeito do artista era fruto da paixão do homem. Católico de criação, a leitura da Bíblia fizera-o presbiteriano, como a razão mais tarde o faria ateu. Era protestante ao tempo de Padre Belchior de Pontes, e o protestante se sobrepôs ao romancista. Nisso e nas suas objurgatórias à Companhia de Jesus, cujo padre geral ele conduz puerilmente às terras de Piratininga para a mesquinha tarefa de assanhar o ódio entre Pires e Camargos. Tudo isso não vale nada. O romance amoroso do padre é do pior romantismo e termina por uma cena bem ridícula. O verdadeiro romance, a que o suposto caso passional de Belchior de Pontes se acrescenta desequilibradamente como uma superfetação ociosa na estrutura artística, é o da expedição vingadora dos paulistas. Diz José Veríssimo, na sua História da Literatura Brasileira, que nada no livro nos dá a ilusão da época e do meio romanceado, antes pelo contrário. O julgamento me parece injusto. Júlio Ribeiro inspirou-se na leitura das crônicas de Pedro Taques, de Simão de Vasconcelos, de Frei Gaspar da Madre de Deus, de Machado de Oliveira e outros. Note-se aqui mais uma face da curiosidade intelectual do escritor. Hoje até virou moda ler esses velhos cronistas. Não era assim há setenta anos atrás. Quem cotejar com o romance a narrativa da expedição paulista feita pelo Padre Manuel da Fonseca em sua Vida do Venerável Belchior de Pontes, verificará a verdade dos sucessos e do espírito do tempo. Os defeitos estão em pormenores, em certos diálogos por exemplo, com efeito despropositados, como assinalou Veríssimo.

Todavia o interesse do leitor é sempre sustentado pelo talento narrativo e descritivo do romancista. Este nunca lhe foi contestado. As descrições de Júlio Ribeiro já não são de romântico. Vede a precisão e sobriedade com que nos evoca o espetáculo da aurora:

Um clarão tênue aparece no levante, alarga-se, invade o céu: suas tintas suaves passam por todas as gradações da mortecor, purpurizam-se, animam-se... Segue-o um listão de ouro afogueado que flameja no horizonte como uma pincelada na tela: as estrelas empalidecem e somem-se, a treva dissipa-se, os grupos desfazem-se, as árvores se destacam, a folhagem verdeja...

E descrevendo o jaguar:

Era uma massa fulva, betada de negro, aveludada, móvel, rojante, informe, sinistra: uma parte mostrava-se na claridade da luz; outra perdia-se no sombrio da lapa. Na extremidade visível havia dous olhos que olhavam.

Quedou-se por um momento, escutou, observou.

Depois, soltando um rugido que ecoou pelos montes como o ribombo do trovão, emergiu de um salto e caiu de pé, firmada em quatro valentes patas.

Foi uma transfiguração: esse vulto que, cosido ao solo, era um montão indistinto, tornou-se, erecto, um soberbo animal.

Largo de peito, delgado de vazio, robusto de jarretes, tremia de ferocidade e prazer, como se lhe percorrera os membros uma corrente voltaica.

Com as pupilas contraídas pela luz do sol, escancarando as fauces sangrentas, açoutava os ilhais com a longa cauda, e preparava-se para a luta.

Os paulistas reconheceram a fêmea do jaguar.

Sem dúvida, Padre Belchior de Pontes é ainda, sobretudo na sentimentalidade dos episódios amorosos do sacerdote e no idílio de Guiomar com Antônio Francisco, uma ruim novela romântica. Mas quando o seu autor adotou mais tarde os processos naturalistas de Zola, não o fez por indiscreto mimetismo, vassalo de novidades festejadas. Se os adotou, foi porque eles correspondiam à verdade profunda do seu temperamento sensual, franco, robusto, à sua inteligência ávida de ciência, ao seu estilo de expressão rude, objetiva, direta. Júlio Ribeiro era em Padre Belchior de Pontes um naturalista a que a atmosfera literária do tempo impusera a mentalidade romântica. O naturalista já se trai em centenas de breves anotações, como na cena do esfolar da presa, quando o cão, “repleto de carne, lambia por postres o focinho besuntado de sangueira”, como nas passagens numerosas em que abusa dos termos técnicos de guerra, de física, de anatomia. Mais completamente no celebrado trecho em que narra a surra de bacalhau. Permiti que vos leia essa página, digna daquele a quem chamaria, no prefácio de A Carne, Tu duca, tu signore, tu maestro:

A um sinal de Amador Bueno o flagelo desceu...

Ouviu-se um rechino tênue, e cinco betas furfuráceas desenharam-se longas na epiderme arroxeada das nádegas do condenado.

O miserável torceu-se como uma serpente ferida: um grito rouco, inarticulado, horripilante, indescritível rompeu-lhe do peito...

– Um! – contaram os índios.

Alçou-se e caiu pela segunda vez o instrumento sinistro... a derme fendeu-se e brotaram, como rubis vivos, algumas gotas de sangue...

Nova contorsão agitou os membros do desventurado: novo rugido atravessou-lhe por entre os dentes cerrados...

Os açoutes amiudaram-se...

– Dous! três! quatro! cinco! dez! trinta! cinqüenta! foram os índios contando.

Já não era sobre pele que silvavam os látegos: era sobre uma chaga, sobre uma pasta amolecida, sorvada, sangrenta...

Troavam os uivos do supliciado; seus dentes batiam como em crescimento de sezões; de todos os poros manava-lhe o suor...

Os pulsos e os tornozelos tinham inchado e também sangravam: com os esforços violentos, com as contrações da dor as correias que os prendiam tinham penetrado nas carnes...

Quando soou o vocábulo duzentos, que anunciava estar cumprida a sentença, satisfeita a lei do deserto, terminado o asqueroso suplício, um dos índios ausentou-se e voltou dentro de pouco trazendo uma cuia com água de sal e uma navalha de barba.

Ajoelhando junto do padecente, que mal respirava, fez-lhe na chaga uma, duas, dez escarificações longitudinais com a navalha, depois, tomando a cuia, irrigou-as com salmoura...

Foi a dor tão pungente, o sofrimento tão atroz, tão incomportável a angústia, que o infeliz deu um estremeção e perdeu os sentidos...

Esta pena do bacalhau era ainda aplicada aos escravos no meado do século passado. Júlio Ribeiro assistiu a uma dessas execuções ignóbeis quando tinha dezenove anos, e a sua impressão de horror foi tão profunda que a descreveu duas vezes, em Padre Belchior de Pontes e em A Carne. Pois bem, cotejadas as duas versões, é a do primeiro romance que requinta em crueza naturalista. Na do segundo ajuntou apenas o pormenor dos gracejos impiedosos do caboclo executor. Na cena real presenciada pelo romancista esses gracejos da parte de alguns assistentes eram obscenos.

Senhores, bastam essas considerações para absolver Júlio Ribeiro da pecha que lhe lançou Veríssimo de ter seguido a corrente naturalista do romance “menos acaso de inspiração que por enlevo da novidade”.

Parece-me que foi o sucesso rumoroso de A Carne que provocou a severidade excessiva com que livro e autor passaram a ser julgados. Havia nas críticas alguns pontos acertados. Podia-se exigir de um escritor naturalista maior caracterização de uma fazenda que era uma empresa industrial de cana e de café. O romance fala de cana uma única vez, quando se narra – com grande sabor, aliás – uma cena de moagem; ao café se alude de passagem, também uma só vez, a propósito de uma transação comercial. O mais são passeios, caçadas, episódios pitorescos como o do samba e o da iniciação pelo mandingueiro Joaquim Cambinda de um neófito na irmandade de S. Miguel das Almas. Tais episódios apresentam-se como que soltos na contextura do enredo. Outro defeito, e grave, assinalado no livro, grave tanto mais num naturalista, é a intervenção constante da personalidade do autor, com a sua exibição didática a propósito de tudo – de ciências naturais e físicas, de medicina, de porcelanas, de objetos artísticos, de cozinha, de espingardas. O desfecho trágico é introduzido por um rompimento de Lenita sem base na psicologia feminina, porque nenhuma mulher romperá com o amante, sem explicações, pelo simples fato de descobrir algumas relíquias de aventuras amorosas anteriores, completamente acabadas.

A crítica, porém, atacou o romance menos nessas suas falhas essenciais do que no que lhe pareceu, no tema e na maneira de o tratar, propósito deliberado de escândalo. O gosto do escândalo, se existiu foi no público, não no autor. Júlio Ribeiro pagou muito caro a glória relativa de ser o iniciador em nossa ficção daquela coragem de dizer quase tudo. Confundiram-no com os devassos, com o Bocage do sétimo volume. Barbosa e Lenita foram classificados por Alfredo Pujol como seres mesquinhos, sórdidos, infames, “que absolutamente não se conhecem na sociedade”. Se dar-se uma mulher numa crise de histerismo ao homem que ela ama, se aceitar um homem esse dom de si de uma mulher que ele ama, ambos sem crença religiosa nem preconceitos sociais, mas ainda assim não sem resistência de muitos escrúpulos, é ato sórdido e infame, então eles são sórdidos e infames. A arte amatória de Barbosa parece-nos hoje bem ingênua comparada com a do amante de Lady Chatterley. Qual seria no assunto o conhecimento de Pujol, que chama a Barbosa repulsivo, porque “apesar de sua idade e da sua erudição – sim, da sua erudição, diz o critico – é um devasso?” Esses devassos, esses sórdidos, esses infames, quando se tornaram conscientes do sentimento mútuo que os enleava, retraíram-se. Na véspera da partida de Barbosa para Santos, Lenita, ao jantar, mal lhe respondia às perguntas e contra o seu costume recolheu-se cedo. Barbosa, durante a noite insone, procedeu a um severo exame de consciência. Era quase um velho. Casar com Lenita não podia, era desquitado. Tomá-la por amante? Certo que não. Não tinha preconceitos, mas a sociedade estigmatizava o amor livre, o amor fora do casamento: força era aceitar o decreto antinatural da sociedade. Demais seu pai tivera o pai de Lenita em conta de filho; tinha a Lenita em conta de neta: um escândalo magoá-lo-ia profundamente, matá-lo-ia talvez. Não, aquilo tinha de acabar, havia de acabar. Por isso, ao escrever de Santos à moça, procura ser simplesmente afetuoso, dirige-se a ela chamando-a “Minha prezada companheira de estudos”, dá à carta um tom objetivo e fala do noroeste santista – “um tufão dentro de um forno” –, da geologia da costa, do espetáculo pitoresco do cais, da descida da Serra do Cubatão e suas obras de engenharia. Tudo isso era natural, tudo isso estava naturalmente indicado como procedimento de homem honesto e prudente. Assim, pois, Veríssimo altera substancialmente os dados do romance quando nos Estudos Brasileiros ridiculariza: “Barbosa ausente de Lenita, quando acabava de fazer dela sua amante, e que amante! escreve-lhe, em vez de carta, embora tivesse disso a forma, um longo relatório sobre a geologia da região marítima da província, com uma descrição técnica da estrada de ferro de São Paulo a Santos, estudos de engenheiro e sábio.” Estranha inadvertência de um crítico sempre tão probo e cauteloso em seus estudos. Traição da memória que seria perdoável se se tratasse de um ensaio sobre o romance brasileiro em geral, mas bem grave na análise particular de três romances apenas.

Comentando o abandono de Lenita, escreveu Veríssimo: “Cai (Lenita) sem nenhum sentimento que lhe enobreça a queda. Não há luta entre a matéria que impõe e a vontade que resiste.” Não é exato: luta houve, e havia em Lenita o sentimento do amor, que não se fundava na matéria – Barbosa era quase um velho, sem grandes atrativos físicos – mas nas qualidades intelectuais e morais do homem. Mas ainda que luta e sentimento não houvesse: diz Veríssimo que segundo os naturalistas o homem é como uma espécie de organismo físico inteiramente dominado por leis fisiológicas iniludíveis – não há resistir à carne; e acrescenta: “Como uma doença, como uma nevrose, como na Magdá de O Homem, será realmente assim, mas na integridade funcional da vida, com certeza não.” De novo aqui o critico esquece os dados fundamentais do romance: Lenita, turbada profundamente em sua sensibilidade pela perda do pai e em sua sexualidade pelo ambiente, novo para ela, da vida na fazenda, ao contacto de uma natureza “cortada de relâmpagos sensuais” – magnífica expressão que Veríssimo considera falsa e sem relevo –, não era então um organismo em sua integridade funcional. Passava por uma crise de histeria, que chegou a lhe alterar o natural bondoso, provocando-lhe até sintomas de sadismo: beliscava as crioulinhas, picava com agulhas, feria com canivete os animais que lhe passavam ao alcance, e escondida assistiu num espasmo de prazer e como embriagada de volúpia à surra de bacalhau aplicada ao negro fujão.

Concedemos que os tipos de Barbosa e Lenita são o seu tanto ridículos na sua mania didática, mas tanto o de Barbosa como o de Lenita, salvo no rompimento, apresentam-se, em suas linhas gerais, perfeitamente coerentes e consistentes. Eram ridículos em seu esnobismo científico, o que não os torna menos verdadeiros como exemplares humanos, inventados à semelhança de seu criador. Lenita, sobretudo, exemplar de exceção, mas bem justificado: órfã de mãe, filha única, inteligente e aplicada, instruída pelo pai, que lhe transmitiu tudo que sabia e ainda lhe deu os melhores professores de todas as disciplinas. Nem Lenita, nem Barbosa tiveram a educação convencional dos descendentes de “honestos e laboriosos fazendeiros”. Barbosa viajara longos anos na Europa, onde vivia, como um Fradique, interessado por tudo quanto era novidade nas ciências e nas artes. Como o próprio Júlio Ribeiro em São Paulo.

Em suma, A Carne está longe de ser, como sentenciou Veríssimo, “o parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo”. Mais justo foi Ronald de Carvalho, que lhe reconheceu muitas qualidades apreciáveis e forte lirismo. É um romance defeituoso, mas que merecia ficar, e de fato ficou, ao lado de tantos outros romances, também defeituosos, do Romantismo e do Naturalismo.

À imprensa foi Júlio Ribeiro levado por motivo de ordem moral. “O homem”, escreveu ele, “que sabe servir-se da pena, que pode publicar o que escreve e que não diz a seus compatriotas o que entende ser a verdade, deixa de cumprir um dever, comete o crime de covardia, é mau cidadão”. Em matéria política a verdade para Júlio Ribeiro estava na forma republicana. Nascido em Sabará no ano de 45, criado nas montanhas agrestes de Pouso Alto, por ele decantadas num capítulo de Padre Belchior de Pontes, mas desde 65 integrado na vida paulista como um paulista de 400 anos, filho de republicano, neto de republicano com o nome de família (Vaughan) inscrito no livro de ouro dos fundadores da grande república norte-americana, Júlio Ribeiro, republicano desde que começou a pensar em política, associou-se logo de todo o coração aos pioneiros da propaganda republicana em São Paulo. Em Sorocaba arregimentou partido e por quase dois anos sustentou com grandes sacrifícios uma folha republicana, na qual desde o dia 25 de janeiro de 72 não se admitiram anúncios sobre escravos fugidos. Nessa folha, como depois em A Procelária, revelou-se Júlio Ribeiro jornalista completo, pois não se limitava aos artigos de doutrinação política: ocupava-se um pouco de tudo. Vimos que o romance Padre Belchior de Pontes começou a ser escrito para encher espaço na folha de Sorocaba. Em A Procelária o jornalista tratava um dia da cerâmica oriental, outro das armas de fogo, outro ainda de um manuscrito inédito de O Hissope que lhe fora parar às mãos. Este último estudo se reveste de grande interesse. Onde parará, inaproveitado até hoje, esse manuscrito, que, segundo informava Júlio Ribeiro, além de ter nove cantos, apresentava, só no primeiro, 202 versos a mais dos que vêm na edição Ramos Coelho, a mais completa?

O caráter reto, franco e corajoso de Júlio Ribeiro conduziu-o à polêmica com os seus companheiros de credo político quando esses enveredaram por caminho que ao romancista de A Carne se afigurava uma quebra do ideal republicano.

Júlio Ribeiro foi um dos primeiros desiludidos não da República, mas dos republicanos paulistas. Atacou-os, como disse, “com um gozo forte e viril, gozo calmo de cirurgião impiedoso que, cruamente, imperturbavelmente corta por carnes gangrenosas, por ossos cariados, surdo aos gritos lastimosos do paciente, superior às injustiças inconexas arrancadas pela dor”. A adesão dos chefes republicanos paulistas ao projeto Dantas pareceu-lhe “descarado oportunismo”, o reconhecimento de Campos Sales e Prudente de Morais como deputados vitória de grupo, vitória eleitoral, não vitória política. Denunciou então no Partido Republicano paulista a sua origem escravocrata. “Forçado”, escreveu nas Cartas Sertanejas, “a pronunciar-se sobre a questão servil, fê-lo dúbia, tortuosamente, procurando, de maromba em punho, afirmar em teoria e negar na prática, fingindo-se abolicionista e consagrando princípios negreiros, dando ares de ceder à imposição dos tempos e efetivamente resistindo à torrente”.

O motivo do dissídio de Júlio Ribeiro estava em lhe faltar aquele dom de acomodação, de composição que tem distinguido as grandes vocações políticas no Brasil. Era um homem inteiriço, que timbrava em não transigir, em não fazer a mínima concessão. Pretendia dirigir-se unicamente pela razão: condenava o abolicionismo ditado por considerações de ordem sentimental, pelo que chamava “filonegrismo ridículo”: a Abolição para ele era uma imposição dos fatos, uma necessidade social, golpe imprescindível, que aproveitaria muito ao preto, mas que aproveitava infinitamente mais ao branco. “Se é justo”, escreveu, “que o escravo se liberte do senhor, é necessário, absolutamente necessário, que as classes livres se libertem do escravo.” A Abolição imediata poderia ser um mal para a economia de grandes zonas do País; não o seria, e não o foi, para São Paulo. Era o que importava a Júlio Ribeiro, decididamente partidário da separação da província.

Rude franqueza, mas sempre bem-intencionada, foi a principal característica de Júlio Ribeiro em toda a sua vida e de que encontramos exemplos no trato cotidiano do homem com os seus amigos. Assim no episódio com Quintino Bocaiúva, contado por Medeiros e Albuquerque em suas Memórias. Assim com Valentim Magalhães, que, tendo publicado um artigo sobre filologia, perguntou muito fagueiro ao gramático: “Que tal, mestre?” Ao que o mestre respondeu desabrido: “Tudo errado! Tudo bobagem! Escreva sua literaturazinha, mas não se meta a discutir o que ignora inteiramente: filologia.” Assim por ocasião de ser apresentado por Júlio de Mesquita a Ramalho Ortigão na redação de A Província de São Paulo. – “Apresento o mestre do português no Brasil ao mestre do português em Portugal“, disse Júlio de Mesquita. E o nosso Júlio Ribeiro, secamente: – “Nenhum dos dois é mestre.”

Foi assim verídico, intransigente e bravo até o momento de morrer, ao cabo de uma vida de lutas de toda a sorte – contra a saúde precária, contra as dificuldades materiais, contra o que lhe parecia preconceitos religiosos, sociais e literários, repelindo com dignidade em carta à imprensa o auxílio pecuniário que a favor dele promoviam amigos e admiradores, recusando-se à reconciliação com o Padre Sena Freitas, que o tentava converter à hora da agonia. Morreu, segundo o depoimento de sua viúva e do médico assistente, fiel ao materialismo que foi sempre, depois que se tornou incrédulo, a sua filosofia: "a minha filosofia, a pedra de escândalo em que se esmigalharam as minhas crenças", como escrevera numa das Cartas Sertanejas.

Áspero patrono devia parecer esse homem inacomodado e lutador aos vossos confrades que me precederam nesta Cadeira. Ambos reagiram diante da vida bem diferentemente do romancista de A Carne – Garcia Redondo por uma espécie de humorismo bonachão, Luis Guimarães Filho pela aceitação religiosa. O primeiro desejaria como patrono o poeta delicado dos Noturnos e das Miniaturas; o segundo calou no seu discurso de recepção nesta Casa o nome de Júlio Ribeiro, e depois de fazer o elogio do antecessor, passou a ocupar-se da figura do pai, que, este sim, foi o seu verdadeiro patrono, não só na carreira literária como na diplomática.

Luís Guimarães Júnior desapareceu quando o movimento parnasiano se impunha vitoriosamente sobre o estiolamento dos últimos românticos. Ele próprio foi ainda um romântico, mas já temperado pela depuração da nova escola. Todavia os hábitos poéticos são de tal maneira tenazes, que até uma sensibilidade aguda como a de Fialho de Almeida achou nos versos admiráveis dos Sonetos e Rimas não sei que dinamizações do sentimento que o levaram a chamar o autor da “Visita à casa paterna” “um lírico da decadência, melhor: um parnasiano”. Ao que o filho respondeu: “Não foi parnasiano nem romântico da Decadência: foi simplesmente um Poeta.” Parece-me que estava com a razão. Disse Fialho: “Nem sempre nos versos dele a emoção resultará do sentimento afetivo acordado na alma pela idéia dramática do assunto, senão pela convergência de melodias exóticas que a linguagem lhe empresta, já pela rima, já pela estridosa eufonia do adjetivo e do metro. É uma emoção que vai ao cérebro antes pelo ouvido que pelo coração.” Tenho que, ao contrário, os versos de Luis Guimarães Júnior lhe vinham diretamente do coração, e mais ainda: pareciam ter passado pelo coração de toda a gente, sobretudo das criaturas humildes, adotando-lhes até os lugares-comuns do sentimento, a que ele sabia dar não sei que misteriosa ressonância, como por exemplo à expressão “flor mimosa” no famoso soneto “O esquife”.

Luis Guimarães Filho, criado e educado em Portugal, não sofreu desde logo todo o peso das limitações parnasianas, a que os portugueses sempre foram um tanto avessos. Poeta desde os quinze anos, os livros que publicou ainda na sua fase de estudante em Coimbra, Versos Íntimos, Livro da Minha Alma, Idílios Chineses, A Aranha e a Mosca revelam todas as incertezas da adolescência. A sua verdadeira estréia foi em 1900, quando, tornado à pátria havia três anos, publicou o volume Ave-Maria. Assim o deveria sentir ele próprio, que nesta coleção reproduziu alguns poemas dos Idílios Chineses, retocados aqui e ali para expungir os seus versos de hiatos, de rimas fáceis de particípios passados, de imprecisões ou redundâncias de linguagem. E uma nota melhor soa em alguns sonetos, como em “O lago e as estrelas”:

Desliza o lago azul de frágua em frágua...
E os astros dizem, loucos de inocência:
– Por que motivo a justa Providência
Fez o teu corpo simplesmente de água?

Ah! Deus não quis que semelhante mágoa
Nos apagasse a lúcida existência...
Por isso fez-nos de imortal essência...
De luz vivemos e tu vives de água! –

O lago escuta a multidão que zomba
Nas serenas paragens do lirismo,
E enfim responde ao luminoso coro:

- Mas quando a noite vagarosa tomba,
É no meu calmo e transparente abismo
Que vós vindes dormir, estrelas de ouro!

Por volta de 1900 foi o nosso meio literário sacudido pelas emoções de um romance que aqui chegava precedido de fama universal – o Quo Vadis. A popularidade do livro entre nós perdura até hoje, atestada em numerosas Lígias e Vinícius que andam hoje pelos seus trinta anos, e ainda bem que entre tantos Vinícius um se conta em cuja poesia veio culminar o nome ilustre de Melo Morais. Luís Guimarães Filho, seduzido como toda a gente pela beleza trágica e plástica do episódio do circo, condensou-o numa seqüência de quinze sonetos em alexandrinos. Era uma forma que o Poeta só praticara até então cinco vezes, no Livro de Minha Alma.

O soneto em alexandrinos é o reduto do parnasianismo. Só ai, creio, encontraremos alguma coisa de parecido com aquele manequim impassível inventado pelos que não sentiam que “impassível” e “poeta” são termos incompassíveis. Coube aos mestres parnasianos começar a adaptação do alexandrino ao nosso idioma. Fizeram-no com uma certa rigidez, que lembra a dos primeiros decassílabos espanhóis de Boscán e portugueses de Sá de Miranda. E nesses alexandrinos é que Alberto de Oliveira, Bilac e Raimundo Correia assumiram atitude – atitude, não alma – impassível, atitude de escultura, ou antes, para introduzir na imagem algum frêmito humano, atitude de mulher bela duramente espartilhada em colete droit devant, como era de moda no tempo. Quanto ao soneto, foi ele a forma parnasiana por excelência. O soneto é que consagrava, que fixava na memória dos leitores o nome do poeta: Alberto de Oliveira era o poeta de “Vaso grego”, Raimundo Correia o de “As pombas”, Bilac o de “Ouvir estrelas”, Guimarães Passos o de “O lenço”.

Scorn not the Sonnet, disse Wordsworth num soneto também célebre. Nunca fui dos que moveram campanha contra o soneto, fatigados pelo abuso parnasiano dessa forma imortal, que se adapta em sua essência a todas as escolas, a todos os tempos, a todos os povos; que vemos atualmente um grande poeta – Augusto Frederico Schmidt – acomodar ao ritmo largo e sem rimas de sua livre poesia. Abuso menos condenável pela sua abundância do que pelo desvirtuamento da tradição petrarquista. Síntese harmoniosa da quadra, estrofe popular, e do terceto, estrofe culta, forma que lembra em suas duas quadras e seus dois tercetos a estrutura do coração humano com as suas duas aurículas e os seus dois ventrículos, o soneto é nos grandes modelos uma forma eminentemente subjetiva. Quental, que foi grande sonetista, chamava-lhe a forma lírica por excelência: “Manto alvo e casto com que tem de se envolver, para ver o dia, aquelas partes mais pudicas, mais melindrosas, mais puras da alma.” A transubstanciação do infinito do sentimento humano no finito desse pequeno organismo estrófico perfeito tem qualquer coisa de sobrenatural, como a encarnação do Verbo Divino. Tenho pois como uma deturpação da sua natureza fazer do soneto instrumento de narrativa, de pintura e descrição. Não há um só soneto puramente descritivo entre os de Petrarca; nem entre os de Camões; nem entre os de Quental. Sei que os há, e belíssimos, em Hérédia e em nosso Raimundo Correia. Mas reparai como nos mais comoventes existe sempre no último verso uma espécie de evasão para o infinito. Nos de “Antoine et Cléopâtre”: “Les deux enfants divins, le Désir et Ia Mort”; “Toute une mer immense où fuyaient les galères.” Em “Les Conquérants”: “Du fond de I’Océan des étoiles nouvelles.” E em Raimundo Correia traduzindo Hérédia: “Todo o infinito céu sobre o infinito mar”; em “Fascinação”: “A imensidade esplêndida que o cinge/ Vê ligarem-se mais imensidades”; em “Banzo”: “E cresce n’alma o vulto/ De uma tristeza imensa, imensamente.”

O abuso maior, porém, residiu em rebaixar o soneto ao valor de estrofe. Fritz Strich assinalou o caráter tão fechado do soneto, donde a sua inadaptabilidade para a repetição estrófica. O abuso é anterior aos parnasianos. O mesmo Wordsworth compôs em 137 sonetos toda uma História da Igreja. Não admira que entre nós um poeta pernambucano reduzisse a sonetos a guerra da expulsão dos holandeses, e Emílio de Meneses traduzisse também em sonetos “O corvo” de Poe.

Dentro do sistema parnasiano atingia Luís Guimarães Filho a sua melhor forma nesses sonetos, dos quais se pode destacar como mais representativo do conceito escultural da escola o de número XI:

Subitamente o circo emudeceu. Na arena
Passava-se um prodígio. Os augustais tremiam...
César mesmo se erguera... e os olhos se lhe abriam
Tornando assustadora a sua face obscena...

Nos peitos dos pagãos os corações tremiam
A arrebentar... Pudera a queda de uma pena
Ser ouvida no circo... Era espantosa a cena!
Era talvez um sonho o que os romanos viam!

O lígio segurava a fera pelos cornos...
O rosto, a nuca, o peito, os braços e os contornos
Dos ombros colossais de púrpura ficavam...

E numa rigidez de corpos absoluta
– Como um grupo de bronze – aos empuxões da luta
Num rouco resfolgar os bafos misturavam...

À nitidez meticulosa e como que mordente do ritmo, à raridade das rimas que, conforme se exprimiu, “balouçassem no remate de cada verso com a elegância com que se balouçam as flores na extremidade de cada ramo” chegaria Luís Guimarães Filho em seu livro seguinte – as Pedras Preciosas.

Quem ler em ordem cronológica toda a obra do meu antecessor verá que o tema da dactilioteca veio cristalizando-se lentamente no espírito do Poeta. As pérolas, as safiras, as turquesas, os rubis, o jade, as esmeraldas já fornecem imagens aos versos dos Idílios Chineses. No livro Ave-Maria as pedras entram a falar durante o sono de Ariana. E ouvimos brandamente, não acordasse a princesa com o estalo indiscreto das rimas ricas, a voz da ametista:

O meu brilho é macio como as flores:
As violetas, as malvas e os lilases
Têm a cor dos meus calmos esplendores...

A voz da esmeralda:

A minha cor palpita em mil lugares:
Arde nos falsos olhos de Dalila,
E nas viçosas plantas dos pomares...

A do topázio:

As claras gomas de Madagascar,
As minas de ouro, o brilho de Diana...
Tudo possui a minha luz solar!

A do brilhante, a da pérola, a da opala, a do rubi.

Mas é no volume das Pedras Preciosas que as gemas luzem requintadamente parnasianas na faiscação das rimas escolhidas a dedo para ofuscar os olhos e seduzir os ouvidos. Não há nesse livro uma rima pobre, um verso que não seja como que lapidado para coruscar em cada palavra como a pedra em cada faceta. Um cofre de imagens cintilantes: o rubi é sangue que a vista anima; o diamante, a lanterna da tribo Izácar; o olho-de-gato, a fluida pupila elétrica dos trovadores de quatro patas; a esmeralda, a jóia ilusória das amizades; o topázio, o louro filho de uma gota de mel e de um raio de sol; a opala, um pedaço de céu destacado do arco-íris, um naufrágio de luz numa gota de leite; a pérola, fumo, névoa e luz... O Poeta sabia que todas essas pedras têm almas humanas:

Sois inconstantes como as pessoas,
Como as pessoas envelheceis!

Sabia ler-Ihes nas pupilas frias. Conhecia-Ihes todas as virtudes: a água-marinha, medicinal para a melancolia; a opala, governadora dos sexos; a santa ametista, jóia católica, com a virtude tradicional de afugentar a embriaguez.

Se eu tivesse de escolher alguma gema entre tantas, daria preferência à de mais recôndito encanto, a hidrófana:

Em certa montanha existe
Uma pedra branca e triste
Que dentre as mais se destaca...
Deu-lhe a imortal Natureza
A extravagante beleza
De ser translúcida e opaca!

No enxuto rosto ninguém
Lhe enxerga as mágoas que tem
Como escondidas num cofre...
Mas se a molhais de repente,
Logo se põe transparente
Para mostrar o que sofre!

Lindos olhos de Maria!
Quando secos de alegria
Também opacos ficais...
Mas ai! se o pranto vos banha,
Como a jóia da montanha
Transparentes vos tornais!

A coleção de Pedras Preciosas não esgotou a imaginação do Poeta, que anos mais tarde haveria de voltar a celebrá-las em outro livro – os Cantos de Luz –, aqui como que as confundindo todas no mesmo afeto pela adoção da mesma estrofe e do mesmo ritmo embalador, o metro de nove silabas. E a turquesa ganhou desta vez a mais bela imagem de quantas iluminam essas páginas, que são as melhores de Luís Guimarães Filho:

Celestes pedras de luz vazias,
Sois como os olhos azuis que a morte
Transforma em lindas turquesas frias...

Depois dos Cantos de Luz, que são de 1919, Luís Guimarães Filho poeta só voltou a público em 1930, com a oração em verso a Santa Teresinha, na qual nada pede para si e pede tudo para o Brasil, não para um Brasil fechado em seu egoísmo, mas para um Brasil:

Que seja a terra-mãe da bem-aventurança!...
Terra da caridade e terra da esperança,
Do imigrante sem teto e dos povos sem pão!
Terra do bom trabalho e do labor fecundo,
Capaz de abastecer e de nutrir o mundo,
Terra da Promissão!

Não creio, porém, que o Poeta tivesse emudecido. Havia anos vinha ele anunciando um livro a que dera o título de Últimos Poemas. Certamente pertenceria à coletânea o soneto que nesta Casa foi recitado pelo vosso saudoso confrade Paulo Barreto. Esses versos mostram que a técnica de Luís Guimarães Filho se veio apurando sempre, dentro do sistema parnasiano:

Lembro-me ainda dessa esbelta e flava
Carícia de teus braços amorosos...
Por mais que evite o encanto os impiedosos
Perseguem sempre a minha carne escrava!
Eram suaves, cálidos, cheirosos
Como doces damascos!... eu beijava
Aquela morna pele que tentava
O paladar! Oh braços deliciosos,

Como esquecer as núpcias perturbantes,
Os longos desalentos delirantes
Que sem misericórdia vós me dáveis?

Ah! torna Vênus para o sacro Elêusis!
Fui condenado à morte pejos deuses,
E quero-a nos teus braços implacáveis!

Em 1901 iniciou Luís Guimarães Filho a sua carreira diplomática. A diplomacia deixara de ser uma arte, como notou Oliveira Lima, para ser uma profissão. O Poeta, porém, continuou a ver nela uma arte, não “aquela arte das formas polidas, feita de astúcia e estratagemas, onde o pensamento vive mascarado e onde a frivolidade, a futilidade, a gravidade protocolar e a compostura de mostra avultam”. A diplomacia era para ele uma função harmonizadora e fecunda nascida do instinto de sociabilidade entre os povos. Onde quer que a exercesse, procurou sempre completá-la com a atividade literária, de que resultaram quatro livros – três publicados, Samurais e MandarinsHolanda, e Fra Angelico, outro ainda inédito, Mala Diplomática.

Ao escrever as suas crônicas sobre o Japão tinha o Poeta em mente, como confessa, distrair as suas leitoras brasileiras falando dessas mil bagatelas exóticas de nomes tão saborosos – charões e quimonos, obis e tatames, hibaquis e inro; contando-lhe as velhas lendas do império dos Tocugauas; explicando-lhes os símbolos mais amáveis desse país referto de símbolos. Mas o livro saiu curiosamente instrutivo acerca da formidável nação imperialista de hoje. Na história dos 47 ronins, por exemplo. A Inglaterra carrega hoje a dura pensão da vitória obtida em 1855, quando esmagou a ferro e fogo a revolta dos valentes samurais que não queriam aceitar o fato consumado da abertura do Porto de Cobe ao comércio internacional. O Japão ocidentalizou-se, industrializou-se. Guardou avaramente os seus caquemonos de Hokusai e Utamaro, as suas velhas porcelanas de Nabeshima, os seus marfins inimitáveis, e inundou o mundo dos bárbaros europeus com a sua arte de exportação. Armou-se até os dentes e começou a devorar muito ocidentalmente a China.

Foi para o Japão ainda pitoresco e poético das ameixeiras e das casas de papel, para o Japão morto dos inrôs de laca, das belas jóias de jade que o diplomata-artista deu de preferência a sua atenção. O poeta dos Cantos de Luz não podia esquecer as suas pedras amadas, e no capítulo “Um passeio em companhia da senhora Neve” dedica-lhes ainda algumas páginas que formam uma nova dactilioteca, a um tempo erudita e poética.

Na Holanda Luís Guimarães Filho viu, sobretudo o país dos engenheiros, em perpétua vigilância contra o inimigo mar, afinal menos pérfido que os vizinhos famintos de espaço vital. Relede esse livro, senhores, nesta hora de tremendas provações para o heróico povo holandês, e saireis convencidos do seu futuro reerguimento. “O povo da Holanda”, escreveu o nosso patrício, “jamais dobrou a cerviz às implacáveis sentenças do Destino. Mesmo nos mais trágicos momentos respondeu com a soberba de quem se não arreceia do adversário. Os golpes eram aparados e revidados. A igreja de Katwijk, por exemplo, foi duas vezes demolida e duas vezes reconstruída. Arrasava-a o mar, reedificavam-na os habitantes; arrasava-a de novo, de novo a levantavam. E cada vez mais longe da praia, até ficar onde hoje a vedes, ao abrigo de qualquer inundação! Essa capacidade de resistência devem-na os holandeses à fleugma com que assistem às mais espantosas catástrofes e à tenacidade com que se dispõem a remediar infortúnios que parecem irremediáveis.”

Mas como errava o diplomata ao imaginar que as tribunas de Haia e de Genebra eram as atalaias da segurança dos povos e representavam a maior vitória da guerra de 1914!

Há uma nota constante nos dois livros de impressões de viagem do Poeta: o amor e saudade da Pátria.

“Longe da Pátria, Deus meu, como tudo isso” (falava de suas recordações brasileiras) “parece formoso. À semelhança das montanhas que, sumidas no horizonte, perdem os agros e as ameias para só deixarem à vista o relevo das suas curvas, a Pátria evocada de longe perde também os erros e os defeitos para surgir em todo o esplendor de uma sagrada perfeição!

“Viajar é, pois, aprender a amar a Pátria acima de todas as cousas e, no cotejo com as demais, a sempre dar-lhe a primazia.”

Tudo no estrangeiro trazia a imagem de coisas brasileiras à lembrança do Poeta. No Japão o verde dos momijis, o das montanhas de Teresópolis; as ramagens dos jardins do Imperador, a sombra das nossas árvores; os templos de madeira e charão, as nossas doces igrejas. Em Honolulu, a paisagem descortinada do Monte Pali, assombro dos turistas, fá-lo pensar com orgulho nas quebradas do Garrafão. Em Scheveningen, onde a Prefeitura cobrava florim e meio por um simples banho de sol, evoca as praias do Rio de sol pródigo, vivaz e generoso – de sol grátis.

Em carta datada de 5 de fevereiro de 1928 escrevia da Holanda ao Sr. Fernando Nery: “Este ano espero ir ao Brasil passar bastante tempo. Tenho já saudades de nossa bela terra, com a qual nenhuma outra se compara. Sinto sobretudo falta do sol. Aqui então é cousa quase desconhecida.”

Voltaria o Poeta ao Brasil para se demorar, porém muito mais tarde. Demorar-se para sempre, primeiro em dois anos de confinamento no lar, confortada a aflição de sua cruel enfermidade pela religião e pelos carinhos da esposa, só da esposa, pois até a presença de alguns amigos mais caros lhe provocava abalos perigosos; depois no seio generoso da terra de Petrópolis, entre as hortênsias, que lhe faziam lembrar os pintalgados guarda-sóis das gueixas de Símbassi.