Meus Senhores,
Se, algum dia, os homens cedessem o domínio da Terra a outra espécie animal, é provável que os novos senhores do planeta se empenhassem na investigação de nossos defeitos e virtudes. Coordenariam depoimentos e informações. Em alguns pontos, vários destes coincidiriam. No conceito de La Fontaine – o homem, e não a serpente, simbolizava a ingratidão; no de Ortega y Gasset – a ingratidão era o mais grave defeito dos homens; num apólogo delicioso do nosso Machado de Assis, em tantos outros documentos, se apoiaria conclusão irrecusável: o homem fora, caracterizadamente, animal ingrato.
Ficaria, assim, perpetuada a maior injustiça que os homens se fazem.
É, em verdade, mais rara que se supõe, e se diz, a ingratidão humana. Por vezes, o que parece ingratidão é recato, discrição, timidez. Há uma gratidão ostentosa, gritante. Outra, humilde, penetrada do sentimento do obséquio recebido, e, em conseqüência, comedida, quase silenciosa. Não raro profunda, chega a parecer ingratidão. Não raro, por culpa do benfeitor. Pois benfeitores há, vorazes e sequiosos de gratidão, que cobram, com juros altos, o benefício prestado; querem-no sabido de toda a gente, pela confissão, explícita e reiterada, do beneficiado; reclamam a gratidão “imorredoura”, neste mundo precário. Chamam ingrato a quem os não satisfaz. Quanto a eles mesmos, não sei, em nossa língua, palavra que os designe. Oxalá a mencione vosso trabalhado dicionário.
Mas, entre vós, não há alguém a que se pudesse ela aplicar. Todos haveis, portanto, de perceber em mim, em minha palavra, que mal a traduz, na fidelidade do meu culto continuado e antigo, na emoção do recém-vindo, a minha gratidão por vossa benevolência, ao conferir-me o prêmio mais alto de minha pobre vida. Eu mesmo o reconhecia imerecido, e, por isso, mal o soube pedir, ainda que, por incoerência imperdoável, também não soubesse persistir na relutância inicial.
Algumas vezes o tereis concedido, por antecipação, como incentivo, atraindo ao recolhimento de vosso puro labor intelectual os que sentistes dominados pela vocação suprema.
De mim bem sei que, não merecido o prêmio, era tardio e inútil o incitamento.
Se tivesse de ceder à tradição maliciosa, que me obrigaria a justificar-vos de me haverdes elegido, somente poderia dizer-vos que em mim honrastes todos os que, na minha profissão, procuram conciliar a atividade profissional com o trato das idéias e das doutrinas. Poderia aplaudir-vos a intenção atribuída. Não poderia, contudo, esquecer – como nunca esqueci, nem calei – que a outro, e não a mim, ainda com essa preocupação, deveríeis acolher agora.
Não recebo, pois, como meu, todo meu, o consolo generoso de vossa investidura.
Minha gratidão soma a de quantos quisestes exalçar. Tanto maior a dívida, de que sou responsável aparente.
Advertiu um de vossos grandes numes tutelares, que hoje tanto recordaremos: “Guardai o reconhecimento, depois de haver pago a dívida.” Assim, tenho de ser, dobradamente, reconhecido: pela confiança, com que me fizestes vosso devedor; pela generosidade, com que me perdoareis a insolvência.
Vossa confiança, vossa generosidade não me fazem esquecer, antes avivam e amargam o sentimento de minha vida desviada do rumo que eu lhe desejara dar – e a humilhação com que, a certa altura da jornada, os homens recebem o prêmio que, em seu próprio conceito, só haveriam de ter, se realizassem algumas aspirações, inatingidas e já então inatingíveis.
Vendo-me entre vós, para ser dos vossos, nem só vossa presença me conturba. Assalta-me a saudade dos que daqui se partiram: alguns dos que me haviam estendido a mão animadora – Sousa Bandeira, Alberto de Faria, Miguel Couto, Félix Pacheco; alguns dos que ainda ontem me encorajaram com a sua generosidade – Alberto de Oliveira, Paulo Setúbal. Sinto a falta dos que já não encontro. Sinto a falta dos a quem precedi – indevidamente. E sobretudo, a ausência, pior que isso, a perda daquela que, na sua humildade, na tristeza resignada de seus dias derradeiros, se envaideceria deste momento e tentaria comunicar-me a convicção, que só ela poderia ter, de que, elegendo-me, não cometestes um erro, nem uma injustiça...
O problema jurídico
A profissão, em que me vou consumindo, é das que se não exercem eficientemente, sem o devotamento de todas as horas, de toda a vida. Nem tudo será, em sua prática, alta e pura expansão de inteligência. Mais avulta o áspero terra-a-terra da competição dos interesses individuais, o enrodilhamento tortuoso da fraude, da chicana, das alicantinas forenses. Nenhum advogado sentirá ufania de sua profissão, se se ativer somente a isso. Tinha, porém, razão Edmundo Picard, ao dizer que não há para a inteligência humana preocupação mais sã que a do Direito.
Não faltam, aqui mesmo, os que se evadiram da advocacia, ou por ela se não deixaram absorver, desalentados aos primeiros contatos com o foro, ou com os clientes. Esses não tiveram a fortuna de sentir – ao menos desde logo – todo o encanto da defesa, da afirmação do direito ameaçado, da fixação do exato alcance da lei, da sua precisa aplicação, da salvaguarda dos interesses sociais através dos direitos individuais.
Bem raro será o ambiente forense propício a tais estudos ou realizações. Por isso, nenhum advogado há de confinar sua atividade ao recinto dos tribunais. Cada um deve exercer ação social mais ampla, mais profunda, mais impessoal. Ela os atrai.
Aos nossos bacharéis em Direito (talvez mesmo principalmente aos náufragos da advocacia, tão cruelmente ridicularizados sempre) se pode atribuir o merecimento da difusão do zelo da ordem jurídica, do sentido social dos problemas jurídicos, acaso o apreço das idéias gerais, e da cultura geral – ainda que, muitas vezes, mal as possuíssem.
A lida forense apresenta vantagens de outra espécie, desenvolve outras tendências. É a própria vida, individual e coletiva, em sua brutalidade. Sem favorecer o aperfeiçoamento da cultura, atenua alguns males decorrentes da sua falta. Põe em contato com a realidade. Evidenciou o ridículo da retórica a que nos afeiçoáramos. Tornou a oratória sóbria, técnica, precisa. Revelou deficiências de nosso Direito obsoleto e formalista. Inspirou-lhe a transformação. Deu-lhe sentido novo.
Os estudiosos doutrinários do Direito abrangem o mais largo desenvolvimento das idéias e das teorias; os práticos do foro terão sido dos primeiros a suportar – estão, ainda, suportando – a premência esmagadora dos tempos novos. Viram, talvez antes de todos, que a estrutura social, baseada no Direito, ou de que ele é expressão, se tem de alterar, ou rever.
Na sociedade nascente, na sociedade ainda em formação, os problemas, os reclamos fundamentais, as primeiras lutas são de ordem puramente econômica. Recordai o Império: povoamento, trabalho, circulação dos produtos... Primo vivere. Contudo, o problema econômico, ele mesmo, não é puramente econômico; é também, cada vez mais, de ordem moral. Dá-lhe relevo, e o agrava, e lhe impõe solução a todos os homens de governo – a degradação da personalidade humana, que acarretaria em muitos casos, a miséria a que arrasta muitas criaturas humanas, melhores, por vezes, que outras, favorecidas exageradamente. Sobreleva, portanto, sua repercussão de ordem moral.
A solução desses problemas de ordem moral constitui um problema político, um problema jurídico. Vede a formação do vínculo contratual. Começou-se por almejar a livre determinação das partes contratantes. Depois verificou-se que não bastava, ou era inatingível, a não ser aparentemente. A vontade, manifestada pelos contratantes, não será a sua vontade real, não lhes exprimirá o verdadeiro interesse, e deixou de ser, por si só, decisiva. Reconheceu-se que melhor o define, ou garante, a lei. A associação, a instituição, substitui o indivíduo; convenções coletivas valem como leis.
Chegamos aos sistemas de economia dirigida, de economia organizada, de economia controlada. Então se revela a necessidade do Estado forte. Surge o Estado totalitário, sem limites, nem peias. Aparece o Estado, aos olhos dos publicistas modernos, como o “novo Leviatã”, o Leviatã, de Hobbes, renovado. É problema fundamental de toda a vida coletiva contemporânea o da organização do Estado; e é um problema eminentemente jurídico.
As relações do Estado com a Nação, e com o Direito, as controvérsias sobre a dominação de um pelo outro, dividem os povos, caracterizam sistemas políticos antagônicos, animam as grandes lutas internacionais há um quarto de século
Ao iniciar a nova e monumental Enciclopédia Francesa, consagrando ao Estado Moderno o primeiro volume publicado, Monzie observava, com inteira razão:
Une seule idée sort victorieuse de la guerre mondiale prolongée en débâcle intellectuelle: c’est l’idée de l’État. Le grand fait contemporain c’est l’hégémonie de l’État se superposant, ou se substituant à la toute puissance de la Nation.
O nosso Estado fora tímido e impotente. Em nossa organização social, deficiente e precária, somente a instituição familiar ganhou solidez e fortaleza. Nossa afetividade, nossa índole sedentária, retraída, somente no conchego do lar encontrou ambiente satisfatório, clima propício. Toda a nossa vida pública se reduzia ao círculo familiar, dentro dele transcorria, dominada por preocupações acanhadas; revestia-se de certa feição de domesticidade. Apontava-a no foro, nos primeiros tempos do Império, um dos maiores advogados da época – Montezuma. O mesmo na Política, na Administração, na Literatura. O empenho de colocar bem, em bons cargos públicos, até da representação nacional, os filhos, os genros, os parentes mais afastados, resultou da preponderância de puros sentimentos afetivos de origem doméstica. Não se realçava o sentimento do interesse público. Mal se o conhecia.
Assim também o Romance, o Teatro, a Poesia refletiam, quase sempre, e quase exclusivamente, o ambiente doméstico, os sentimentos domésticos, a intimidade, a suavidade, a doçura, e até as pequeninas misérias domésticas.
Até certo tempo, a influência da mulher – diminuta na Literatura, como na Política – somente no lar se faz sentir. Então, no romance, como na vida real, a mulher era apenas a mãe de família, bondosa e ingênua, a mocinha que dançava ou namorava, a mucama solícita e maliciosa – todas no círculo estreito da vida doméstica.
Nossa Literatura florescia em ambiente de estufa.
Toda a página impregnada de outras preocupações, revelando outros pensamentos, não se considerava literária. O que hoje surpreende, e exaltamos, na obra poética de Castro Alves, por exemplo, é a profunda vibração de espírito público que encerra.
Do regime da escravidão ficaram em nossa Literatura alguns versos, raros romances, poucas páginas de outros romances. Pouquíssimo, também, da guerra de 65 a 70 e da propaganda republicana – assinalou, com autoridade, o Sr. Afrânio Peixoto. No entanto, os problemas políticos de hoje invadem o Romance, e, em alguns dos melhores publicados ultimamente, palpita, através da vida vivida das populações do norte ou do centro do País, a inquietação do homem contemporâneo ante os reclamos da reorganização social. O que de novo há, nesses romances, é a influência, ou a preocupação, dos problemas sociais do momento. Já se não apresentam, apenas, sentimentos individuais, situações psicológicas mais ou menos complicadas. Através de uns e de outros, avulta a inquietação das grandes questões sociais e políticas. A trama de tais romances não se faz apenas com o amor, ou coisa parecida, e o ciúme, ou não é só isso. Nem são produto de ficção, ou de fantasia. Não os entende quem não perceba a gravidade aterradora das causas profundas dos episódios: o êxodo rural, a desorganização do trabalho, a incultura do povo, o descalabro do sistema penitenciário... Pouco interessam situações psicológicas individuais, personalíssimas. Parecem sempre inverossímeis. O que se procura conhecer são as grandes correntes profundas que, no seio da sociedade, arrastam impetuosamente indivíduos de todas as qualidades, confundindo-os no mesmo destino imprevisível.
Repercute, assim, na Literatura, somente agora, o clamor – não o clamor, o gemido, ainda resignado e tímido, da nossa gente que sofre. A Literatura reflete a crise contemporânea, não só pelas preocupações de ordem social, que a dominam, mas também pela amplitude e pela profundidade dessa mesma crise, e, talvez principalmente, por ser, antes de tudo, uma crise espiritual.
A Literatura denuncia o sentido da evolução social.
A grande transformação em curso de nossa vida define-se em duas palavras: socialização, espiritualização. Socialização de todas as atividades. Espiritualização de toda a vida. Preponderância do interesse coletivo. No interesse da coletividade – proteção, elevação de cada indivíduo, proporcionando-lhe, assegurando-lhe condições de vida correspondentes à dignidade humana. Nada interessa senão pela repercussão, pelo alcance social, que possa ter. Nenhuma ação individual terá outro objetivo senão o interesse social. Nenhum interesse social supera os de ordem moral, os de alcance espiritual.
A imensidade do território, a exigüidade da população, a deficiência das comunicações isolavam-nos uns dos outros. Deixavam cada indivíduo entregue a si mesmo – desconfiado e suspeitoso dos outros. Cada indivíduo, fraco, mal-apercebido, inculto, impotente, minado pelas endemias, ante dificuldades enormes. Tudo nos fez individualistas. Aclimatou-se bem entre nós, no sistema da Monarquia Constitucional, o regime individualista da Revolução Francesa. Ainda melhor, o sistema individualista americano, caracterizado pela proteção judiciária dos direitos individuais. Expressões literárias do individualismo – o romantismo e o lirismo deram-nos algumas belas obras.
Não maldigamos o individualismo. Por ele havíamos de passar, necessariamente, para atingir à fase superior da organização social – em que a preponderância do interesse coletivo avigora a espiritualidade, inspira novas preocupações de ordem moral, e, dentre estas, acima de todas, a da defesa e do fortalecimento, não apenas do indivíduo, que se disse mera abstração do intelectualismo do século XVIII, mas da própria personalidade humana. Pode dizer-se que há um neo-individualismo, impregnado de interesse social, defendendo, em cada pessoa humana, a própria sociedade a que pertence. Por isso mesmo, o Direito amplia cada vez mais o seu campo de aplicação. Envolve cada vez maior número de aspectos da vida humana. Almeja-se a completa jurisdicação – como eu mesmo disse, aplicando uma palavra nova e feia a movimento de irrecusável beleza –, a solução jurídica dos problemas da vida social. Todos os problemas fundamentais da vida coletiva da humanidade reclamam solução jurídica ou desfecham num problema jurídico. Nunca o Direito foi tão interessante, tão envolvente, tão amplo. Ganhou em profundidade, penetrou-se de interesse social, de zelo da moralidade, de anseio de espiritualidade. Socializou-se. Por um momento, confundiu-se o individualismo com o Direito e a reação contra um se estendeu ao outro. Depois surgiu o Direito Social, de que Jorge Gurvitch traçou o quadro magnífico.
O fim do Direito é o bem comum, o interesse geral, não apenas de ordem material, mas também de ordem moral. O Direito emancipa-se dos formalismos estreitos, rompe os textos legais rígidos. Busca inspirações mais altas. Revigoram-se-lhe os estudos filosóficos.
O próprio conceito de soberania nacional perde o absolutismo de que se revestia, socializa-se, no sentido da sociedade de todas as nações civilizadas, sofrendo as restrições decorrentes da nova organização internacional. Espiritualiza-se, como disse Adolpho Posada. Também ele se transforma de político em jurídico, segundo observou Jellinek. Subordina-se ao império da lei. Revivem as doutrinas de Santo Tomás de Aquino.
O Estado, superior ao Direito, órgão da violência, fim de si mesmo, voltará a ser o Estado, instrumento de realização e de afirmação do Direito – do novo Direito amplo e profundo, nas sociedades organizadas.
Há fome de justiça. A democracia, que seria criação, ou expressão do individualismo, renova-se, impregnada de espírito social. Dentro dela, o Estado realiza o que se chamou o “espírito jurídico da vida”.
Espectadores desse movimento, vivemos dias de inquietação. Somente a confiança na adaptabilidade do Direito às novas situações, a esperança da prevalência do direito sobre a força, nos dará a certeza de que, através de sofrimentos e angústias, a humanidade se encaminha para mais altos estágios de sua evolução eterna. A transformação há de fazer-se pelo Direito, ou far-se-á pela violência. Se a não dominar o Direito, subverterá toda a obra plurissecular da humanidade.
A Literatura e a vida
Dizia, com a fascinação inexcedível de sua palavra, o Sr. Afrânio Peixoto – verdade é que a Osvaldo Cruz – não haver por que exigir-lhe o atestado de alguma novela ou de algum poema. Não o exigistes dos ocupantes precedentes desta Cadeira – nem do atual. A algum, talvez, tivestes até de perdoá-lo...
Um estudioso sereno e esclarecido da história literária de França, de quem há o eco da palavra entre estas paredes – Gustavo Lanson –, acentuou muito bem que o verdadeiro ofício da Literatura consiste em ser instrumento de cultura interior, pelo prazer que dá ao jogo de nossas faculdades intelectuais, e de que estas faculdades saem fortalecidas, ductilizadas, enriquecidas. Sua mais alta excelência – acrescentava – é habituar ao prazer das idéias: “Eleva o espírito acima dos conhecimentos, dos interesses, dos preconceitos profissionais; humaniza o especialista.”
Para ele, quando a têmpera filosófica é necessária aos espíritos, não sendo accessíveis a todos os estudos filosóficos, torna-se a Literatura, no sentido mais nobre da palavra, “uma vulgarização da Filosofia”; por ela passam, através das nossas sociedades, as grandes correntes filosóficas, que determinam os progressos, ou pelo menos as mudanças sociais; é ela que “entretém nas almas, sem ela deprimidas pela necessidade de viver e submergidas pelas preocupações materiais, a inquietação das altas questões que dominam a vida e lhe dão sentido ou fim”.
Este conceito traduz compreensão bem ampla da Literatura. Lanson concluía pela dificuldade de marcar-lhe os confins. Em todo o caso, reconhecia a impossibilidade de ficar, apenas, no que chamaria – a Literatura de Arte – e a necessidade de atender ao “que se passa nos mundos diversos da erudição, da Ciência e da Filosofia”.
Olavo Bilac não foi menos explícito, afirmando: “Literatura não é apenas filosofia e poesia, retórica e estética; é todo o pensamento e toda a palavra, todas as paixões e todas as idéias, todas as formas, todas as cores e todas as harmonias da vida.” Não são apenas as grandes correntes filosóficas que passam através da Literatura; são todas as grandes idéias da vida humana.
Originariamente, teria sido esta Academia – como observou um dos vossos – refúgio para os espíritos fatigados de política. Ocorria “nefasto absenteísmo da inteligência e da cultura na vida política brasileira”. Para corrigir o mal, a Academia atraiu homens da política e, em geral, homens de ação pública que – por vezes, mediocremente – se haviam interessado pelas coisas da inteligência e da cultura. Aproximou da inteligência e da cultura homens públicos; aproximou da realidade social poetas e romancistas. Fez, assim, está fazendo, a infiltração da inteligência e da cultura em nossa vida pública, e a orientação da inteligência no sentido dos interesses vivos da coletividade.
É, de algum modo, e até certo ponto, obra, como a que, noutra época, o imperador pessoalmente procurara fazer, por apreço da Ciência e da Literatura, com tão profundo e benéfico alcance em nossa formação política.
Ninguém avaliaria melhor que Joaquim Nabuco a influência e o mérito dessa obra e lhe sentiria a falta. Machado de Assis e ele criaram a Academia. Machado de Assis, tímido, retraído, céptico das coisas humanas, não daria, porém, ao novo Instituto toda a dedicação nem talvez o prestígio de seu grande nome, se Joaquim Nabuco lhe não houvesse comunicado entusiasmo pela ação pública. Desde a primeira hora, Nabuco escreve a Machado: “Deve ter a Academia uma esfera mais alta do que a Literatura exclusivamente literária, para ter maior influência.”
Não ficou despercebida a grande e alta função social que, em tais condições, teria de caber à Academia. Nem o poderia ficar, pois a característica de seu espírito era a orientação política. Era ele, antes de tudo, o político, preocupado com o interesse social, a ação social, a repercussão social e política de todos os fatos.
Notara – máxime em referência a dois homens que amara profundamente, Gusmão Lobo e Rodolfo Dantas – o que chamou “um dos enigmas de nosso tempo, enigma nacional porque se prende à questão do emurchecimento rápido de toda a flor do País”: a renúncia súbita à ação começada, o desinteresse pela obra em meio à retirada brusca da cena.
A nós mesmos poderia aplicar-se, invertida, a observação do publicista espanhol – melhor diria publicista europeu, Sr. Salvador Madariaga. Em sua terra, considerou sintoma do grande número de vocações frustradas o fato de ser quase sempre um artista o espanhol que fala, convencidamente, de questões médicas; se mostra conhecimentos excepcionais de Pintura ou de Escultura, é, seguramente, um coronel; se se ocupa, com autoridade, de estratégia militar, é um pároco. E concluía: os homens de letras saem de todas as profissões.
À mesma conclusão chegaremos aqui. Através de sintoma diametralmente oposto. Porque não percebemos o artista através do profissional. Ao contrário, percebe-se o profissional sob o artista, sob o literato. Os homens de letras não saem de todas as profissões: todas as profissões sufocam, esmagam, aniquilam o homem de letras. Maciel Monteiro, Joaquim Nabuco, Dantas Barreto, Gregório Fonseca – todos os que se acham ligados a esta Cadeira, todos, mesmo Nabuco, tiveram suas obras amesquinhadas pelas circunstâncias, pelas preocupações de ordem profissional.
Quase todos os nossos literatos poderão confessar, como o próprio Nabuco, que não tiveram tempo de o ser – ao menos de o ser como desejariam.
Esse fenômeno denuncia não apenas defeito de organização social, mas deficiência de cultura geral. Nós precisávamos humanizar os especialistas. Nós precisávamos – e precisamos – de Literatura.
Para corrigir essas deficiências começa a Academia por criar, ou avigorar, e aperfeiçoar, o instrumento imprescindível de qualquer obra de palavra – a expressão literária. Estamos em momento da sua transformação mais profunda, em conseqüência do desenvolvimento dos meios de manifestação e de comunicação do pensamento, que se processa a nossos olhos.
Perdem alguma coisa de seu prestígio antigo os impressos – jornais, revistas, livros. A velocidade, a agitação da vida quotidiana mal permite o prazer da leitura – não permite, principalmente, ler conforme a recomendação de um mestre encantador dessa arte: ler devagar, ler duas vezes. Há pouco, admitia um dos mais lidos escritores contemporâneos a possibilidade de que, antes de meio século, o livro nada mais seja para a multidão e fique reservado ao uso de pequena elite letrada. Ante os progressos da radiodifusão, previa outro, de não menor renome, que se torne coisa rara a leitura. Se não abreviarmos o termo da nossa arrastada campanha contra o analfabetismo, teremos, talvez, de reconhecê-la desnecessária...
Ainda por força dessa mesma tendência, a poesia perde o metro e a rima; na prosa, frases sem conexão, nem sentido, violam propositadamente regras gramaticais elementares; avultam onomatopéias por vezes ridículas. Tudo isso não é o estágio derradeiro da transformação; prenuncia uma fase nova. Uma fase, em que a literatura se realizará em moldes que mal podemos imaginar.
Então, e sempre, a “forma literária” deverá ser o que João Ribeiro definiu “a dignidade externa da expressão”, isto é, “a polidez e o grau de honra dela, e o respeito que se lhe deve”.
Na amplitude deste conceito cabem modificações profundas.
A Academia zela a expressão literária pura, sem rebuscamento, sem amaneirado, sem vinco profissional nem preocupação meramente literária. Nem a linguagem do profissional, áspera e incessível até aos homens cultos que não sejam da mesma profissão. Nem a linguagem artificial dos que supõem necessário escrever difícil ou arrevesado. Em suma, uma linguagem clara, dúctil, empolgante, viva, que seja o que deve ser a língua de cada povo – vínculo da inteligência de todos os homens da mesma terra. Vós o estais forjando, fortalecendo e aprimorando.
Por outro lado, a Academia constitui o maior amparo para os que se retrairiam sem estímulo e razão de continuar, até ao fim, no labor intelectual começado. Supre a deficiência do ambiente social. Assegura o desenvolvimento, em toda a plenitude, da ação social de cada um, e, pelo conjunto da ação de todos, a eficiência do esforço de cada geração.
Nunca foi, pois, a Academia, desde a primeira hora, grêmio de poetas e romancistas. Cadeiras há, como a que me designastes, por que não passou ainda – e desta serei o quarto ocupante – nem poeta nem romancista.
Joaquim Nabuco e Gregório Fonseca tentaram o verso; Dantas Barreto empreendeu o drama. Todos sem êxito. Somente Gregório Fonseca terá feito o que Joaquim Nabuco, com certo desdém, chamava “literatura pela literatura”, recomendando a Domício da Gama que não mais a praticasse.
A expressão literária inicial – e mesmo preponderante, acaso a única, por muito tempo, enquanto se não difunde o interesse cultural nas sociedades novas – é a Poesia. Entre nós assim foi. Ainda o será, para muita gente. E, sem dúvida, será a Poesia, eternamente, a mais bela expressão dos sentimentos humanos, o gênero literário que mais eleva o espírito humano. Mas está na finalidade das Academias, se me não engano, reagir contra o entendimento exclusivista, que reduz à Poesia, e ao Romance, a obra literária – precisamente para exercerem a ação social que lhes cabe.
As Academias, que o desapreço público condena irremissivelmente, são as em que se continua a fazer tão-só literatura emotiva, ingênua e vã, nas esferas serenas do sonho e da fantasia, calafetando portas e janelas para que não entrem ruídos da vida exterior.
A vossa, ao contrário, adotando o conceito amplo de Literatura, vem exercendo função social, incalculavelmente benéfica na formação da cultura geral do País – e tem crescido, dia a dia, em seu prestígio. Realça o interesse literário – nessa acepção dilatada – de toda a obra da inteligência pela palavra, e a repercussão necessária, no campo estrito da Literatura, das grandes atividades sociais. Prestigia o zelo das formas de expressão do pensamento, ainda nos domínios da ciência pura. Recomenda à atenção geral a obra realizada num ou noutro setor, ou o artífice. Afirma a tão falada unidade do espírito em todas as esferas da inteligência humana. Amplia e unifica o público que se interessa por suas atividades. Aumenta-lhes o alcance social. Realça o valor do instrumento comum a todos, que é a nossa árdua e mal curada língua.
Excluída a literatura pela literatura, excluamos também a política pela política. Foi ainda Joaquim Nabuco, no discurso inaugural da Academia, quem disse, magistralmente: “A Política, ou, tomando-a em sua forma mais pura, o espírito público, é inseparável de todas as grandes obras.”
Advertia, entretanto, que estávamos certos de não encontrar aqui a Política – e que “para a Política pertencer à Literatura e entrar na Academia é preciso que ela não seja o seu próprio objeto, que desapareceu na criação que produziu, como o mercúrio nos amálgamas de ouro e prata”.
Na sucessão dos ocupantes de nenhuma outra Cadeira se verifica melhor que nesta como tendes aplicado a norma traçada.
A preocupação política, a ação política, o interesse pela coisa pública – é o traço comum das vidas e das obras dos titulares desta Cadeira, ainda que diversas a orientação e a amplitude das atividades de cada um deles. Com Joaquim Nabuco – o Abolicionismo; a Monarquia Federativa; o Pan-americanismo. Com Dantas Barreto – a gestão da coisa pública. Com Gregório Fonseca o nacionalismo, a educação pelo Exército.
São concêntricos os círculos. O de Joaquim Nabuco tem maior amplitude, transcende do País para o estrangeiro, para a humanidade. Dantas Barreto age, mais limitadamente, na órbita administrativa ou governamental. Gregório Fonseca, sem a situação política dos outros, consegue realizar obra de alta inspiração e de larga repercussão: num dos mais baixos postos do Exército, é ele, no entanto, um dos iniciadores, talvez mesmo o principal realizador do movimento que integra o Exército no seio da nacionalidade – e vamos ver como essa obra social avulta a par de sua obra de arte, de que ele a pretendeu excluir.
Confrontai o pensamento e a ação de cada um, relativamente à mesma grande instituição nacional. Para Joaquim Nabuco, não podia haver afinidade “entre o espírito de subordinação voluntária, que é a alma do Exército, e o temperamento ingovernável dos revolucionários”; a preocupação dominante devia ser a da eficiência militar. Os dois outros – ambos militares – talvez não a tivessem em tão alto grau. Dantas Barreto, impregnado do espírito que Nabuco assinalou no 7 de Abril e no 15 de Novembro, havia de prezar-lhe, primordialmente, a “grande função cívica e libertadora”. Para Gregório Fonseca, ao Exército cabe, acima de tudo, missão educativa.
São três concepções divergentes, aparentemente antagônicas.
Correspondem a momentos diferentes da vida política. Talvez se possam, afinal, conciliar e completar: a função educativa do Exército aumenta-lhe a eficiência militar, imperfeita sempre sem ela, e somente ela o habilita a exercer, em momentos excepcionais, de acordo com a vontade da Nação, uma grande função cívica libertadora.
Divergindo nesse ponto, os meus três predecessores aparecem, no entanto, dominados por uma só preocupação. Dos espanhóis dizia um deles, dentre os mais eminentes, que, sendo capazes de morrer pela Pátria – como, ainda agora, estão mostrando, desmedidamente –, são incapazes de viver para ela. O mesmo se dirá de nós, ai de nós! Mas, desses três acadêmicos poderá dizer-se, com alguma ênfase, que fizeram exceção à regra: viveram para o Brasil.
Maciel Monteiro
Uma superstição da nossa gente veda pronunciarem-se os nomes dos mortos, para lhes não perturbar o repouso derradeiro.
A voz magoada dos sobreviventes menciona os seus mortos, sem lhes proferir os nomes, usando de circunlóquios, evitando o que poderia parecer um chamamento – um chamamento que, em vão, se desejaria atendido... Aqui, não. Aqui, não vale esse temor – é como se cada um de vossos mortos estivesse, em verdade, sempre convosco, sempre aqui presente. Vossa legião cresce dia a dia; os mortos ombreiam com os vivos. Vossa saudade retém os que se apartaram para sempre.
Não vos contentais, pois, com evocar, em oportunidades como esta, o predecessor imediato do novo acadêmico. Quereis, também, todos os outros antecessores, e o próprio patrono da Cadeira.
Perde, assim, a comemoração o caráter meramente individual. Realçam-se as tendências da Academia; recordam-se-lhe as várias fases, aviva-se o contraste das sucessões, que vossa malícia entretém.
Desta Cadeira é patrono Maciel Monteiro. Joaquim Nabuco, que o escolheu, disse-o um elegante de seu tempo; nem só isso – talvez, também em seus dias, o primeiro orador, “orador dandy, cuja frase literária, elegante, naturalmente afetada, exercia sobre a Câmara a sedução que os seus versos harmônicos e as suas maneiras estudadas exerciam nas salas”.
Refere Joaquim Manuel de Macedo que ele “freqüentava, apaixonado, os teatros, os bailes, as sociedades dos círculos mais elegantes”; “era o tipo da mais exigente e caprichosa elegância no trajar sempre rigorosamente à moda, e no falar sempre em mimos de delicadeza e de refinada cortesia, em que, sem pretensão nem demasia, seu espírito sutil e sua imaginação de poeta radiavam suave e encantadoramente”.
Médico pela Universidade de Paris, deputado em quatro legislaturas e, na última, presidente da Câmara, Ministro das Relações Exteriores, Maciel Monteiro realizou obra literária bastante reduzida: poucos versos e alguns discursos parlamentares.
Para Nabuco foi, sobretudo, figura representativa dos senhores-de-engenho dos séculos XVII e XVIII e começo do XIX, que “davam quanto possuíam, terras, escravos, sangue, filhos, para as lutas em que o amor-próprio pernambucano estava empenhado”, e dessa mistura de cavalheirismo e de refinamento que ainda perduraria no poeta e no sertanejo.
Ao fazê-lo patrono de sua Cadeira, Joaquim Nabuco teria realçado, ainda uma vez, a influência, restrita que fosse, entre nós, da sociedade sobre a Literatura. Desejaria recordar certa fase de nossa vida social e literária. Em Maciel Monteiro se evocaria algum salão do Império – algum salão que se pudesse comparar, guardadas as proporções, ao de Madame de Rambouillet. Desse, em princípio do século XVII, teria surgido a Academia Francesa. Proclama-se Madame de Rambouillet benfeitora da literatura francesa, porque misturou homens de letras com gente mundana e aproximou algumas mulheres escritoras, que eram grandes damas, como Madame de Sevigné, de grandes escritores, que eram perfeitos homens de sociedade, como Malherbe e Corneille. Já se disse que, em seus salões, a gente elegante aprendia a falar, a escrever, e, quanto possível, a pensar. Ali se formou uma escola de galanteria e de espírito. Ali ganhou a língua francesa doçura, graça, beleza, perfeição.
Terá querido Joaquim Nabuco destacar uma figura literária nossa que, como outras da literatura francesa de certa época, se poderia enquadrar na categoria especial dos “mundanos”; e, especialmente, o egresso de um salão, de algum modo correspondente àquele, a que vossa Academia também se pudesse filiar remotamente como se tem filiado ao da Revista Brasileira, mais modesto, e destituído de todo o encanto feminino característico do outro.
Recordam, de certo modo, os versos amaneirados de Maciel Monteiro, quase duzentos anos depois, expressões das preciosas do “Hôtel de Rambouillet” e de círculos que o imitaram. São poucas poesias; uma delas, no entanto, se tornou famosa e sobrevive em todas as memórias.
Já vos lembrastes de que começa:
Formosa, qual pincel em tela fina
Debuxar jamais pôde ou nunca ousara...
E termina:
Mulher formosa, ó anjo de primores!
Quem pode ver-te sem deixar de amar-te?
Quem pode amar-te sem morrer de amores?
Os apaixonados usam, e abusam, das fórmulas feitas. Precisam delas. Bem se compreende que, em tal estado emotivo, não possam dar-lhe nova e aprimorada expressão literária.
Assim, há dezenas de anos, tantos e tantos apaixonados repetem as mesmas exclamações:
Quem pode ver-te sem deixar de amar-te!
Quem pode amar-te sem morrer de amores.
Elas perduram nos lábios dos apaixonados, nos ouvidos de outras tantas “mulheres formosas”. Têm, assim, a melhor consagração.
Dizia-vos eu que, dos ocupantes desta Cadeira, não há versos, ou, pelo menos, não há versos dignos da Academia. Há, porém, esses, do nosso patrono. E a engalanam, com o prestígio que os poetas mais alto prezam. A tradição indica as circunstâncias em que Maciel Monteiro escreveu o soneto, e até a pessoa a quem o endereçou. Tão versátil era ele, que o não faria com inteira sinceridade. Ele terá amado, fulminantemente, à simples vista do “anjo de primores” – talvez, mesmo de vários, sucessivamente –, mas não chegou a morrer de amores... E o mesmo acontece a quantos lhe vêm repetindo – há duas ou três gerações – as interrogações perturbadoras:
Quem pode ver-te sem deixar de amar-te!
Quem pode amar-te sem morrer de amores.
Pura ficção. Deliciosa ficção. Deliciosa, para a mulher que a ouve – e até para quem sente necessidade de repetir esses versos imorredouros...
Joaquim Nabuco
Joaquim Nabuco deixou vaga esta Cadeira, talvez para sempre. Sua sombra envolve-nos a todos os que por ela passarmos. Talvez até ao próprio Maciel Monteiro; Nabuco ter-lhe-á tomado o lugar, tornando-se, verdadeiramente, o patrono da Cadeira.
Cada um dos que a ocuparem desejará fixar os traços do predecessor inesquecível, revivendo-lhe a personalidade empolgante. Cada um de nós ficará, assim, mais ou menos, relegado, por seu sucessor imediato, a esquecimento, ou a plano inferior. Os que nem suportaríamos o confronto de personalidades menos destacadas, preferiremos ficar sobrepujados por ele, que é, em nossa literatura, figura singular e incomparável. De mim vos confesso, desde já, que bendigo minha própria previsão – imaginando que, algum dia, meu sucessor preferirá falar de Joaquim Nabuco a falar de mim...
Aludi a seu espírito político. Ele mesmo reconheceu que era político o próprio fundo de sua imaginação. Ninguém viu mais longe, nem mais penetrantemente, o desenvolvimento de nossa vida política. Ninguém apontou, com maior clareza, a persistência dos males resultantes do regime escravagista. Somente ele – o maior apóstolo do Abolicionismo – terá percebido que a solução propugnada já não removeria todos os males. Somente ele terá previsto as vicissitudes do regime federativo não realizado oportunamente pelo Império. Somente ele terá percebido, ou percebeu melhor que ninguém, que, preenchida a missão histórica de formar e fortalecer a unidade nacional, cabia ainda ao Império salvá-la, organizando a Federação.
A par do espírito político estavam, porém, o temperamento artístico, a capacidade de expressão e um conjunto raro de altas qualidades pessoais.
Transcorre-lhe a mocidade na “grande casa familiar da Praia do Flamengo”, de que falou Graça Aranha, à sombra da glória do pai, jurisconsulto e estadista. Cedo começa a atividade literária, enfrentando graves problemas políticos em opúsculos efêmeros – O Gigante da Polônia, O Povo e o Trono. Ascendência, ambiente doméstico, funções exercidas, permanência na Europa, o momento nacional, tudo influi no mesmo sentido, arrastando-o à vida política. Sua distinção pessoal, até sua beleza física, fazem-no requestado pela sociedade.
Ao sentimento patriótico, muito vivo e profundo, alia o sentimento continental e o sentimento humano – o amor ao País natal, ao lugarejo da sua infância, tanto como às grandes cidades tradicionais e históricas; ao zelo das tradições, o espírito de reforma. Através de sensibilidade apuradíssima, aprimora-se a capacidade do devotamento pessoal e a capacidade de compreender e de amar, tanto os homens do maior prestígio intelectual, social ou político, como a gente obscura e humilde. No fundo da sua bondade, há alguma cousa de religioso. Reponta nela a religiosidade fundamental do seu espírito, que o levaria a expansão magnífica de fé cristã, e aquela recordação furtiva da grande e remota unidade de origem de todos os homens, de que falou Maeterlink.
Na campanha pela Abolição dos Escravos bem se revelam todas essas características de sua personalidade.
Compreendeu melhor que ninguém, a um tempo, o problema de ordem moral, e o problema político, que a escravidão envolvia. Conjugou-os. Ninguém defendeu mais carinhosamente a causa dos escravos; ninguém soube, como ele, exculpar os senhores.
Inspirou-o uma impressão da meninice. Disse ele mesmo que essa primeira impressão decidiria do emprego ulterior da sua vida. Contou como se dera “ao serviço da raça, generosa entre todas, que a desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e que por sua doçura no sofrimento emprestava, até mesmo à opressão de que era vítima, um reflexo de bondade”.
Absorvera a escravidão “no leite preto que o amamentara”. Sentia que ela envolvera, “como uma carícia muda, toda a sua infância”. Ao mesmo tempo, sua emotividade revela-lhe que, afinal, “tanto a parte do senhor era incientemente egoísta, tanto a do escravo era incientemente generosa”. Parecia-lhe o papel da escravidão, “por contraste com o instinto mercenário de nossa época, sobrenatural à força de naturalidade humana”. No dia “em que a escravidão foi abolida, sentira distintamente que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tinha mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível”.
Não age, todavia, por mero sentimentalismo – impele-o, também, o patriotismo e, ao mesmo tempo, o sentimento de solidariedade humana que nele o completava.
Para ele, não era a Abolição, no Brasil, apenas movimento de generosidade; era a reforma primordial, pois em nosso povo a raça negra se integrara. Equivaleria à reconstituição política do País, sem a virtude mirífica de extinguir, de súbito, todos os males do escravagismo. Como há pouco vos dizia, percebeu que a rotina, a imprevidência, a ignorância, a devastação das florestas, a feudalização do solo, o servilismo na vida política envenenariam muitas gerações.
Na campanha abolicionista, ainda se revela outro elemento da sua formação mental.
Torna-lhe mais construtiva a ação social e política a sua cultura jurídica, ou, pelo menos, o sentimento jurídico.
Para espíritos jurídicos, dizia, “a política é, verdadeiramente, o tronco e a florescência do Direito”. Seu pai não aprofundara os estudos doutrinários do Direito, mas “viveu o Direito, se se pode dizer assim, como juiz, como advogado, como legislador, como Ministro”. Ele próprio também não teria feito tais estudos aprofundados, nem sequer a prática. Iniciara a advocacia no escritório do pai, mas ao perceber que um dos primeiros clientes lhe ocultava circunstância capital da causa em andamento, declarou, publicamente, a improcedência da pretensão, e trocou pelo Jornalismo a profissão mal iniciada. Não haveria mais advogados se cada um deixasse de o ser, ao descobrir que um cliente lhe omitia certo detalhe desfavorável! Nabuco, com a benignidade habitual, poderia reconhecer que a omissão havida nem era, inevitavelmente, sintomática de má-fé. Quantas vezes o cliente do advogado, ao narrar o seu caso – como o do médico, ao referir os sintomas de sua doença – quer apenas enganar-se a si mesmo, melhorando a situação por momentos, retardando o conhecimento, pelo advogado, ou pelo médico, de toda a triste verdade! Cada um pensa de si para si: ele terá de saber, mas não o saberá por mim!...
Nabuco terá deixado a advocacia, apenas iniciada, por outra razão, de maior alcance. Ele precisava de cenário mais amplo, e de maiores fulgurações. No íntimo da sua formação, ficava, porém, a vocação jurídica. Avivam-na o sentimento político, o espírito de ordem, o zelo da hierarquia.
Desistindo da advocacia, conservou, sempre, muita cousa do advogado. Antes de tudo, o amor da controvérsia aliado ao respeito da opinião adversa. Bem o exprimiu nestas palavras: “Podemos nos apaixonar e de fato nos apaixonamos muitas vezes, por causas diferentes, conforme o ponto de vista onde nos colocamos. Isto significa que, graças a Deus, nas lutas e nas oposições humanas, existe em geral nobreza em ambas as partes.”
Depois, o zelo do Direito, o apego às soluções legais, e até mesmo alguma da terminologia jurídica. “Primeira hipoteca”, “contratos” e outras tantas palavras ou expressões de cunho jurídico encontram-se amiúde em seus livros, reaparecendo freqüentemente sob sua pena. Na carta ao Almirante Jaceguai, compara a Monarquia e a República às formas de sociedade comercial de responsabilidade solidária e às modernas sociedades anônimas, em que os gerentes não têm responsabilidade. Ele mesmo se desvanecia de haver sido, no Parlamento brasileiro, o primeiro a proclamar que a raça negra tinha “direitos”. Balmaceda e O Abolicionismo estão cheios de páginas escritas por jurista. A ilegalidade da escravidão, ele a mostrou, tanto em face de nossa lei de 31, nunca executada, mas vigente, como em face dos princípios do Direito Internacional, pela sua própria índole, pela sua extensão, pelas suas conseqüências. Todos os capítulos de Um Estadista do Império, consagrados à obra jurídica de Nabuco de Araújo, às questões jurídicas em que interveio, revelam a mesma origem. Em A Intervenção Estrangeira durante a Revolta de 1893, Joaquim Nabuco é o advogado, espontâneo e apaixonado, de Augusto de Castilho, nobre e bravo comandante da corveta portuguesa que acolhera os revoltosos. Das páginas da defesa, surge, pelo seu constante pendor para as questões doutrinárias, notável capítulo de nossa história diplomática. O advogado do militar português defendera-o perante o Conselho de Guerra, realçando o dever de humanidade envolvido no dever de impedir o massacre dos vencidos; Joaquim Nabuco retoma a defesa, em ponto de vista mais estritamente jurídico, fundando-a no texto das leis e das regras do Direito Internacional, e justificando a atitude do comandante Castilho como conseqüência das restrições que as esquadras estrangeiras haviam posto, inicialmente, às atividades dos revoltosos.
Sua intuição jurídica leva-o a proclamar, em 1884, há 53 anos, noção hoje triunfante, incluída solenemente na Constituição alemã de 1919 como grande afirmação renovadora, mas de que, naquele tempo, bem poucos se aperceberiam: “A propriedade não tem só direitos, tem também deveres.”
O espírito público exclui nele o formalismo, que sufoca tantas vezes o espírito jurídico. E associa, equilibradas e harmônicas, tendências diversas, até opostas. Ao seu patriotismo vimos aliado o sentimento humano. Nenhum brasileiro de seu tempo fora, tão fundamente, penetrado da cultura e da influência estrangeiras. Tudo o afastaria de nós: a permanência prolongada em países de civilização mais adiantada, a influência que exerceram sobre seu espírito, o refinamento do bom gosto, as preocupações prediletas. Vestia-se em alfaiate de Londres. Do seu estilo se disse, e disse ele mesmo, que a frase era, insensivelmente, uma tradução livre e nada seria mais fácil que vertê-la outra vez para o francês.
Em tais condições, a sua verificação – “nós não somos um povo exclusivamente branco” – poderia levá-lo, como tem levado, menos justificadamente, tantos outros, a ocultar, ou a desapreciar, as suas origens. Ele as exaltou, e amou, sempre, com desvelo.
Atentai em como se referia ao Brasil distante e à gente do Brasil. Em carta a seu amigo, Sr. Tobias Monteiro, confessava, certa vez, a preocupação de trazer para cá os filhos, pois na adolescência – observava – se forma, decisivamente, o sentimento nacional.
Dentre tantas expansões do mesmo sentimento, esparsas em sua obra, nas várias fases de sua vida, quero recordar duas: uma, dos 35 anos de idade, quando escrevia da Europa ao Barão Homem de Melo, “eu creio-me mesmo literalmente doente de saudades; o meu coração está aí”; outra, quase um quarto de século mais tarde, no fastígio da embaixada de Washington, em carta a Machado de Assis, depois de referir o seu próprio êxito em várias universidades americanas: “Estou muito contente pelo Brasil com todas essas honras, que são principalmente feitas ao País. Mas que saudades! Que falta da nossa gente, que toda me esqueceu... Parece-me impossível que eu não tenha a fortuna de voltar para aí proximamente.”
Nessa saudade enternecida do Brasil, há uma expressão de bondade, e por igual, enlevo pela bondade de nossa gente. Como ele a sentia, como teve razão – e como se vingou, antecipadamente, de certos maldosos! – ao dizer:
Se alguma cousa observei no estudo do nosso passado é quanto são fúteis as nossas tentativas para deprimir, e como sempre vinga a generosidade... Infeliz de quem entre nós não tem outro talento ou outro gosto senão o de abater! A nossa natureza está voltada à indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a benevolência ilimitada de todos... Em nossa história não haverá nunca Inferno, nem sequer Purgatório.
Essa virtude nossa, essa nossa virtude balsâmica, força do nosso organismo, expressão de sua vitalidade pujante, restringe a repercussão das nossas divergências, sufoca odiosidades nascentes e tem permitido que saiamos de todas as lutas, até das mais sangrentas, capazes de reconciliação cordial, sem memória do conflito travado. Assim, do próprio regime da escravidão nem nos ficou ressaibo do preconceito de raça. Em todas as nossas contendas políticas, tem nos valido essa predisposição – que, até agora, as paixões mais acirradas não conseguiram alterar. Oxalá cada um de nós conte sempre, como ele disse, com a benevolência ilimitada de todos! Comecemos, para isso, por não regatear, a todos os outros, a mesma bondade sem restrição.
De todo o Brasil, Nabuco destaca Pernambuco, seu torrão natal. Recordava-o, como vimos, ao escolher Maciel Monteiro para patrono desta Cadeira; e em carta a Machado de Assis declarava que votaria em Arthur Orlando para a Academia – preferindo (senti toda a doçura da preocupação) uma vaga, talvez a sua própria, que ao novo acadêmico permitisse falar de Pernambuco largamente.
Nem todo o Pernambuco absorve o melhor do seu afeto; ali mais o prende a fazenda em que passou a meninice. Reconhecei a profundeza do afeto nestas palavras do homem maduro, viajado pela melhor parte do mundo, habituado aos grandes centros de maior cultura: “O verdadeiro eu saído das mãos de Deus ficara preso ao canto da terra onde repousa aquela que me iniciou na vida – Massangana.”
Outros desaprendem, ou fingem desaprender, a língua, e desestimam e maldizem o País, sua gente, seus hábitos, após breve estadia em terras estrangeiras. Ele afervora, cada vez mais, os sentimentos patrióticos, ao deslumbrar-se com o cenário dos países de maior cultura.
Era, aliás, de quilate bem diverso do comum entre nós o patriotismo de Nabuco. Forrava-se do que nos Estados Unidos se tem chamado “autocriticismo nacional”, aquela difícil análise, desassombrada e meticulosa, das próprias falhas e dos próprios erros. Disse ele mesmo que o patriotismo consiste, muitas vezes, em colocar-nos na situação de estrangeiro, e em julgar o nosso País como se nada tivéssemos de comum com ele. Homem de sentimento e de pensamento, pode ser, assim, a um tempo, “homem da Nação e do mundo”, como reconheceu Gustavo Le Bon. Concebe a soberania nacional com a orientação do Direito moderno, de que vos falei, mostrando, ainda aí, o adiantamento das suas idéias jurídicas. Em A Intrevenção Estrangeira durante a Revolta de 1893 influi, decerto, o afeto pessoal por Saldanha da Gama; todavia, o que prepondera é o zelo da dignidade nacional. Nabuco preferira ver sacrificado o princípio da autoridade, não o da soberania. Por isso mesmo que era “homem da Nação e do mundo”, sua conceituação da soberania não envolvia sacrifício do espírito de humanidade. Teve a coragem de aplaudir a intervenção da Inglaterra na repressão do tráfico dos negros, lançando, em palavras lapidares, advertência inesquecível: “A soberania nacional deve conter-se nos seus limites; não é ato de soberania nacional o roubo de estrangeiros para o cativeiro.”
Sentindo e amando o Brasil, ninguém o serviu mais devotadamente; ninguém o pôs mais alto em todos os atos e pensamentos.
O que lhe determina e orienta a ação política é o desejo de servir o Brasil, pode mesmo dizer-se, em frase sua – o desejo de realizar “alguma cousa em que o País se reveja com a consciência satisfeita”. Não lhe basta a própria satisfação íntima do dever cumprido. Ao que aspira é a contentar a sua gente, o seu País, de sorte que este se reveja em sua obra – “com a consciência satisfeita”.
Seu devotamento ao serviço do Brasil culminou em a defesa da questão da Guiana. Apaixonou-se pela causa. Afirmou nela a índole de advogado, de que vos falava há pouco. Tratou-a com o entusiasmo habitual: confessou que nada sabia fazer sem o concurso da própria convicção e do seu entusiasmo. E desse caso, pôde dizer: “Fiz tudo o que me era possível, empenhando no meu trabalho toda a minha vida, dando-lhe todo o meu amor.”
Conta-se que, alguma vez, ao levantar-se da mesa de um banquete, se aproximara do secretário, para revelar, jubiloso, que lhe havia ocorrido novo e valioso argumento em favor dos direitos do Brasil. Esse era o pensamento constante, de todas as horas. As memórias apresentadas versam, longa, detalhada, exaustivamente, as questões de Direito, de História, de Geografia, envolvidas no pleito – tudo escrito por ele, de seu próprio punho.
Surpreende-o a decisão arbitral. Poderia considerá-la a vitória. Não o quis. Ela o faz sofrer, se me não engano, por não haver proporcionado a seu País a satisfação inteira, que lhe desejaria dar. Aceita-a, porém, com a serenidade e o respeito do advogado, ante o pronunciamento do juiz que considera errado.
Então, e sempre, é o servidor apaixonado do Brasil – no Parlamento, nos livros, na diplomacia. Toda a sua obra literária parecia-lhe ação. Era, verdadeiramente, ação política.
Porque foi sempre política a grande influência da sua vida, e, como disse, acima de todas, a do espírito inglês. Em sua primeira estadia na América, não se achava – ainda ele o disse – sob a influência americana; perdurava a influência européia. As instituições políticas e judiciárias da Inglaterra deram-lhe a impressão de “mais dignidade, mais seriedade, mais respeitabilidade”, que as dos Estados Unidos. Essa impressão sobreleva a da eficiência do governo – a que nem alude, talvez porque, nesse tempo, não se lhe revelara ainda tal preocupação.
Antes mesmo de sentir a sedução do povo americano, percebera que o centro da ação diplomática do Brasil deveria ser em Washington. No Balmaceda aludia já ao “ímã do Continente, suspenso, ao que parece, no Capitólio de Washington”.
Por fim, na missão de Washington, em que encontra a morte, deu ao Pan-americanismo o melhor da sua inteligência, de sua cultura, de seu entusiasmo.
José Veríssimo, reconhecendo-lhe o espírito “fundamentalmente político e profundamente literário”, considerou “documento vivo dessa dualidade fecunda” sua grande obra – Um Estadista do Império.
Truncada, pela proclamação da República, sua vida pública, que parecia fadada às maiores ascensões, a História o atrai. Segue, então, o conselho que Renan lhe dera na mocidade, dedicando-se a estudos históricos. Lamentaria que o houvesse seguido tarde demais. Era um derivativo para a sua vocação política. Procura na História “um campo em que ainda poderia cultivar a política”, sem o perigo – acrescentava – “de faltar à indulgência, que é a caridade do espírito, nem à tolerância, que é a forma de justiça a que posso atingir”. Pode dizer-se que lhe faltaria imparcialidade. O político não poderia ser narrador indiferente. Todavia, a emoção, nunca dissimulada, resulta do julgamento dos homens e dos fatos. Não o precede. Por isso mesmo, não o conturba. Revela-lhe a sinceridade, a profundeza das convicções.
A acuidade de compreensão, a capacidade de generalizar, a serenidade do julgamento e da crítica, o gosto de perquirir as causas profundas, os efeitos, a repercussão e as relações íntimas dos fatos; o interesse pelas tendências e pelos rumos da vida coletiva; a aguda visão psicológica e sociológica; last not the least, o patriotismo amoroso e esclarecido – fazem-no o nosso maior historiador político e, ao mesmo tempo, o nosso mais profundo pensador político.
A simples impulso de ternura filial atribuiu Um Estadista do Império: o desejo de salvar os papéis dos arquivos do terceiro Senador Nabuco.
Não seria, porém, só isso. A obra constitui a biografia do senador, enquadrada no que o autor chamava “uma espécie de vista lateral de sua época”. A influência de Nabuco de Araújo não fora a mais extensa, nem a mais profunda, no cenário político de seu tempo; talvez em torno dele se não pudesse fazer a história do Segundo Império. Sua figura era, todavia, das mais características da mentalidade então dominante. O prestígio que consegue – apesar de não atingir à chefia do governo, mesmo quando seu partido é chamado ao poder –, a obra que realiza dão medida fiel do funcionamento do regime, significam-lhe a índole, profundamente legal e jurídica. Um grande jurista, por sua cultura, pela clareza de sua visão, se tornaria voz oracular, padrão de todos os valores contemporâneos.
Em torno dele não ficara em foco – acentuou Joaquim Nabuco, desde logo – toda a “grande era brasileira”, pois esta pertencia ao imperador, e seria preciso, para tanto, escrever-lhe a vida. Mas nenhuma outra figura significaria tão bem a mentalidade mais elevada, dominante na vida pública do Brasil, sob o reinado de D. Pedro II. Joaquim Nabuco soube fazer a análise percuciente de cada episódio, de cada personalidade, e coordenar todos num conjunto magnífico. A começar pelo 7 de Abril. A esse tempo, o senador Nabuco era aluno do primeiro ano da Faculdade de Olinda. Joaquim Nabuco traça, porém, como ninguém traçara, as linhas características do movimento triunfante, naquela data. Vê nele o “desquite amigável entre o imperador e a Nação”. Destaca as decepções: fora uma journée de dupes. Mostra como o imperador, e não a Assembléia, era quem compreendia mais claramente a necessidade e o papel do Exército. Observa então:
Ao liberalismo brasileiro a eficiência militar do Exército pareceu sempre secundária; a sua função primordial, consagrada em 7 de abril e em 15 de novembro, é a grande função cívica libertadora.
Não sei se Joaquim Nabuco se ateve, como o próprio pai, à máxima que destacou: “não podemos esmerilhar uma política nos fatos passados da história” em Um Estadista do Império, e em Balmaceda colhe ensinamentos dos fatos passados, e deles tira as linhas que traça para o futuro. Todos também havemos de colher, aí, lição preciosa, nas vicissitudes de nossa vida pública. A cada passo, ressaltam da exposição conceitos gerais, a própria filosofia da História. Alguns deles terão voltado, hão de voltar ainda, uma vez e mais de uma, a nosso espírito. Por exemplo, em tempos próximos, foi freqüentemente repetido este: “A fatalidade das revoluções é que sem os exaltados não é possível fazê-las e com eles é impossível governar.”
E há outros muitos. Recordarei apenas mais um:
Como sempre acontece com os movimentos que tomam o País de surpresa e vão além do que se desejava, as esperanças tornaram-se excessivas, os espíritos abalados pelo choque exaltaram-se, e deu-se então este fato que não é nada singular nas revoluções: os mais ardentes revolucionários tiveram de voltar, a toda pressão e sob a inspiração do momento, a máquina para trás, para impedi-la de precipitar-se com a velocidade adquirida.
Do 7 de Abril e da Regência, o ensinamento que Joaquim Nabuco recolhe é o da necessidade da Monarquia – acentuando que, assim, se desprendera o sentimento liberal, da aspiração republicana, “que em teoria é a gradação mais forte daquele sentimento, mas que na prática sul-americana o exclui”. Observa, ao mesmo tempo, que a convicção da necessidade da Monarquia se foi apagando, até no imperador, através do “funcionamento automático das instituições livres”.
Começara a escrever essa obra, com irreprimível saudade do passado, nos dias, de agitação e incerteza, da Revolta da Esquadra, em 93. Toda ela comprova o asserto, através de 40 anos de política imperial. O jogo normal do sistema monárquico fez, paradoxalmente, esquecer a necessidade de manter o sistema, e desapreçar as condições, de que dependia, pelos homens que o praticavam. Tal como, nas longas estradas modernas, os condutores dos veículos de grande velocidade, devido à segurança do tráfego, descuram a direção e sofrem catástrofes imprevistas.
De Um Estadista do Império resulta, acaso, conclusão imprevista sobre os erros da Monarquia, seu desenraizamento progressivo – perdendo o apoio das classes armadas, do clero, dos grandes proprietários rurais. Nabuco mesmo disse que o Reinado era o imperador e não lhe dissimula certas faltas. No “desapego ao trono”, que caracteriza a política do imperador, está o motivo da divergência do Senador Nabuco de Araújo, convencido da indispensabilidade da instituição monárquica e da necessidade de ampará-la. Está aí, também, o dado próprio de Joaquim Nabuco, que ele tem a nobreza de calar.
O que o seduz, e decide de sua atitude, é, porém, a dignidade pessoal da Monarquia, a índole do regime, a correspondência do governo, que realiza, com o nosso estado social e político. Quando escreve que mesmo a Inglaterra – a Inglaterra, onde melhor sentira o prestígio das instituições políticas – poderia invejar-nos o Conselho de Estado Imperial, está revelando uma das determinantes profundas do seu amor à Monarquia.
Não o move paixão partidária. Característica da ação política de Joaquim Nabuco é, precisamente, seu desinteresse, seu alheamento, sua indiferença pelas competições partidárias.
Poderia considerar-se paradoxal – em verdade, não o era, resultava antes da própria elevação de seu espírito e de certa feição mesquinha da nossa vida pública – esse afastamento cada vez maior das tricas da politicalha, das lutas dos partidos e, até, das questões de forma de governo. Aí repontaria o ensinamento colhido na vida do pai – que evidenciava a estreiteza dos quadros partidários para conter homens dominados por princípios e idéias.
Na primeira página do magnífico opúsculo O Abolicionismo, em 1883, reaparece a frase de Evaristo da Veiga, que desejava a Pátria respeitada “não tanto pelas instituições deste ou daquele molde, como pela prova real de que essas instituições favorecem, ou, quando menos, não contrariam a liberdade e desenvolvimento da Nação”.
Reconheceu Nabuco que “os partidos compõem-se quase dos mesmos elementos nacionais, os mesmos indivíduos passam de um para outro, e em geral as secções políticas de um país têm o mesmo nível, como o líquido em vasos que se comunicam”. Mais tarde, nos últimos dias do Império, escrevia a seu grande e devotado amigo José Mariano: “Nas idéias sou intransigente; quanto aos partidos não me presto mais a galvanizá-los. Estão mortos e bem mortos.” Logo a seguir, estas palavras, em que vibra significativa inquietação: “Estou em uma verdadeira evolução, na qual os partidos me causam o efeito de sombras impalpáveis e o povo de uma imensa chaga aberta em nosso território infeliz.”
Ao termo de sua longa vida pública, revela alguma coisa mais que desinteresse, em pequena frase, talvez intraduzível, de Pensées Détachées: Les partis ne sont, en général, que des partis-pris – quelquefois inconscients. Emilio Faguet aplaudiu vivamente, no fundo e na forma, esse conceito. E acrescentou:
Ninguém seria de um partido, de nenhum partido, se se deixasse guiar pela reflexão. Não é preciso ser de um partido, é preciso ter uma opinião. De resto, é tão diferente que, se se mantém a mesma opinião, é preciso, sem cessar, mudar de partido, e se se permanece no mesmo partido, é preciso mudar de opinião constantemente.
Essa verdade torna-se cada vez mais verdadeira. Por toda a parte, são hoje tão numerosas e complexas as questões sobre que se pronunciam os partidos que nenhum consegue a adesão plena de seus membros a todas as soluções recomendadas. Em cada partido, sobre determinadas questões, há partidários que divergem de sua orientação geral e da dos seus correligionários; adversários de outros partidos que se conciliam com adeptos destes. Tendem, assim, os partidos a caracterizar-se, não pelas idéias, mas pelos chefes. Tornam-se pessoais. Até certo ponto, justificadamente, porque, afinal, a realização das mais belas idéias e dos mais belos programas depende dos homens, a que venha a caber. Mas partidos pessoais, partidos de formação burocrática (como se têm chamado os que resultam apenas de exigências das leis eleitorais) não podem provocar entusiasmo, nem conseguir dedicação dos que preferem as idéias e as doutrinas, dos que não têm ânimo de condená-las por provirem de homens de outra corrente política, nem de recusar a colaboração de gente honrada, no interesse coletivo, somente por arregimentar-se sob orientação de outro chefe.
Assim já era ao tempo do Império. Nem admira que, por isso mesmo, os quadros partidários, estreitos e convencionais, não comportassem Joaquim Nabuco. A todas as questões ele antepunha o Abolicionismo. Não admitia que sobre esta pudesse haver discriminações partidárias. Indiferente às competições dos grupos, preferiu manter as mesmas opiniões e os mesmos ideais.
Quanto à forma de governo, inclinara-se, inicialmente, para a República. Ainda sobre esse ponto, temos-lhe a confissão: “Sem as influências negativas da imaginação, eu teria sido talvez levado até à República, como tantos que depois se arrependeram; aquelas influências me contiveram somente porque me desviaram ou me distraíram da política.” E o que o fez monárquico foi o “contágio do espírito inglês”.
Em verdade, como acentuou, o espírito político foi cedendo “gradualmente lugar ao interesse religioso e ao interesse literário, até ficar reduzido quase somente ao que tem de comum com eles – sem aliás desaparecer, antes aumentando, a parte que tomava na sorte do País”.
A influência política e “a influência aristocrática, artística, sumptuária da vida” equilibraram-se nele. Mostrou-o, reconhecendo que, por isso, não fora republicano, como tantos outros, em Portugal e no Brasil – Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, Castro Alves e Quintino Bocaiúva –, revoltados “contra o caráter inestético da instituição do Reinado”.
Pretende André Gide que o valor de um escritor está ligado à sua força revolucionária, ou melhor, à sua força de oposição. Para ele, um grande escritor, um grande artista, é, essencialmente, anticonformista. Navega contra a corrente. É o caso de Bossuet, de Chauteaubriand, de Claudel, de Molière, de Voltaire, de Hugo, de Dante, de Cervantes, de Ibsen, de Shakespeare...
Homem público, pela fatalidade de todas as circunstâncias que o rodearam desde a mocidade, Joaquim Nabuco deveria, ainda pelo império de todas elas, tornar-se profundamente conservador. Inclina-se, entretanto, a grandes reformas de alta inspiração doutrinária. É, pelo menos, anticonformista – contrário, dobradamente, à tendência geral do seu tempo, sobre que se adianta, por vezes, dezenas de anos. Sentia em si mesmo o germe revolucionário, inoculado pelas leituras francesas dos 20 anos – e confessava que só lhe impediam o desenvolvimento a impressão mundana, aristocrática, da vida, a impressão artística da Itália e a impressão literária de Paris. Acentuava, porém, que essas influências só agiram desviando-o ou distraindo-o da política. E só a influência decorrente do espírito inglês tornou-o, definitivamente, “um monárquico de razão e de sentimento”.
Pernambucano, amoroso das tradições pernambucanas, é impossível que não houvesse recebido alguma coisa do indômito espírito de rebeldia, característico da sua gente.
Reconhecia, em suma, que, em nosso ambiente, sujeito apenas a suas influências peculiares, sem o corretivo de outros elementos, ficaria dominado pelo espírito revolucionário, reinante geralmente entre nós. Assim, do mesmo passo, justificaria o fato, assinalado por Justiniano José da Rocha, na frase que certa vez recordou: “O espírito revolucionário ligou-se à existência da Nação brasileira, como o verme, desde que ela nasce, se liga à fruta que apodrece antes de passar pela madureza.”
Afasta-o dos revolucionários certa incompatibilidade moral profunda. Em seu conceito, o impulso revolucionário partia quase sempre da inveja. A doçura congênita e a formação jurídica do espírito, o gosto da harmonia e da ordem, deveriam influir nessa condenação, induzindo-o a soluções rigorosamente legais. Na campanha abolicionista, declarava, desde logo, que a escravidão deveria ser suprimida mediante “uma lei que tenha os requisitos externos e internos de todas as outras”. Contudo, sua bondade fundamental e seu espírito de justiça levam-no, do mesmo passo, a procurar remover, em cada caso, os próprios fundamentos, os motivos da inveja, que poderiam determinar o impulso revolucionário. Lembrai-vos de que já via o povo como imensa chaga aberta. Seu reclamo de reformas traduz, precisamente, o empenho de evitar explosões revolucionárias.
No manifesto do Partido Liberal de 69, Nabuco de Araújo lançara a apóstrofe famosa: “Reforma ou Revolução!” Mas logo acrescentava: “A reforma para conjurar a Revolução!... Não há que hesitar na escolha: a reforma! E o País será salvo.” Também Joaquim Nabuco reclama grandes reformas institucionais. A começar pelo Abolicionismo. Depois – a Federação; a Federação, com a Monarquia, ou sem ela. Joaquim Nabuco apontara os males da República Federativa. Sobrevindo a República, apesar de realizar a Federação, ao passo que Rui Barbosa e Saraiva, por isso mesmo, logo a aceitaram, o seu sentimento monárquico como que se afervora. Ninguém poderia alegar melhor motivo para aderir à República. Ele, porém, se retrai, não por incompatibilidade com a forma de governo, mas pelo receio de que recaíssemos no regime da ditadura, especialmente da ditadura militar, por aversão ao despotismo. Sempre acreditou que, entre nós, este, “quando se manifestasse, levaria tudo de raso pela completa falta de resistência”.
Por fim, quando se lhe desvanece o receio, não se torna republicano. Abstrai, como a princípio, do problema da forma de governo. Em suma, observa a recomendação do próprio monarca a Rio Branco: “Sirva o seu país.”
Nas últimas páginas de Um Estadista do Império, formula conjecturas sobre a atitude de seu pai em face da República – como se se quisesse inspirar-lhe no exemplo. Considera, então, que “passar de monarquista a republicano era assumir uma personalidade estranha”; mas concluía: “Uma coisa é certa: sob a República, a compreensão dos seus deveres de cidadão, de sua lealdade para com a Pátria, não mudara, nem tão-pouco o seu caráter; sua benevolência, sua equidade, sua tolerância para com todos, será a mesma.”
Infenso sempre à desordem e ao despotismo, Joaquim Nabuco, em certo sentido, e até certo ponto, pode considerar-se um revolucionário. No sentido do profundo pensador contemporâneo, para quem a revolução não é a barricada, nem a violência, mas um estado de espírito. Por três estados de espírito passam sucessivamente os homens em cada coletividade: o tradicional, o racionalista, o místico. No primeiro, conforme o mesmo pensador, se organizam as nações. Esse era o estado de espírito de nossa coletividade ao tempo de Nabuco, que já se encontrava, porém, na fase racionalista. Ele punha a vida ao serviço das idéias. Destacou-se um contraste impressionante: o homem medieval revoltava-se contra o senhor feudal que, na sua cavalgada, lhe destruía as plantações; hoje o cidadão que recebe uma pisadela insurge-se, não apenas contra quem o pisou, mas “contra a arquitetura total de um universo em que há homens que pisam outros”.
Também “o homem medieval se irritava contra os abusos de um regime, o moderno contra os usos, isto é, contra o próprio regime”. A política torna-se, quase exclusivamente, política de idéias, e Joaquim Nabuco, intelectual e racionalista, sente falta de idéias nos partidos políticos, de que se desinteressa. Por elas os abandona, como ainda agora víamos, e por elas lida sempre apaixonadamente, não apenas contra os abusos de um regime, mas contra o próprio regime. Ele é, assim, nesse sentido, um verdadeiro revolucionário, sem violência nem barricada, atido ainda a certo espírito tradicionalista. Além disso, todas as suas concepções e atitudes políticas sofrem a influência atenuadora dos seus próprios sentimentos. O grande racionalista é também um profundo emotivo. Ele não o dissimula.
Nem sei de escritor nosso que haja revelado, tão profunda e sinceramente, através da obra literária, sua própria personalidade, sua própria formação moral.
Nenhum se confessou com tanta candura e humildade, sem sacrificar a sobriedade perfeita da expressão, sem apagar a sua dignidade, a sua distinção pessoal. Por isso mesmo, nenhum livro nosso se pode comparar a Minha Formação; nenhum desprende, como ele, o doce perfume interior das almas bem formadas.
Esse contraste aviva-se em face de seus sucessores na Academia. Ao narrar os episódios políticos em que esteve envolvido, ao explicar suas atitudes, Dantas Barreto tem sempre o empenho de afirmar e comprovar sua independência, sua retidão, seu zelo do interesse público. Gregório Fonseca permanece, quase sempre, impessoal e distante, envolto na sedução do milagre grego. Joaquim Nabuco não se contenta com as razões de ordem política e de interesse coletivo, às suas constantes razões de ordem doutrinária acrescenta as da sua ternura e da sua emoção.
A irradiação, suave e envolvente, dessa grande personalidade prolonga-se na palavra de discípulos – como Graça Aranha; transfunde-se na obra, impregnada de encantadora ternura filial, em que ressurge a própria ternura dele mesmo – que a Sra. Carolina Nabuco vai realizando; perdura na recordação de colaboradores, alguns dos quais atingiram ao maior renome nos círculos jurídicos mundiais, como o professor Lapradelle.
Assim, perdura em nossa admiração – estou em dizer, ainda para os que o não tratamos pessoalmente, em nossa saudade.
Os que o vimos, alguma vez, nunca lhe esqueceremos a figura magnífica, dominadora, a nobre cabeça coberta já de cabelos brancos; nem perderemos a sensação de seu olhar, sereno e profundo, o olhar magnético dos grandes oradores, envolvente das multidões, e parecendo destacar em meio delas cada um dos que as formam...
Mesmo dos homens de mais alta e culta inteligência, de melhor produção intelectual, de mais fecunda e benéfica ação política e social, queremos hoje conhecer os sentimentos pessoais, queremos julgá-los, sabendo alguma coisa do que eram, ou do que são. Daí, todas as biografias, toda a publicidade, por vezes indiscreta, dos homens – e até das mulheres – célebres de ontem e de hoje, ou em torno deles. Não é somente curiosidade; é, também, desejo de compreender. Quantas vezes esse desejo acarreta decepções penosas! Quantas vezes o homem célebre se revela mesquinho e defeituoso! Entretanto, que fortuna incomparável quando, no grande homem, ressurge o homem de carne e osso, revestido dos atributos da virtude e da sedução pessoal que somente pelo trato imediato e direto se podem sentir!
Na carta humilde, dirigida a sua filha, que apareceu no prefácio da biografia, por ela escrita, dizia Joaquim Nabuco que não merecia admiração e perguntava se mereceria amor.
Hoje, todos o admiramos e amamos. Por que o amamos? Talvez, principalmente, por essa virtude, em que apontava o traço característico da carreira, da existência, da ação, do próprio pai, a virtude que, por coincidência amarga, mais freqüentemente falta aos homens de inteligência – bondade intelectual. Também, pelo cunho intelectual de sua personalidade, pela capacidade de compreender e de amar, pelos altos objetivos e, até, por certa infelicidade, de que nunca se queixou, e parecia não reconhecer, da sua vida pública, inacabada no Império e na República, não o levando às posições supremas a que deveria chegar.
Lamentava Joaquim Nabuco não se ter feito uma cópia, ou mesmo um borrão do pai. No entanto, nele apreciamos o que havia percebido em seu próprio pai – a harmonia visível da estrutura mental e moral, manifestada por uma serenidade e uma doçura sem iguais. Tudo nos faz votar-lhe, não só a admiração, que suporia não merecer, mas também o amor, que da sua própria filha apenas pretendia.
Dantas Barreto
Ao prover à sucessão difícil de Joaquim Nabuco, a Academia – como ele próprio, segundo confessou, ao nomear Maciel Monteiro patrono de sua Cadeira – teria preferido, em Dantas Barreto – o pernambucano.
Ele o era, bem caracterizadamente; governara até, com zelo e eficiência, a terra natal. Antes de governador de Estado, fora Ministro da Guerra. Homem de governo, mereceria vossa estima. Disse Renan, a propósito da candidatura de um ministro à Academia Francesa: Je ne puis m’empêcher d’être reconnaissant à ceux qui se donnent la peine de nous gouverner. Quando elegestes Dantas Barreto, a tarefa se tornara ainda mais penosa, nos dias difíceis que atravessávamos...
Era ele, porém, sobretudo, o general de prestígio, para quem se voltavam certas esperanças, em momento político agitado.
O movimento nacionalista, despertado por Olavo Bilac, tivera como expressão inicial a obrigatoriedade do serviço militar. O Exército assumia situação destacada, polarizava as energias. Tanto mais quanto, como observou, com razão, André Siegfried, nos países latino-americanos, é o Exército a única força social organizada.
Povos de educação política deficiente sonharam sempre com o bom tirano. Nessa aspiração vibrava, não raro, o espírito revolucionário, de que vos falei. Hoje, o sonho empolgou outros povos, que se não tinham por destituídos de educação política.
Desiludidos pelas vacilações e fraquezas de vários governos, desejosos de um governo forte, aspiramos a um governo militar, acaso a um ditador militar. Elevamos, de novo, à Presidência da República, um general, que despertara a esperança dessa realização. Dantas Barreto, militar também ele, seu amigo e colaborador, vem a ser dos que lhe negariam os predicados de energia. A seus olhos se verificaria, ainda uma vez, a feição peculiar do malsinado militarismo sul-americano, que André Siegfried soube destacar: empossado no governo, o militar cerca-se de civis, são estes que verdadeiramente governam e, sentindo-se poderosos, mais se inclinam a abusar do poder. Dantas Barreto, atacando fortemente o governo de seu companheiro de armas, queria exatamente que ele agisse, por si só, sem subordinação a exigências de mandões políticos.
Então, Dantas Barreto desperta novas esperanças, parecendo capaz de se não submeter a tais injunções. O que se queria, afinal, era apenas essa emancipação – do chefe do governo, e de toda a Nação.
Contrasta vivamente a feição da sua personalidade política com a de Joaquim Nabuco.
Vive noutra época, com outra mentalidade, bem diversa, acaso antagônica, à de Joaquim Nabuco. Acreditava na ditadura. O mal, que vê no País, é o “espírito de indisciplina”, desde a proclamação da República até 1904, só se tendo feito sentir a ação do governo durante a presidência do Marechal Floriano.
No amigo e companheiro de armas, candidato à Presidência da República em 1910, reconhecia falta de predicados “para os misteres do governo civil”, e apontava, como solução mais conveniente, “para os destinos da República”, fazê-lo ditador. Não vos surpreendais. Logo esclarecia: “Os desregramentos que praticou esse homem como presidente constitucional, não os tentaria sequer numa ditadura, mesmo apoiada em grandes elementos de força.”
De Joaquim Nabuco, foram liberais as fórmulas e os rumos políticos. Nada lhe mereceu mais constante repulsa e condenação mais veemente que a ditadura, a ditadura militarista especialmente. O que o afastou da República, por muitos anos, foi, já vos disse, a suspeita, ou o temor, de que o novo regime se identificasse com o despotismo. Exaltava a doçura. Acreditava-lhe na força; disse-a a maior das forças que agem no mundo, realizando, por toda a parte, mais que a violência. Amava a indulgência, a tolerância, a bondade. De tal sorte que distinguiu a mentira, inspirada pela baixeza, da mentira que pressupõe ternura e bondade, dizendo, sem se excluir da regra absoluta, que “Cada um de nós usa, através da vida, uma máscara, que ninguém pode levantar e que somente diante de Deus somos obrigados a retirar”. Recordai o episódio, narrado em Minha Formação, da carta em que Renan lhe agradecia a oferta de um exemplar do volume de versos, em francês – Amour et Dieu – publicado em plena adolescência, e dizia-os excelentes, com harmonia, sentimento profundo, facilidade cheia de graça. Depois de transcrever a carta, Joaquim Nabuco transcreveu a página de Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse, em que o mesmo Renan se desvanecia de não haver praticado uma só mentira, exceto, ressalvava, as oficiosas e de polidez. “Um poeta, por exemplo, apresenta os seus versos. É preciso dizer que são admiráveis, porque sem isso seria dizer que eles não têm valor e fazer uma injúria mortal a um homem que teve a intenção de vos fazer uma civilidade.” Nabuco revela, assim, o desvalor do elogio que lhe fora feito, e procura, sorridente, acautelar “o talento que se estréia contra essa perigosa eutrapelia literária”.
Nabuco deseja a ordem, o equilíbrio, a harmonia das forças sociais. Seu espírito revolucionário, se o tinha, era da feição que procurei definir.
Poderíamos dizer de Dantas Barreto o que Alberto Vandal escreveu de Sieyès: Chose grave pour un homme qui aspirait à conduire ses semblables, il manquait essentiellemente de bonne humeur.
Carlos de Laet comparou-o com malícia a Caio Júlio César, acentuando analogias que os aproximam. Mas não lhe poderia apontar o que Ferrero assinalou em César: o verdadeiro espírito revolucionário, o que cria, e faz do grande romano um criador, de espírito alegre, sereno, senhor de si, confiante em todas as coisas. Talvez mais grave ainda: faltava-lhe capacidade de dissimular; ele não teria a máscara, de que falava Nabuco – ou, pelo menos, não a toleraria. Faltava-lhe, de todo, espírito artístico, capacidade de artifício. É certo que escreveu A Condessa Hermínia, peça de teatro fantasiosa e convencional, em que o pintor Frederico morre em cena numa golfada de hemoptise. Mas é um produto da mocidade. Depois, o que há, em seus escritos, é somente forte expansão de sinceridade viril. Nenhum vestígio da arte, profundamente feminina, de edulcorar a verdade. Diz as coisas como são, ou como as vê, sem nenhuma preocupação, nem mesmo de forma literária.
Vede, por exemplo, como se insurge contra a orientação do ensino militar, nas palavras que Carlos de Laet aqui mesmo lhe repetiu – referindo-se a oficiais que considerava “cientistas apreciáveis, conhecedores de todo o movimento filosófico da França e da Alemanha, de Descartes e Immanuel Kant, de Gotlieb Fichte e Augusto Comte, mas em grande parte adversários do Exército a quem deviam educação e tudo”.
Dois livros, de simples narrativa – crônica minuciosa, personalíssima, por vezes apaixonada, de fatos da política nacional, Conspirações e Comentários –, um livro sobre a campanha de Canudos, mais interessante que os outros, destacam-lhe as fortes qualidades pessoais: sinceridade desassombrada e rude, mesmo no julgamento de amigos e camaradas; condenação veemente das trincas da politicalha; zelo ardoroso da coisa pública.
Gregório Fonseca
Ao empossar-se desta Cadeira, Gregório Fonseca evocou o armarinho da cidade natal, à margem do Jacuí, “rio da sua saudade”, em que, aos 15 anos de idade, fora caixeiro. Recordou que, já então, amava os livros, admirava os poetas. E contou que, certo dia, à hora da sesta, supondo deserta a loja, recitava sonetos de Olavo Bilac quando o patrão o ouviu e despediu-o do serviço. Então, Gregório Fonseca – ainda o disse – foi ser soldado. Outro talvez se apartasse, desde logo, definitivamente, da Poesia e da Arte. Ele, não. Dedicou-se à carreira das armas, penetrou-lhe segredos, galgou postos, recusou posições mais vantajosas e repousadas – preferindo sempre a sua farda modesta. Sempre, contudo, e cada vez mais, à hora da sesta, e ainda em outras, volvia aos livros preferidos e recitava, ou fazia, versos.
Vai, porém, sentindo, desde então, ou vai se lhe formando o sentimento da incompatibilidade entre a Arte e a vida.
Liga-se a Aníbal Teófilo na Escola Militar de Porto Alegre. Publica um volume de poesias – Templo sem Deuses. Mais tarde, em começos do século, transfere-se para o Rio. Aproxima-se dos mais brilhantes escritores do tempo, na Sociedade dos Homens de Letras. Entre eles está Olavo Bilac, de quem se torna, como diria o próprio Bilac, “um dos mais queridos amigos, um irmão bem-amado, em cujo espírito, em cujo coração sempre encontrou, nos mais duros dias da vida, conselho e consolo, energia e repouso”.
Novas dificuldades lhe provêm, no entanto, da persistência no culto fervoroso da Arte. Devotava-se, por igual, aos deveres militares; mas é bem significativo que, para censurar-lhe a fidelidade e a lealdade a certo chefe militar, o Ministro da Guerra lhe houvesse lançado esta exprobação: “Você é um poeta!”
Teria razão o ministro. Por esse fundamento, decerto, é Gregório Fonseca preterido, e vê, pela segunda vez, o pendor para as Letras trancar-lhe a carreira iniciada. Reforma-se no Exército. Depois, a Academia o acolhe.
Talvez nunca haja passado por esta Casa alguém mais fiel e devotado à arte pura, mais humilde, e mais fervoroso, na prática do seu culto. À Arte atribui alguma coisa de divino. É “o único fenômeno ainda divinizável”; “pelo infinito desconhecido que idealiza, a Arte pode ser também uma religião”. Pode ser, não: é uma religião. Considera-a religião, de que cabe o pontifical – “aos senhores dos mistérios do culto – aos artistas”. Quanto aos mais, dizia: “Os crentes estáticos em oração deviam contentar-se, perpetuamente, com o suave qualificativo de artísticos.”
Inclui-se nesta categoria, e confessa: “As minhas supremas aspirações estéticas atingiram ao limite: amando a Arte, servindo-a com fé convicta, que se aproxima à idolatria, sem jamais a profanar, fazendo-a.”
Lamentava que a Arte fosse “um culto sem organização ritual”. Não a concebe através da vida, ou ligada à vida atual. Evoca-a sempre, nas criações da Mitologia, nas divindades gregas e romanas, nos monumentos clássicos.
Como Joaquim Nabuco se diz – reiteradamente se diz! – apenas um cultor da Arte, um devoto, humilde e obscuro. Joaquim Nabuco reconhecia que não nascera artista, não tendo recebido “da Arte senão a aspiração por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o vácuo de inspiração que falta”.
Gregório Fonseca contenta-se com admirar. Sente em si mesmo uma analogia com Joaquim Nabuco na capacidade de admirar. Melhor diria – no prazer de admirar e de aplaudir. Nabuco definira: a felicidade é a admiração. Rara e nobre virtude essa, em verdade, sintomática de inteligência e de bondade, daquela “bondade intelectual” por ele exalçada. Um e outro sentiriam que a malquerença e a maledicência resultam, quase sempre, de uma espécie de daltonismo intelectual ou de incompreensão parcial. Em cada obra, em cada criatura humana, motivos de crítica e reprovação coexistem com os de apreço e aplausos. Há quem prefira, ou só perceba, os motivos de censura. Mas há quem tenha a fortuna de sentir melhor os que despertam a admiração e o afeto. Gregório Fonseca, como Joaquim Nabuco, era destes. Sabia destacar, preferia destacar, a parcela boa de cada indivíduo. Excedia-se no louvor cordial e no amparo generoso. Humberto de Campos pode dizer, com razão, que o seu elogio cabia em poucas palavras: Gregório, o bom.
A Arte foi-lhe, sempre, o sonho puro do adolescente das margens do Jacuí. Colocava-a acima da Ciência. “A Ciência”, dizia ele, “tem sempre algo de provisório, sujeita ao progresso e à transmutação; a Arte é definitiva; a obra-prima acabada pelo artista de gênio torna-se imutável.” Vede bem: o que prefere, em suma, é a obra individual. Poucas são, relativamente, as obras de arte que se podem considerar eternas; e em face dessas, também eternas há outras tantas obras de ciência. A obra de arte é, porém, individual. O homem de ciência vive, apenas, um momento da vida continuada, ascendente, da humanidade. Sua descoberta, sua teoria incorporam-se ao patrimônio da humanidade; outras descobertas, outras teorias, a completam, desenvolvem, corrigem, substituem. Outros homens de ciência o excedem. Sobem-lhe aos ombros e vão mais alto. Ficam, apenas, os marcos dessa ascensão, assinalando o esforço de cada um, como parcelas de uma soma infindável. A Ciência é, em suma, a própria vida; dela amparo, reflexo, expressão. É a obra coletiva, eterna e absorvente.
Mas por isso mesmo Gregório Fonseca prefere a Arte, a Arte como ele a queria fazer, recatada, pura, sonhadora.
Lírico impenitente, ele é um individualista, interessado, ou apaixonado, só pela obra individual. O seu empenho é distanciar-se da realidade. Lamenta, ainda, a vitória de Roma sobre a Grécia; a Arte que admira, e ama, é a Arte grega. Imagina e descreve, segundo sua imaginação, “os frescos inumeráveis dos Propileus”, os “painéis evocadores da história de Ática”, pelo “pincel sugestivo de Polignoto”. E proclama: “Avassala-me infinita saudade pela Grécia maravilhosa.” Repete o conceito de Renan: os gregos foram os verdadeiros inventores da Beleza.
A sedução de Atenas é, afirma, a sedução da inteligência e da cultura. Basta, para explicá-la, a observação de Richet: há 25 séculos, aquela pequena cidade de 10 mil cidadãos livres (contando além disso, 10 mil mulheres, 10 mil escravos, 10 mil estrangeiros) produziu, no decurso de cem anos, Fídias, Praxíteles, Míron, Sócrates, Platão, Xenofonte, Tucídides, Péricles, Euclides, Tales, Arquimedes, Ésquilo, Sófocles, Eurípides, Aristófanes, isto é, “os mais belos gênios que iluminam a humanidade”, ao passo que, se se tomarem, em outro século, os homens eminentes de uma cidade moderna, da mesma população, como Maubeuge, ou Sedan, ou San Remo, haverá de que rir, ou talvez de que chorar...
Não poderia ocorrer, entretanto, por simples coincidência casual, toda essa floração magnífica, expansão radiosa de individualidades dominadoras; resultaria, necessariamente, de causas profundas, de ordem geral.
Na Arte grega, nascente, se aponta o reflexo do instinto da liberdade, do amor do progresso, do sentimento humano que revolucionou a Escultura, pela movimentação das figuras, e pelo sorriso a iluminar-lhes as faces. Na Arte grega começa a exprimir-se a vida, a vida interior.
Arrastado pela sua fantasia, Gregório Fonseca cultua nela, antes de tudo, entidades místicas. Reconhecia que “os gregos poderiam ter dito que a Arte é a forma”; e acrescentava: “Assim conceituando, afirmavam também que a expressão perfeita em Arte é sempre de origem estética, e não técnica, pois só expressamos com glória e beleza o que profundamente sentimos, com amor.”
Ao amor atribuía a inspiração artística. A Arte seria “uma hipóstase do amor”. Em Arte – esclarecia, com ressaibo de ironia, bem raro na sua palavra – “o matrimônio é a pianola do amor; nas mais belas árias que executa, transparece o mecanismo da lei humana, sopitando instintos de emanação divina”. Noutro ensaio, vê-lo-eis filiando a Arte ao sentimento de luta. Não teria em mente nossa própria Arte – só e sempre alude à Arte grega, em que preponderam, desencontrados e fatais, os dois grandes temas heróicos – o Amor e a Luta. Dois grandes temas – ou afinal um só, porque no amor há sempre luta, ainda quando não transponha os refolhos íntimos dos amorosos. A luta e o amor traduzem a vida; são, afinal, toda a vida. Em nossa Arte, apresentam-se reduzidas e efêmeras a inspiração e a influência do amor, tanto como da batalha. Talvez, ainda aí, reponte uma tara do regime de escravidão: na constância dele, seria o amor, segundo o conceito de um estudioso bem orientado, em certo sentido, ou até certo ponto, apenas depravação sexual. Faltaram-nos os salões em que se espiritualizaria. Por outro lado, ainda a submissão escravagista anulou o preço da luta. Não soubemos amar, nem lutar. Nossa Literatura refletiu, quase sempre, impulsos meramente sexuais, namoricos de salão ou de janela, intrigas ou maledicências em que se esgotou a nossa combatividade medíocre. O amor, que La Rochefoucauld somente nos romances teria encontrado, o grande amor que pode ser a inspiração suprema da Arte, nem se encontra também, salvo raríssima exceção, em nossos romances.
Um historiador austero e reputado afirmou: o amor data do século XII. Isto é, tem apenas 700 ou 800 anos... Entenda-se, porém: trata-se do amor “cortês”, à moda da corte dos príncipes; o amor baseado no respeito à dama, culto religioso, que leva ao devotamento.
O outro é duas ou três vezes mais antigo. Só este os gregos conheceram. Eros, em latim Cupido, é o desejo, o instinto do sexo, sem respeito nem devotamento. Só este aparece quase sempre em nossos romances – e em nossa vida... É o episódio efêmero, da ligação ao rompimento; não raro, mera criação de fantasia, não vivida.
Será porque, como observou Wells, o amor não se descreve, mas sim, e apenas, algumas de suas conseqüências? Nas páginas, que nos restam, de Gregório Fonseca, nem isso – nem uma, nem outra espécie de amor: porque da vida real, da sua própria vida, não há traço notável.
O que ele cultua, afinal, e ama, é a beleza, a beleza eterna e imortal – quer dizer, sem vida. Na sua preferência de Roma sobre a Grécia estava o sentimento da verdade, assinalada por Gobineau: os romanos não se arrecearam de reproduzir a fealdade, porque se puseram à procura da realidade. Figuravam negros e personagens disformes; amavam o trivial; foram grosseiros. Tudo isso era a vida.
Para Gregório Fonseca, não era assim a Arte; para ele, “a mais perfeita das artes”, “a unigênita soberana da Arte”, era a Poesia – em que se equilibram “os termos componentes de beleza – idéia e forma”, preponderando a idéia, ou concepção: “O sentimento é a base do pensar poético.” Considerava “o Parnasianismo, requintado e vazio, se existisse, uma aberração artística”. Elevava a Poesia a uma “montanha sagrada”; mesmo os que não ascendem aos seus cimos, mesmo os que, como dizia, “não saibam transformar em luz, em poesia, a chama vívida que intensamente os incendeia” – mesmo esses “transmutam a existência para um universo simbólico de pensamento e de sonho, onde gira a terra que habitam, povoada unicamente de realidade sedutora que imaginam”.
Deveria ser a Poesia a vocação de Gregório Fonseca – e ele a tentou, inicialmente, como vos disse. Somente na Poesia teria expansão todo o seu helenismo, todo o seu lirismo de individualista apaixonado e terno, toda a sua aspiração ansiosa da beleza distante e inatingível, imorredoura. Temeroso, porém, como verdadeiro crente da religião pagã, nem se anima a publicar os versos, que certamente faria, e somente lhe conhecemos páginas em prosa. Dos versos da juventude, nada resta.
Em seu entender, “o objeto moral da Arte confunde-se com o objetivo estético – é exclusivamente o Belo”. O Belo, subentende-se – o Belo eterno, não o Belo efêmero, que, no entanto, merece mais ser amado intensamente, por isso mesmo que é efêmero. A beleza viva e palpitante, transitória, próxima – em que sentimos a repercussão do nosso amor; que mais amamos precisamente por sabermos que se há de esvair; que podemos envolver no olhar enternecido –, a beleza que enche e doira a vida – essa não inspira a arte de Gregório Fonseca.
Ele abstrai, assim, da vida, que se lhe depara feia e triste, e até de todo o interesse social. Não há, em seu livro, página que inspire, ou em que vibre. Gregório Fonseca é o suave imaginativo, o contemplativo de um mundo de ilusões – que persiste em manter-se fora e acima da realidade. “A Arte é sempre a realidade dentro da ilusão e do sonho.” Em sua obra literária, não penetra, senão bem raro, o rumor da vida, da vida contemporânea, ou a emoção pessoal, a não ser de seu próprio sonho.
Ainda nesse aspecto, os três ocupantes desta mesma Cadeira acham-se em vivo contraste. Joaquim Nabuco desenvolve, na obra literária, os ideais por que viveu, os fundamentos de sua atividade política. Dantas Barreto narra, apenas, episódios de que participou. Gregório Fonseca evoca um mundo distante, descreve e anima estátuas gregas, que não vira, como se as tivesse diante dos olhos. Vive a vida interior, de sonho e fantasia; e paralela, mas bem separadamente, transcorre a sua vida, dominada por preocupações imediatas, de interesse social.
Seu livro póstumo – Heroísmo e Arte – compreende três conferências – “Ciúme dos Deuses”, “A Estética das Batalhas”, “Arte”; em todas elas ressurgem, a cada passo, Apolo e Dioniso, Fausto e Prometeu, Calibã e Ariel, D. Juan e Ashverus.
É o eterno contraste da vida e da fantasia, que ele sentira esmagadoramente, e formara para sempre, na última hora passada no armarinho à margem do Jacuí... Das duas concepções da vida – a apolínea e a dionisíaca – de que Nietzsche acentuou os contras – alimenta a primeira.
Estéticas das Batalhas
Numa de suas conferências – “A Estética das Batalhas” – se mostra, todavia, que a preocupação de arte, dominante no espírito de Gregório Fonseca, não sufocara, por completo, a influência daquelas outras, que procuraria afastar.
O título é o mesmo de um estudo de Robert de la Sizeranne; o mesmo assunto – e tais coincidências poderiam levar a suposições maliciosas. Diverge, porém, profundamente a orientação, apresentam-se diametralmente opostas as conclusões.
Nos primeiros anos do século, sob a ameaça constante do conflito internacional, que se não travava, pois o mundo gozava já de trinta anos contínuos de paz, Sizeranne acentuava o desinteresse crescente dos artistas pela guerra. Parecia-lhe que a aparelhagem cada vez mais científica do combate, o papel cada vez mais intelectual do combatente haviam secado as fontes de inspiração do pintor, ao mesmo tempo que aprofundavam as do psicólogo e do romancista. Remontava ao combate antigo, assinalando o que tinha de escultural: os combatentes, quase nus, mostravam o tronco, os braços, as pernas; as armas eram acessórios perfeitamente estéticos. A Arte grega enobrecera essa luta, quase sempre duelo singular. Os escultores modernos não podem representar batalhas; a pólvora afasta os lutadores. Para os pintores, tornou-se favorável a circunstância; permitiu-lhes apresentar a variedade na unidade. Viram na guerra a mêlée, ainda quando em realidade não ocorresse. A pintura antiga mostrava, na guerra, a beleza – a beleza das baionetas brilhantes, dos uniformes multicores, da fumaça dos canhões, dos cavalos árdegos, ajaezados ricamente. Depois, realça-se outra coisa: o sofrimento.
Chegava Sizeranne a considerar que a guerra antiga fora assim – realmente bela: não, dizia ele, não havia feridas horrorosas, porque os olhos dos artistas não as viram; não havia – acrescentava – interrogações pedantescas, como esta – por que a guerra?, que assaltaram, mais tarde, os homens que se não batiam por prazer, ou por profissão, mas por dever, sem alegria. Por outro lado, apareceu a natureza nas telas de batalha. Algumas eram verdadeiras paisagens, tanto quanto quadros de figuras.
Ocorreria indagar se também não existiriam essas paisagens que até certo tempo os pintores não viram... A resposta, deu-a talvez Lalo: as montanhas tornaram-se belas depois que fomos românticos.
Como quer que fosse, modificaram-se as condições e os aspectos das batalhas – separados por grandes distâncias os combatentes, o chefe de cada grupo, calmo e isolado, na retaguarda, sem colorido os uniformes, sem fumaça a pólvora. A pintura das batalhas tende, Sizeranne o reconheceu, a tornar-se variedade da paisagem, uma paisagem animada. Não mais poderia a pintura destacar o lado interessante da guerra. Talvez o pudesse a música...
Insistia, porém, Sizeranne, sobretudo, na condição psicológica do combatente; no que pensava – e só a Literatura, a Literatura psicológica e social, poderia revelar. Dessa Literatura resultava – concluía – não a admiração, que a Pintura despertava – mas o desgosto da guerra, o horror à guerra. E ainda bem. Se na Europa não havia guerra há 30 anos, era porque não mais se pintavam belos quadros de guerra...
O que Sizeranne destacou, portanto, foi a repercussão social da Arte. Gregório Fonseca, versando o mesmo tema, desatende a esse aspecto, e, ainda uma vez, alheia-se da repercussão social, ou política, de arte. Haviam decorrido vinte anos. Alongara-se de mais vinte anos o longo período de paz européia em que se apoiara Sizeranne. Sobreviera a maior guerra de todos os tempos: quatro anos de luta ferocíssima, milhões de mortos, milhões de cegos e deformados, e, acima de tudo, a mais profunda, a mais grave transformação social e política decorrendo imediatamente da guerra, subvertendo a estrutura das nações vencidas, tanto como das vencedoras.
Gregório Fonseca aborda o tema de que Sizeranne tratara vinte anos antes. Toma-o por motivo de arte pura. Artista – ou como preferia dizer-se “artístico” –, não esquecera sua farda, seus galões de militar, não sufocara de todo o espírito militar. Este leva-o a exaltar, ainda, a guerra. O louvor da guerra e da batalha não o faz artista; o soldado, que nele havia, inspira e sobrepuja o artista. Diz então:
O gérmen primitivo e fecundante, que deu ao gênio grego o poder de criar a Beleza, foi a batalha. O glorioso destino estético da Grécia é produto da vitória.
A batalha é, portanto, logicamente a mãe de todas as artes...
A vida real vinga-se do artista, impessoal e distante, talvez sem que ele mesmo o perceba. Domina-o, insensivelmente, nessa oportunidade, a inspiração de sua própria vida. Aquele Ministro da Guerra, que lhe dissera “Capitão, você é um poeta!”, poderia consolar-se e dizer-lhe, então: “Poeta! Você é um soldado!”
Sua conclusão é oposta à de Sizeranne: a batalha moderna – e falava depois da Guerra de 1914! – parece-lhe “fonte perene de inspiração da Arte”.
Todas as demais circunstâncias, que teriam influído no surto maravilhoso da Arte grega – o ambiente plácido e belo, a abundância de matéria agradável, e fácil de trabalhar, como o mármore, a filosofia racionalista, que levava a considerar puramente humanas as coisas humanas, o instinto de liberdade, o amor da novidade e do progresso, a emancipação do despotismo e das superstições –, tudo o que, segundo os críticos mais autorizados, teria proporcionado ao povo heleno as condições de desenvolvimento de sua arte, todas essas condições naturais, sociais e políticas, Gregório Fonseca as menospreza, para destacar e avultar somente o êxito bélico. Para ele, o glorioso destino estético da Grécia é produto da vitória. Não importa que o surto artístico se prolongasse além da derrota militar. Na frase de Reinach, “vencida e humilhada por Esparta, Atenas não cessou, por um instante, de ser a capital intelectual do helenismo: pode mesmo afirmar-se que, no século IV, sua realeza ainda se consolidou e estendeu”. Gregório Fonseca também o reconhece: “Atenas, vencida, humilhada, glorificou, orgulhosa, os triunfos passados...” Mesmo na Arte desse período, é ainda, segundo ele, a batalha que prevalece. Assim, para ele, a batalha é “a mãe de todas as artes”.
Não creio que lhe confirmassem a observação fatos ulteriores. Os salões franceses de pintura, dos anos imediatos à guerra de 914 a 18, povoaram-se de telas suaves – ninfas, águas paradas, retratos de chefes militares. Haveria o escrúpulo – ou o pudor? – de não tentar reproduzir a grande carnificina, em seus aspectos hediondos. Era preferível esquecer. Todos tinham desejo, e sentiam necessidade de esquecer.
Raros seriam os quadros como Mouvement de Troupe, de Pierre: soldados a pé, a cavalo, em caminhões, que atravessavam um povoado... Nenhum tão expressivo, em sua ironia amarga, como Les Vainqueurs, do Lerroux – nove figuras principais, oito soldados, com um oficial à frente, caminhando vagarosamente, em terreno acidentado, derreados, malvestidos, um ferido amparado por outro... Esses, os vencedores – imaginem-se os vencidos!
Em todo o caso, não será, creio eu, por falta de belos quadros de guerra, que reinará a paz no mundo. Nem a guerra deixará de proporcionar temas artísticos aos pintores. Raros pintores hão de, porém, animar-se a realçar, fantasiosamente, em quadros de guerra, a beleza, que tornaria atraente a guerra, e que na guerra moderna nenhum combatente percebe. Demais, ocorre uma circunstância nova: a guerra generaliza-se, envolve todos os homens, até as mulheres. Ninguém fica de fora, a observá-la serenamente. Todos participam dela, sofrem-lhe os horrores. Quem pode, agora, fazer os belos quadros de outrora? O sentimento coletivo, a orientação pacifista da sociedade moderna bastaria para excluí-los. A Arte, verdadeira e eterna, exprime, sempre, a mentalidade dominante no seu tempo. Não a orienta, nem domina; reflete-a, e dela só resulta, quando não artificiosa.
Ação social
Gregório Fonseca procurou, cuidadosamente, afastar da sua obra tudo o que não fosse culto fervoroso da arte pura. Mesmo, porém, no pequeno volume póstumo, Heroísmo e Arte, há um breve estudo, significativamente intitulado “Tigre”, sobre a personalidade de Clemenceau e uma conferência sobre Aníbal Teófilo, em que se revela a sedução das personalidades fortes, capazes de ação triunfante. No perfil do poeta morto, palpitam sentimentos afetivos profundos e intensos. Em “A Estética das Batalhas”, de que vos falei, percebe-se a influência da profissão militar, a sedução da luta, da força e da vitória.
Mas a profissão militar não acarreta unicamente o espírito bélico; inspira e desenvolve o zelo dos interesses da coletividade. Oficial do Exército, com o sentimento profundo da profissão militar no que tem de mais nobre, repontando até mesmo através de suas preocupações artísticas, Gregório Fonseca, velho admirador de Olavo Bilac, torna-se-lhe o melhor colaborador no movimento de alto e puro nacionalismo, de que foi pioneiro. Bilac reconheceu que “às horas difíceis de campanha, foram-lhe estímulo a palavra e o conselho” de Gregório Fonseca.
Em plena guerra européia, Olavo Bilac, Pedro Lessa, Miguel Calmon instituem a Liga de Defesa Nacional, e Gregório Fonseca está ao lado deles; por longo tempo se mantém entre os que lhe dão o calor de suas energias e de seu idealismo.
Cerca de um ano antes, Bilac, em São Paulo, na Faculdade de Direito, e na de Medicina, reclamara solenemente a instituição do serviço militar obrigatório. Pretendia substituir o Exército profissional pelo Exército que fosse a própria Nação em armas. Não faltou quem temesse um surto de militarismo. Bilac enfrenta a acusação, destruindo-a. No governo militar ficara letra morta a lei do sorteio.
A essa observação acrescentara:
Nunca fui, não sou, nem serei um militarista. E não tenho medo do militarismo político. O melhor meio para combater a possível supremacia da casta militar é justamente a militarização de todos os civis: a estratocracia é impossível, quando todos os cidadãos são soldados. Que é o serviço militar generalizado? É o triunfo completo da democracia; o nivelamento das classes; a escola da ordem, da disciplina, da coesão. O laboratório da dignidade própria e do patriotismo. É a instrução primária obrigatória; é a educação cívica obrigatória; é o asseio obrigatório, a higiene obrigatória, a regeneração muscular e psíquica obrigatória.
Quando regressa ao Rio, a oficialidade da guarnição presta-lhe homenagem do mais alto significado. Saúda-o o Capitão Gregório Fonseca, em nome de toda a oficialidade, perante o Ministro da Guerra, e demais chefes do Exército. Nem esse discurso de Gregório Fonseca, ditado pela mais alta inspiração patriótica a serviço da mais nobre das causas, figura no livro póstumo que abrange suas páginas principais.
Começa por apontar, como determinante primária do nosso mal-estar interno, “fria indiferença generalizada em mórbido desalento ante as coisas públicas”. Define a missão do Exército, mais que isso, afirma, em palavras claras e desassombradas, como se poderá reabilitá-lo perante a opinião:
No exercício exclusivo de magistratura enobrecedora que nos cabe como preparadores dos conscritos patrícios e no labor sagrado de fazer do Exército a grande escola de civismo em que se acrisole o amor à Pátria, se ensine o respeito à lei, e se infiltre a disciplina, está a segurança da reabilitação do Exército no conceito da Nação.
Impugna o nosso velho conceito de profissão militar, para recomendar a observância generalizada do “dever militar”. Recorda os episódios de nossa História, em que a intervenção do Exército ocorrera para atender a aspirações nacionais. Prega a obrigatoriedade do serviço militar, para extinguir o analfabetismo.
Dir-se-ia que o inspirava o exemplo de uma das mais nobres figuras militares contemporâneas. Em França, Liautey surgira na vida pública, quando Melchior de Vogüé fez publicar, na Revue des Deux Mondes, sob anonimato, seu estudo sobre “O papel social do oficial no serviço militar universal”. Todos os homens da geração nova colocavam em primeiro plano o dever social, e ninguém em melhor condição para exercer ação social que os 20 mil oficiais do Exército francês. Para isso seria preciso que se convencessem de seu papel de educadores, aprendessem a amar os seus homens e a conquistar-lhes a afeição. O serviço obrigatório seria o campo mais vasto de ação social.
Liautey, “animal de ação”, despreza as fórmulas administrativas; elas o tolhem, porém, e só nas colônias distantes encontra ambiente propício à expansão de sua energia criadora, organizando a colonização de Marrocos. Gregório Fonseca, bem distanciado desse modelo inatingível, consegue, na própria capital do País, no seio dos mais altos chefes militares, a consagração imediata das suas afirmações corajosas.
Ao responder-lhe à saudação, feita em nome do próprio Exército, Olavo Bilac assinala o triunfo definitivo da campanha, apenas iniciada.
Bilac, nosso maior poeta, era também um de nossos maiores oradores. Empolgava pela beleza da frase, pelo timbre de voz, pela emoção. Imagino o que teria sido, naquela noite, quando assentava os rumos de sua campanha, e via assegurada a vitória almejada.
Assinala o objetivo que tivera: mostrar “a fealdade da doença do tempo, a desmoralização de nossa gente, a fraqueza dos governos, o desvanecimento do entusiasmo, a falta de coragem e da fé”. Recorda que nascera entre a Batalha do Riachuelo e a de Tuiuti, o pai ausente na guerra; passara os quatro primeiros anos de meninice entre “sustos e esperanças, lágrimas e sonhos”; por fim, o “espetáculo de heroísmo, dominando a vida nacional e por muitos anos alimentando a altivez do povo, encheu e maravilhou” toda a sua adolescência...
Falando aos militares ali reunidos, não cala, todavia, uma restrição:
Se alguma vez diminuiu a minha admiração, se de algum modo me afastei de vós, foi porque, com tristeza, vi alguns de vós, arredados do nobre terreno e da augusta missão em que sempre devíeis honrar-nos e honrar o Brasil, preferirem, ao rude e magnífico sacrifício da vida militar, o fácil e grosseiro proveito do mando partidário e da pequena política das facções e das intrigas...
É horrível pensar que esta esplêndida construção de quatro séculos possa ser desmantelada pela inércia, pela ignorância, pela preguiça moral, pelo egoísmo!
Era a pregação do bom militarismo, feito do bom nacionalismo – não agressivo, mas defensivo; não louvaminheiro, mas crítico; não destruidor, mas construtivo, “filho do tradicionalismo”; não xenófobo, mas amigo do estrangeiro amigo; expressão e garantia da unidade indestrutível da pátria.
Não é o nacionalismo ameaçador, em que a Nação esmaga o cidadão; ao contrário, é o bom nacionalismo em que a Nação se fortalece pelo fortalecimento de cada cidadão. Um pensador contemporâneo, confessando que nunca fora nacionalista, mas nacional, acrescentou que isto significava sentir entusiasmo, sempre nascente, ante as duas dúzias de coisas de sua terra que estavam verdadeiramente bem e ódio inextinguível por tudo mais, que estava verdadeiramente mal. Olavo Bilac não revela outro entendimento do nacionalismo. Queria uma pátria “fortalecida pela beleza e pela esperança”. Pela beleza, não só de suas paisagens, mas também de suas obras, de sua gente sã e forte. Pela esperança do seu futuro, tranqüilo, fecundo, glorioso. Pela beleza – resultante da exclusão de todas as coisas feias, erradas e más. Pela esperança de que tais coisas se não reproduziriam... Esse, o sentido do seu nacionalismo, o grande e puro nacionalismo de Rio Branco, de Euclides da Cunha, de Pedro Lessa, de Gregório Fonseca.
Depois da Revolução de 30, avulta o movimento nacionalista. A terceira fase da mentalidade coletiva – a mística, de que vos falei, inclui-o entre as suas características. O nacionalismo penetra a nova Constituição política, torna-se-lhe um dos princípios fundamentais.
A mesma revolução leva Gregório Fonseca ao cargo de Secretário do Governo Provisório. Só quem conheça o ambiente, que tende a formar-se nos gabinetes e ante-salas dos ministros e dos chefes de governo – a multidão de solicitantes ou pretendentes, dissimulados em servidores amigos e desinteressados que os procura invadir, para esclarecer, aplaudir, apoiar, intrigar, caluniar –, só esse pode avaliar a firmeza esclarecida e serena, a atenção vigilante e continuada, o conhecimento dos homens, de suas virtudes e misérias, necessários para evitar a invasão e manter condições propícias ao trabalho profícuo.
Vale como índice da Revolução de 30 este pequeno fato: Gregório Fonseca foi secretário do Ditador. Aquele homem austero, temeroso, de bigode embranquecido fora da moda, de óculos, probo, polido, benigno, modesto, foi diretor da secretaria do chefe do governo revolucionário. Não esqueçais a influência desses colaboradores aparentemente secundários. Máxime em dias como aqueles. Ao tempo da Revolução Francesa, narram cronistas, certa mudança da linguagem corrente foi determinada por um notário, ao observar que vous era palavra plural, e, dirigida a uma só pessoa, significaria toi qui en vaux plusieurs, ofendendo, portanto, gravemente, a igualdade; como admitir que um homem valha vários outros? Por isso, sugeriu que se dissesse tu e não vós. Assim passaram a dizer os zelosos da igualdade humana. Em 90, com a República, chegamos, só então, ao vós. Adotamo-lo com dificuldade decorrente de complicações gramaticais. Daí não passamos. Parece mesmo que recuamos ao ressurgir o “V. Ex.a” cerimonioso. Gregório Fonseca, superintendendo os serviços do expediente do governo, terá zelado pelas boas tradições de nossa polidez. Outro talvez se inspirasse na advertência do notário francês de 93. Passaríamos do vós complicado ao tu íntimo e desabusado. Talvez Gregório Fonseca o tenha evitado. Em todo o caso, contribuiria, ao menos, para que assim não houvesse sido. E, a não ser nessa, em quantas outras coisas terá influído beneficamente sua aprimorada discrição e cortesia? Quanto lhe deveremos ao patriotismo forte, mas ordeiro e sereno?
Tratei-o muitas vezes, nesse cargo alto e difícil. Sempre o vi dedicado à função, discreto, leal, desambicioso, preocupado com os interesses nacionais.
Foi-lhe prêmio, por tais serviços, a nomeação de embaixador junto ao Vaticano.
O que o atraía ao posto diplomático não era o sentimento da vocação, que Cotegipe definira maliciosamente: “Ah! o senhor é diplomata? Então venha para cá, conversar com as meninas...” A diplomacia não é mais isso – a aptidão de conversar com as meninas. Junto ao Vaticano, então... Assim se abria, contudo, ao vosso companheiro, oportunidade de expandir plenamente sua forte vocação artística.
Ele iria, afinal, defrontar as maravilhas da Arte grega e romana, de que tão apaixonadamente falara sempre, em meio das quais vivera, por esforço de imaginação e de cultura, sua vida interior.
O misticismo artístico facilitaria plena expansão do misticismo religioso, da sua sentimentalidade represada, para realizar a obra sobre São Francisco de Assis, em que poria todo o fervor de crente e de artista.
O renascimento da inspiração greco-romana, nos versos de Teófilo Gautier, de Heredia, de Lecomte de Lisle, da Condessa de Noailles, de tantos outros poetas menores, durante a segunda metade do século, quando se extinguia o Romantismo, foi atribuído, por Charlye Clerc, em certos casos, ao desdém pelo Cristianismo, ao declínio da fé cristã. Não foi essa, todavia, a determinante do helenismo de Gregório Fonseca. Isenta das emoções da vida quotidiana, a arte de Gregório Fonseca nem lhe reflete os sentimentos religiosos: cantor pagão, apaixonado da Grécia pagã, era católico fervoroso, devoto de São Francisco de Assis, e de Frei Masseo de Marignan, humilde companheiro de Santo. Dentre outras, que Clerc apontou – a curiosidade, o diletantismo do pensamento, a aversão ao presente –, temos visto que influiu decisivamente esta última.
Gregório Fonseca não se faz um erudito, não empreende o estudo da língua grega, não viaja pelos lugares sagrados da Grécia distante. As condições da vida torturada não lhe permitiriam o pleno desenvolvimento do temperamento artístico. O armarinho à margem do Jacuí, o serviço militar, as funções de secretário do prefeito da cidade e do chefe do governo da Nação escravizam-no a encargos secundários. Olavo Bilac teria, porém, instilado no espírito do moço gaúcho imaginoso o sentimento da beleza grega.
Nas páginas da “Profissão de fé”, Bilac almejava lavrar “leve relicário de fino artista”. E afirmava:
Não quero o Zeus Capitolino,
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino
Com o camartelo.
Logo em seguida, confessava, entretanto, que preferia ver morrer tudo o que lhe era caro, a
Ver derribar do eterno sólio
O belo, e o som
Ouvir da queda do Acropólio
E do Partenon.
Para Olavo Bilac, não seria o helenismo, como para Teófilo Gautier, a alma da Poesia. Terá sido, contudo, Bilac quem inoculou, na sensibilidade do adolescente das margens do Jacuí, a sedução do “mistério grego”.
Transmuta-se, como dissera, “para um universo simbólico de pensamento e de sonho”, para outros mundos, e outros tempos. Ouve o clamor, que anuncia a morte de Pan; junta sua voz ao coro de lamentações e gemidos, que o brado de Tamo levantou no mar Egeu...
Liberta-se da realidade, que o esmaga, e, em plena fantasia, goza o íntimo, subtilíssimo encantamento espiritual reclamado por sua vocação artística.
Por fim, um belo dia, parece que o sonho invade a realidade. Vai tornar-se realidade o sonho. Gregório Fonseca pisará o solo de Atenas, tocará as velhas pedras dos monumentos, deterá sobre as estátuas seculares o olhar amortecido... É uma realização longamente esperada, longamente preparada, que vem a tempo. De súbito, o próprio sonho desfaz-se... Desfaz-se? ou, quem sabe? terá continuado ou se convertido em outra realidade, mais alta e mais bela...
Disse Buffon: La plupart des hommes meurent de chagrin.
Gregório Fonseca não morre de desgosto. Morre a ponto de efetivar suas velhas, recalcadas aspirações de artista. Serenamente, como sempre, sua alma de crente e de bom acolheria, com íntima alegria, a libertação definitiva da realidade, feia e triste, da vida terrena – que no culto da Arte pura procurara antecipar.