RESPOSTA DO SR. PAULO BARRETO
SENHOR Luís Guimarães Filho:
Em certa montanha existe
Uma pedra branca e triste
Que dentre as mais se destaca...
Deu-lhe a imortal Natureza
A extravagante beleza
De ser translúcida e opaca!
No enxuto rosto ninguém
Lhe enxerga as mágoas que tem
Como escondidas num cofre...
Mas se a molhais de repente
Logo se põe transparente
Para mostrar o que sofre!
Não pouco acertado é pensar na pedra que o vosso verso gravou, se com olhos de ver olhamos a alma daqueles que desta Casa o umbral transpõem. À pedra basta a água para mostrar que sofre; ao homem sobram queixas e afirmações, idéias e sentimentos, quando o ungem louvores. Confessa a dor ao contato da linfa a pedra indiferente; elogio e carinho são incentivos provectos para que homens de norte feliz, como vós, ou de esforço sob a intempérie hostil, realizem, ao chegar à Academia, o heroísmo da confissão. Nem sempre no desejo de declarar mais uma palavra com outra palavra lembram alguns os passados ataques ao nosso instituto, porque o estar entre nós tanto lhes mostra o próprio erro antigo como o perdão da nossa companhia a movimentos sem cura de reflexão. Todos, porém, contam amargores e entusiasmos, todos logo a alma põem transparente para dizer o pouco que são no muito que desejariam ser.
Chegais assim também. Nos vossos formosos períodos os espíritos de análise poderão afirmar uma dessas confissões que se chamam retratos íntimos para uso da posteridade. Os menos profundos sentem como a vossa expressão social é diversa da expressão característica do insigne confrade morto ao qual substituís. Garcia Redondo era um sensibilíssimo sonhador sob o peso inclemente da vida; vós sois a ardente mocidade com a certeza prática do sonho. Ele foi engenheiro e professor, cuja literatura não passava de féria boêmia, dando a rever na sua imperfeição; vós sois poeta e diplomata distintamente – de modo que é obra fácil elogiar o político representante no exterior sem recorrer aos méritos do poeta, como não se faz preciso pensar no protocolo quando a nossa alma se extasia na harmonia dos vossos versos.
Ele era um enorme coração que muita vez ria; vós sois o otimista a que a fortuna dispensa o riso. Ele compreendera a resistência aspérrima da vida e multiplicava-se, desiludido, sem da desilusão mostras dar desalentadas; vos seguis deixando o suave coro das musas apenas peles cotejos de homens fardados em cidades várias, onde à vossa passagem os sons do nosso hino estrugem como tremendo boato – o único às vezes da nossa existência entre povos longínquos. Desta arte vós continuamente pensais em maravilhas que se realizarão; ele, doce alma de idílio, que aprendera cálculo diferencial, ser de bondade e fantasia obrigado a ensinar Botânica e Zoologia, espírito de Filetas a subir andaimes para construir teatros, tomara da vida o dissabor, e só, no profundo e quase espantoso amor pela esposa e os filhos, de tanto ver a impossibilidade fraterna dos homens, reduzira a sua arte a contar anedotas que faziam rir os outros.
A anedota é a espuma da malsucedida experiência dos tímidos. Ao vencedor, tempo não sobra senão para vencer. Ao tímido serve a anedota de concha, fazendo defesa ao ridículo para se imaginar vencedor com as fraquezas e os vícios de outrem. Dentro da anedota defende-se o tímido principalmente de si mesmo, de modo que no mais presente é pretérito, e no auge das peripécias adia o contacto da realidade.
Não tendes vós tristezas que desiludem, nem dores que o cérebro façam o coração repetir o desolado “Para quê?”. Seria felicidade, ao indagar da vossa estada nos quatro pontos da terra, obter uma anedota sem conseqüência. Por mais ausente, estais sempre presente; e se olharmos os anos havemos de os confundir no momento, tão a mesma é a vossa mocidade desejosa, ao vir de Coimbra há três lustros bacharel poeta, como ao saltar ministro outro dia de um posto onde o vosso tato realizara vários tratados econômicos – únicos laços fortes dos povos no planeta. A mocidade é em vós entusiasmo. Como não há entusiasmo sem fé, e fé sem sinceridade, tal a pedra de que falais, ao louvar realizais o prodígio de ser sincero sinceramente. E com transparência confessais nobres sentimentos e até mesmo a turbação que ao vosso entendimento causam os erros consolidados pela pretensão da rotina e em vão espalhados pela gastralgia critica da maledicência.
***
Senhor Luís Guimarães Filho.
Nunca de nós falamos tanto como quando dos outros falamos. Dizeis de vosso pai, vosso padroeiro na diplomacia e nas letras – e falais de vós – que, perdendo o seu auxílio na mais verde adolescência, soubestes ilustrar ainda um nome já de si famosamente ilustre. Pesa-vos ver um dos nossos maiores poetas com outros acamado numa prateleira de classificações literárias; e vós, poeta, protestais. Como dos homens insignes dimanam o fulgor das profissões que abraçaram e as regras pelas quais se pautam as almas nobres, em torno de Luís Guimarães, diplomata, vós, diplomata, desenvolveis a defesa da diplomacia, só atacada pelo grande mal nacional de não ter o que fazer. Em torno de Luís Guimarães, mais patriota quanto mais ausente, vós, por força da carreira, ausente e patriota, insistis no aperfeiçoamento que a distância traz ao amor desta terra, onde, como dizeis no vosso hino cantado pela infância nas escolas,
Quando a gente adormece ao teu luar de Outono
O Cruzeiro do Sul das noites silenciosas
Abre os braços de luz e benze-nos o sono!
De modo que com o que foi vosso pai dizeis o que desejais vejam em vós, e com a tríplice explicação, suposto que incitam em erro críticos e os tiros-maiores de todo o demais trem de julgadores, ensejos nos dais de opinar também.
Por que discutir a teimosia que classifica os admiráveis em escolas literárias? Por que fazer detença sobre a incompreensão? Aborrece-vos o vozerio das opiniões restritas e esqueceis que outro seria o mundo se a democracia não fora demagogia no domínio mental, e o fado dos filisteus de todos os tempos pretender desnaturar a inteligência, dando opinião.
A vida outra cousa não tem sido senão uma conflagração de zeros contra alguns números afirmativos. Por fim, os zeros colocam-se no seu lugar, e o futuro não os vê, para ver aumentados pelos zeros à direita as afirmações das unidades que contam. Assim é em todos os aspectos da atividade humana. E nisso está também a explicação das escolas literárias.
Diante dos vossos versos, em que o sentimento abrolha na beleza da forma, quase vos assusta que teimem em tomar um rótulo (que é mais receita de farmácia), para decretar que todos os poetas, cuidando da forma, são impassíveis – de mármore, como dizem certos senhores convencidos de que o mármore não sente, só porque ainda não ouviram gritar ou gemer o mármore. Mas é vão o temor! Diferença há e radical entre o poeta e o homem que faz versos.
Estudemos as escolas literárias, cujos títulos, nascidos de coincidências fortuitas, a princípio nada exprimiam – à luz de uma filosofia arejada – e veremos que elas se formam na esteira dos espíritos de escol para que os críticos generalizem e a mediocridade possa operar borbulhas nas acrópoles do pensamento com a convicção de realizar uma obra.
A democracia científica do século passado, classificando tudo para satisfação de medianos imitadores, mesmo quando classificava errado, não podia deixar de catalogar com verdadeira fúria o que lhe era vedado: a arte. Aos espíritos dedicados a pretensão assusta. Aos menos sensíveis mostra um esforço de aparência, no apoio das opiniões feitas. O Brasil, cujo único grande mal tem sido não se conhecer para melhor conhecer os outros, tomar sem trabalho de pensar o que lhe exportam e com açodamento adaptar, seguindo a moda, em vez de guiar idéias, absorveu todas as classificações literárias. A pequena inteligência exulta. Se assim não fora, cidadãos chamados críticos não poderiam com fácil arrogância igualar o talento. Se assim não fora, inumeráveis cavalheiros não teriam escrito sonetos a várias ninfas e pastoras no tempo da Arcádia, como não teriam perpetrado o implacável soneto à forma na época parnasiana, julgando, quer com as ninfas quer com a forma, serem poetas de mérito inconteste. Como, porém, essa vaidade nada adianta!
Não compreendemos o artista como o desvendador das energias da raça, não admitimos haver em Portugal ou França uma nova escola, sem logo lhe abrir por cá a sucursal das réplicas, de modo que com satisfação geral temos de tudo em poesia, do arcadismo ao cubismo. Mas só se convencem do erro os que do erro aproveitam.
Os críticos enrolam nas classificações os grandes poetas, como vosso pai, e os grandes poetas nada dizem, porque a lógica é chegarem até os eleitos os pequenos pelo pons asinorum de que fala Holmes no Autocrata da Mesa-Redonda. Assim os rimadores realizam a ilusão da igualdade.
Dessa igualdade são vítimas os que escrevem com o sentimento da forma. A forma não é senão a consciência da verdade adquirida por cada um. Mas como quem cuida da forma é para tal gente parnasiano, e Banville deu a receita para ser parnasiano, julgam os medíocres serem poetas desde que imitem a forma com a regra fixa, sem pensar nas palavras do próprio Banville: “com as regras fixas, os mais medíocres podem fazer versos passáveis...” E sem lembrar a profunda reflexão de Aristóteles: todos seriam Homero se a questão fosse só de fazer versos certos.
Apenas nada disso pode ofuscar o brilho dos gênios, porque em vez de beleza é confecção, em vez de arte é artinha.
Arte é uma só. Arte é a fisionomia da terra. A natureza é sempre sobrenatural na grande e infinita perplexidade do não saber. Dentro dela, no seu espanto, os humanos desejam a verdade que é o além. A arte,
Musa concreta y ambigua,
Elegante, moderna y antigua,
faz-se a decifradora incessante desse Além, tão mais longínquo quanto mais perto parece estar. Os artistas, possuidores do seu segredo, são os iluminados, os organistas da grande catedral que no tesouro da polifonia colhem a unidade universal.
Ruysbrock, o admirável, escrevia:
“O esplendor divino sem limites foi dado em comum aos espíritos amantes em graça e glória; para todos dimana como o esplendor do céu. E, entretanto, os que o recebem não se vêem igualmente aclarados: o sol transilumina mais claramente o vidro que a pedra e o cristal que o vidro; e cada pedra preciosa brilha e mostra nobreza e riqueza e cor à luz do céu e cada uma é iluminada em graça e glória, segundo a sua aptidão para o sublime.”
Estão nestas palavras a arte e a razão dos grandes poetas – caminhos da perfeição, auroras das almas. As pequenas inteligências, porém, não ascendem jamais a tais altitudes de compreensão. Escapa-lhes sempre a aptidão para o “sublime” das pedras iluminadas, ignoram a dor profunda que a história pré-natal das grandes obras mostra nos ideais e nos sentimentos que os gênios vão adivinhando, neste mundo que não é divino para todos só porque nem todos o podem ver. E principalmente por falta de pureza para admirar aqueles que são os decifradores da perplexidade da natureza, donos das chaves do entendimento, dos sentidos, encaminhadores dos humanos no desejo do Além que é a verdade...
Os poetas são amados pelos povos e venerados pelos que deles recebem a dolorosa herança. E se o resto continua a classificar e muita vez a agredir por ser incapaz de compreender, é esse o imposto da pequena inteligência contra os altos espíritos em todos os tempos: a injustiça que fazia perder a paciência a Píndaro na sua cadeira de ferro, a injustiça que de latrocínio acusara Fídias, a injustiça que sorria diante de Shakespeare e considerou Balzac escrevinhador – a injustiça da eternamente terrível pequena inteligência, esse terceiro sexo filho do lugar-comum e da pretensão inane.
Que fazer? Não ouvir e seguir. Roberto Burns dizia: – “Duas cousas invejaria eu: o cavalo nas selvas da Ásia e a ostra em alguma costa deserta da Europa. Um não tem desejos, outra não tem desejo nem medo...” A sina do artista, porém, não pode ser essa, desde que a sua razão de ser é desejar freneticamente para dar ao pathos a refulgência astral da luz divina. A pequena inteligência poderá não o compreender, mas jamais o dominará, classifique-o embora de impassível ou ardente, parnasiano ou lírico, simbolista ou cousa alguma.
A obra de vosso pai ilustre teve essa glória. Com a consciência da verdade, tão grande que a sua forma era simples e pura e perfeita, a carreira diplomática, as viagens, as ausências da pátria não só lhe fizeram uma sensibilidade excepcional, tornando-o o aristocrático expressor das saudades do mundo, como lhe desenvolveram um dos mais senão o mais nobre amor: o da pátria. E como os tempos eram outros, não lhe foi preciso escrever nem pela sua arte nem pela sua classe social. Vós, entretanto, cuja carreira parece por milagre a repetição da dele, já outro tanto não podeis fazer. Tendes de protestar e mesmo defender entre cousas de arte a diplomacia e o mal que dizem das ausências como fator do esquecimento.
Ainda bem. O assunto é interessante. No Brasil quase todos os diplomatas querem ser escritores, e quase todos os escritores almejam a carreira da diplomacia política e comercial. É possível que os diplomatas, apesar da complacência com os amadores, não venham a ser escritores. Arte não pode estar ao alcance de qualquer, mesmo ministro plenipotenciário. Em compensação, não há um só escritor que não tenha sido um excelente diplomata. À frioleira que censura a diplomacia com argumentos de confeitaria ao domingo corresponde a futilidade dos que usam da carreira como de uma prenda de bom-tom. Nunca se poderá argumentar contra uma classe exigindo nela batalhões de talentos sem falha.
Teríamos a falência de todas as profissões se na representação dos espíritos não houvera o entremez dos sorrisos. Mas esta companhia, coroadora do esforço de homens ilustres, esta companhia da qual fizeram e fazem parte notáveis escritores que são diplomatas de alto brilho, poderia provar, firmada nesses diplomatas, de que inteligência e cultura são integralizadoras da ação do dever nas carreiras de maior responsabilidade. Poderia mesmo demonstrar àqueles que mediocremente julgam os artistas incapazes de ação, que o Artista em qualquer época tem acendrado o sentimento do dever no serviço público, porque nenhum outro homem se lhe pode comparar em entusiasmo e no pensamento da sua pátria. A Academia torna-se a faculdade aberta aos entes de crença exígua para que aprendam a força ativa que a beleza incute nos homens, tocados pela graça divina.
É possível sorrir dos diplomatas que tentam a literatura por desafio a não ter o que fazer. Nunca foi possível censurar os artistas que submeteram o seu saber à profissão, para ilustrar a pátria longe. Esse mesmo afastamento que as gralhas consideram desnacionalização realiza, nas almas perfeitas, não o esquecimento, não a indiferença, mas o entranhado, digno, grande amor pela pátria. Goethe dizia que viajava para conhecer-se. Os homens nobres distantes da pátria só a desejam maior. Longe dela, Rio Branco foi o primeiro e grande patriota desejoso de realizar o princípio da sua pátria igual às melhores; longe dela Joaquim Nabuco ligou na simpatia do seu verbo as duas Américas; longe dela os nossos maiores artistas fizeram como vosso pai as mais belas obras de emoção brasileira; longe dela, e cercado de glórias pelas outras, José Bonifácio criou-a no seu sonho de alma suprema. Para os insignificantes o estrangeirismo que corrói o sentimento canhestro dentro da pátria pode ser fora dela o requinte do bom-tom. Para os ilustres, não! A ausência é crisol de entusiasmo.
Vós sois desses que acima de tudo amais a vossa pátria.
Pois tudo é belo aqui: os céus, os horizontes,
A planta que rasteja e as garças altaneiras...
Há suspiros de amor nas lágrimas das fontes
E gritos de paixão na voz das cachoeiras!
À Academia, parece-me, não é indiferente tal virtude. Entre os muitos erros circulantes há o de querer fazê-la uma réplica da francesa, julgando como com erro a outra julgam, que o seu fim é catalogar gênios para o cemitério, de modo que a honra de um lugar nesta Casa não passa de uma ociosidade fardada, de título de glória descansada a descontar jamais. A Academia é, entretanto, a alta esfera de onde deve irradiar a chama condutora do bem da pátria. Em vez de ser uma congregação desconexa, ela é a expressão congregada do escol da raça. Não se imagine nada mais ativo que a força da idéia – propulsora de todos os atos terrestres. Não se julgue o Pensamento senão pelo que ele é: forja da energia humana. Longe de diminuir com o coroamento, a responsabilidade de cada um aumenta na responsabilidade coletiva da Academia. E nela cada um tem a realizar sempre e cada vez mais a obra da pátria; criando vida, refletindo vida, pregando o bem magnífico, agindo, guiando, transformando, melhorando, ensinando o Além, realizando, enfim, Beleza. O sistema nervoso da pátria é o seu amor, dela por ela. A medula da arte, o centro sensitivo do mistério universal, foi, é, será o amor da pátria.
Mas, entretidos que somos a ilustrar matéria de perpétuo interesse – vós com ciência e candura d’alma, eu suprindo com entusiasmo as falhas da inocência – nem vós pensais no esplendor da vossa obra, nem eu vos digo a admiração por ela. Seria força que a vossa modéstia violentasse o meu dizer, se as vossas opiniões não fossem a marginalia dessa apoteose de cambiantes cores. Ao pensar na beleza dos vossos versos, logo na mente se nos fixa o mistério das revelações. É como se Attar, o espírito perfumador dos persas, no ar houvera derramado o perfume dos segredos ...
Apraz-me – e só desta arte a compreenderíamos! – encarar a vossa obra como uma daquelas legendas árabes que em torno do “raio da felicidade” se teceram nas miragens dos desertos e nas riquezas dos serralhos. Eu vos vejo adolescente mediterrâneo, eleito das musas, abençoado de Apolo, amado de Vênus. Dos risos e alegrias o sobressalto é a nostalgia do ignoto. Cantais, e de súbito parais a canção. É que ao vosso olhar acenam países de porcelana entre festões de glicínias. Partir! Faz-se necessário partir. O destino manda. E caminhais. O vosso verso espelha a perfeição das cousas; a cada novo amor abandonado, as estrofes do vosso estro desnastram rosas.
Seguis, inebriado, a memória de Vênus dentro d’alma:
Lembro-me ainda dessa esbelta e flava
Carícia dos teus braços amorosos...
Por mais que evite o encanto os impiedosos
Perseguem sempre a minha carne escrava!
Eram suaves, cálidos, cheirosos
Como doces damascos!... eu beijava
Aquela morna pele que tentava
O paladar! Oh braços deliciosos,
Como esquecer as núpcias perturbantes,
Os louros desalentos delirantes
Que sem misericórdia vós me dáveis?
Ah! torna Vênus para o sacro Elêusis!
Fui condenado à morte pelos deuses,
E quero-a nos teus braços implacáveis!
Erro melancólico. Do alto Vênus sorria. E os deuses todos de concerto seguiram o predestinado com o olhar suave da bondade. De repente o ar escureceu. Sobre os escombros das ladeiras e os torrões dos valados, as flores vermelhas de Proserpina anunciavam a morada do fogo. E no vento sufocante a voz de Hermes Trismegisto cantou o vaticínio:
“Tu serás o renovador do eterno e grande e palpitante pasmo. Tu tornarás a explicar aos homens o segredo perpétuo das luzes sólidas. Tu escreverás o novo lapidário! Retomarás a multiforme explicação do mundo e a teus pés terás o mundo sem reflexão: as religiões e as negações, as superstições e as volúpias, os artistas e as mulheres, os rajás da Índia e as odaliscas do Grão-Mogol, as imperatrizes romanas e os sábios de Alexandria, as doze tribos da Bíblia e as baiadeiras de Visapur, o Rational e Satanás, a cinta do Papa e os feiticeiros medievos, todas as virtudes. E Helena a que se dá e Margarida a que se colhe, sob a gargalhada infinita de Mefistófeles...”
Disse, e todas as flores desfolharam-se em jóias. Diante de vós a terra era miraculoso tesouro de gemas a luzir. Com a graça de Deus, no vosso olhar em vez do êxtase morava a sabedoria acumulada; e vós, em vez de bolantim correndo sobre maromas de cor a jogar com as pedras os signos zodiacais, éreis de súbito o explicador transcendental do íris subterrâneo. O inicial Teofrasto, Demócrito que dizia haver nas pedras alma elementar, Dioscoridão que lhe deu propriedades médicas, o cônsul Rutilianus, Plínio, da Vinci, e os anônimos escritores dos lapidários chineses que classificavam a pedra o osso, da terra, e os ignorados receitistas filósofos dos lapidários asiáticos, e os tropologistas da sombra da decadência dos impérios – abriram-se ao vosso entendimento.
E o grande segredo atribuído na idade Média a Evacx, rei da Arábia, a Enoque, ao rei Salomão e ao próprio anjo Rafael – vós o revelastes, contando a correlação de cada uma pedra com os astros, com os mares, com os campos, com os meses, com a moléstia, com o amor, com a Beleza. No enorme tesouro refulgente amontoavam-se as pedras da Cabala que jamais ninguém viu; a aleiótica que se encontra na cabeça de um certo galo, a aquilária que só se via nos ninhos das águias da Pérsia, a silonite formada no corpo das tartarugas da Índia; a mefite que afasta a dor, a feripêndanus e a andrômadas, pedras de fogo. E, recordando penugens de pássaros irreais cristalizadas, pedaços de astros frios e vidramentos de flores eternizadas, sob a regência indomável de adamas, o diamante, cintilava a sinfonia das pedras que todos vêem. Mas vós dizeis a cada uma o próprio segredo. Entre as águas-marinhas azuis, brancas, verdes, de um pálido translúcido – o vosso verso aconselhava:
Fugi desses vagos
Clarões aziagos,
Ó ruivas princesas, ó loiras rainhas!
Fugi, para serdes
Ditosas, das verdes
E falsas pupilas das águas-marinhas!
Diante da ametista “da cor dos olhos de S. João Batista” murmuráveis os versos de óleo perfumado:
Tens os fulgores, débeis e frouxos,
Da luz das tochas no altar dos santos...
Corres nas velas dos lírios roxos
E nas umbelas dos agapantos...
Nas florescências da Natureza
Vejo-te aos montes pelos canteiros...
Pois as violetas são, com certeza,
As ametistas dos jardineiros...
Entre os aludes rubros dos rubis, o vosso engenho via, além, a tragédia do bem:
Parece, ao ver-vos, que ao drama assisto,
Rubis purpúreos que eternizais
Todo o Calvário de Jesus Cristo
Na luz dos vossos febris cristais...
Enxergo o lenho da atroz tortura...
Os vis insultos da plebe escrava...
E o sangue vejo na santa e pura
E rota carne que palpitava!
Da Dor nascesses, rubis do Oriente!
Das mãos do Cristo, pregado à Cruz!
Sois frias gotas de sangue ardente...
Gotas de sangue... cheias de luz...
Caminhais entre ardores e chispas como numa fauna em que metamorfoseais as pedras – ágatas, corais, berilos, ônixes, granadas, pedra-da-lua, crisólitos, topázios, safiras; esmeraldas, sardônicas, pérolas, feitas das gotas do orvalho da manhã na válvula das ostras. E como à procura de um enorme acorde universal diante da opala, dizeis estas palavras devinatórias:
De blasfêmias coberto e de afeições alheio,
Teu nome faz fugir os crédulos mortais...
Há feitiços na luz dos teus olhos fatais...
És a fonte do medo e do perpétuo anseio...
Mas eu que sempre amei teus raios siderais,
Eu oiço no teu claro e matizado seio,
Um canto luminoso... um rútilo gorjeio...
O hino da tua alma a todos os cristais!
A safira, o topázio, a pérola, o berilo,
Buscam no teu regaço um fulgurante asilo...
E embora o amor te evite e o mundo te rejeite,
És a pedra Imortal dos mágicos faquires!
Um pedaço de céu destacado do arco-íris!
Um naufrágio de luz... numa gota de leite!
Sobre essas pedras animadas pela nigromancia, do vosso estro luzia Vênus. O descobridor do conto, árabe não podia deixar de ver, ao fenômeno da autoglíptica, nas pedras gravadas: – andrômedos, berenices, floras, dianas, as mil e uma visões da forma feminina. Assim, cada pedra nas vossas mãos é um camafeu providencial e conta do vosso anelo, aquele que vos fazia dizer:
Opala: muda sempre e serás a harmonia!
Poeta: ama a mulher nos braços das mulheres!
Aquele anseio de perfeição que ainda agora gravemente vos faz pregar todos os direitos para a mulher, fiel às palavras que os evangelhos apócrifos fazem de Jesus:
“Respeitai a mulher, porque é a mãe do universo e toda a verdade da criação vive nela. Ela é a base de tudo quanto é belo e bom, como é o gérmen da vida e da morte. Dela depende a existência dos homens, porque é para eles o apoio moral e natural em todos os trabalhos.”
Hermes Trimegisto, a vós eternamente jovem, dera os lapidários para compor a maravilha. Do alto Olimpo Vênus vos seguiu – Vênus, que está nas flores e nas pedras, sendo Íris a aliança das cores, Vênus, que é vida do céu, porque abre o dia e fecha o acaso, sempre perto da Lua, Vênus-Mulher, bálsamo do coração. Assim realizastes, no “claro obscuro de um esplendor resplandecente”, a vossa obra, a revelação das pedras com a força persuasiva do único valor positivo: o amor! E de nenhuma sei que a fama diga mais encantadora.
Sr. Acadêmico,
O grande poeta escreveu:
“O homem só conhece o seu valor pelo próprio reflexo nos outros. A virtude que os outros não aquece a ponto de irradiar é miséria. Nenhum homem é dono de cousa alguma, enquanto da fortuna com os outros não compartilha. O aplauso é o reconhecimento do que ele deu.”
Se os aplausos das multidões fossem falaz engano, a vossa entrada nesta Casa seria o reconhecimento do que nos deram já a virtude do vosso espírito e a riqueza do vosso engenho.