REVOLUÇÃO, REBELIÃO E GOLPES DE ESTADO
Se a violência não é o elemento histórico fundamental da vida brasileira, como o foi em outras partes, se as aspirações de tolerância predominam, se a mestiçagem abrandou as relações sociais, a verdade é que nunca tivemos uma Revolução. O terror e a força foram utilizados no começo para manter submissos índios e negros - ainda em julho de 1963 índios xicrins e canelas foram massacrados por fazendeiros e exploradores de terra -, e mais tarde para manter oprimido o povo ou derrotar suas aspirações.
O povo não se manifestou ao longo do processo histórico brasileiro com a brutalidade e a imaturidade de outros povos, e a incrueza relativa de nossa História é fruto dele, que não é um fantasma, como o vê a maioria dos políticos. Ele aprendeu sua língua, formou sua consciência nacional na História, promoveu a unidade nacional, que não é produto da colonização portuguesa, mas da Independência, defendeu a integridade territorial, educa seus filhos dentro de recursos muito escassos, prepara-os para a vida, e tem uma forte sensibilidade nacional, apesar dos sacrifícios que lhe impõe esta mesma minoria, que se horroriza diante de qualquer ideia de reformas básicas.
Comparativamente, o povo brasileiro, apesar de abandonado ou destratado pela sua liderança, não recorre aos bogotazos colombianos, às violências que no México e Bolívia caracterizaram o inconformismo de seus povos, ou às formas de bruteza que singularizam a vida de certas áreas dos Estados Unidos, como o linchamento no Sul, o gângster das cidades, os bandidos do Oeste, de certo modo similares aos nossos cangaceiros, as ferozes lutas raciais, nem tivemos uma rebelião tão banhada em sangue como a mexicana ou a de secessão nos Estados Unidos, que teve mais de meio milhão de mortos. Mas esta foi uma Revolução.
E o que é uma Revolução? Inicialmente se deve reconhecer que são muitos os nomes que caracterizam os vários aspectos da stasis, da exaltação, da exacerbação que conduz ao comportamento extravagante e anormal. Rebelião, insurreição, putsch, pronunciamento, coup d’état, revolução, são termos que exprimem vários conceitos. Rebelião, revolta, revolução, insurreição, golpe de Estado têm sido os nomes mais usados no Brasil; as três primeiras, para os movimentos armados de grupos sociais qualificados, como o foram a Farroupilha, a Liberal de Minas e São Paulo, a Praieira de Pernambuco. Rebelião e revolta e bernarda tinham sentido mais restritivo, eram consideradas sem base em princípios e sem objetivo de reforma. A revolução foi sempre mais qualificada, exatamente devido aos seus ideais. A menos qualificada era a insurreição, considerada de negros e escravos.
Todos os movimentos almejaram sempre a designação de revolução, a que se junta sempre um adjetivo qualificativo para dar-lhe historicidade. Já vimos, pela exposição anterior, que nenhum movimento armado no Brasil foi realmente uma Revolução. Porque toda Revolução é uma tentativa de salto no processo histórico e é mais ou menos violenta, e tanto mais quanto mais retardada for. É um instante cruento ou incruento, mas sempre violento de ultrapassagem do caminho histórico, e neste instante seus elementos essenciais são a mimese, isto é, a imitação, como explicou Arnold Toynbee, ou mesmo a emulação, e o retardamento. Ela sempre se refere a um momento anterior, e não ocorreria se não houvesse sempre o jogo prévio de forças ideológicas. Sempre influíram as ideias amadurecidas em outros ambientes históricos, e em todas as revoltas e rebeliões brasileiras, do fim do século XVIII ao XIX, os princípios das revoluções francesa e americana estiveram presentes.
As revoluções são violentas porque são sempre triunfos retardados de poderosas e novas forças sociais contra velhas e aferradas instituições que têm se oposto e dificultado essas novas expressões de vida. A obstrução, no Brasil, é mais que secular, o que faz crer que será sempre maior a pressão futura. O único movimento armado vitorioso no Brasil, o de 1930, não exprimia as novas forças do país, nem pretendia fazer alterações profundas. Mas aos poucos estas forças obtiveram alguns triunfos e um ajustamento social construtivo harmonizou umas e outras, sem maior ruptura com o passado. Outras vezes pequenas alterações foram fruto de ideias vencidas nos prélios armados, porque o processo histórico não pertence somente aos vencedores. No Império, as decisões importantes, especialmente a abolição do tráfico dos escravos, a extinção das tarifas especiais em 1844 e a não assinatura de tratados com as potências fortes, são obra de conservadores.
As colisões e antagonismos entre as forças renovadoras e a liderança arcaica foram sempre o aspecto político dominante no Brasil, e daí as monstruosidades sociais e educacionais que presenciamos. A ideia mais comum foi sempre aquela denunciada por Paula e Sousa, em 1831, na Câmara, e sempre seguida: “o regime novo tinha sempre as molas do regime velho”, o que se assemelha às palavras de Jesus: “Ninguém deita remendo de pano novo em vestido velho, porque semelhante remendo rompe o vestido e faz-se maior a ruptura. Nem se deita vinho novo em odres velhos; aliás rompem-se os odres e entorna-se o vinho e os odres estragam-se, mas deita-se vinho novo em odres novos e assim ambos se conservam.”
As reforminhas eleitorais eram a via inerte da caminhada brasileira. Nenhuma reforma foi completa, e a própria abolição não se concluiu com a reforma agrária, embora o retardamento tivesse impedido, na abolição da escravatura, a indenização aos proprietários, obrigados a ceder incondicionalmente. Como no Brasil os ajustamentos não predominam através das reformas, as revoltas, cruentas ou incruentas, se sucederam continuamente. As únicas reformas importantes - excetuado 1888 - datam de 1930, e por isso um movimento de caráter superficial, um plano de reforma liberal, transformou-se numa revolução, o começo da revolução industrial no Brasil. Mas como a Revolução é sempre uma Revelação, ou seja, a manifestação de uma verdade, temporária, embora, ela não se realiza pelo uso impróprio de seu nome.
Já reclamava Frei Caneca, em 1824, contra a facilidade com que no Brasil se acusava qualquer projeto popular de demagógico, pois, nesse caso, o Brasil inteiro era demagogo. E em 1848 Sales Torres Homem dizia que se trocavam irrisoriamente o nome às coisas: em nome da salvação do povo e da restauração democrática se destruía a democracia. Tudo isto sem nenhum ganho material proveitoso, sendo sempre difícil corresponder à magnitude da perda da liberdade.
Somente com Getúlio Vargas houve alguns ganhos materiais. Mas a luta entre o arcaísmo - dominante no processo histórico brasileiro pela não contemporaneidade de seus líderes, o que gera as monstruosidades da nossa vida e o futurismo que precipita as inovações, o fermento do farisaísmo brasileiro, representado especialmente pelo liberalismo desde o Império até hoje, não levedou, mas putrefez toda as esperanças de renovação. Na hora de extrema-unção, o Brasil tem vivido in extremis, a salvação liberal era o desvio e o atalho das reforminhas eleitorais, secundárias, com que imaginaram e imaginam se recuperar das derrotas nas urnas, enquanto os conservadores, no receio de perder o essencial, preferem sempre ceder, ainda que pouco, no encontro com o contemporâneo. Daí o apelo às formas, a conspirações e o domínio do golpe desde 1945.
No século XX o golpe de Estado se tornou o meio mais comum de ganhar ilegalmente o Poder. Legalmente, porque sem recurso ao povo, que se teme e por isso se tutela. É um dilema cruel, que Sir John Harrington resolveu assim nestes versos:
Treason doth never prosper; what’s the reason
For if it prosper, none dare call it treason.
Ou seja: A traição nunca prospera, e qual a razão? Porque, se ela prospera, ninguém ousa chamá-la de traição.
O golpe de Estado é a mera aquisição do Poder ou a substituição de uma casta por outra. Ele depende da conjugação de circunstâncias fortuitas, com uma liderança extremamente hábil para explorá-las. Mas exige estrategistas e táticos e só se faz com o apoio das Forças Armadas. É certo que um golpe pode não ser apenas o travadouro do instante acelerado da criação; ele pode transformar-se e promover o desenvolvimento. Mas o processo histórico brasileiro tem sido sempre retardado e não acelerado.
A metamorfose ainda demorará, embora o prazo histórico esteja se esgotando. Enquanto isso a tendência da facção da minoria dominante, derrotada nas urnas, tem sido recorrer ao golpe, seco e rápido, sem convulsão social e sangrenta, que poderia pôr a perder todos os seus objetivos. Outra facção, mais esclarecida, não se compõe de indutores cegos. Prefere conduzir, pelas urnas, a caminhada reformista, que pode transformar-se em Revolução. Quanto ao povo, este aprendeu que a sua arma é o voto e amarga no silêncio e na ironia a reviravolta dos vencedores transitórios, que nunca serão os triunfantes do futuro. A sabedoria do povo brasileiro é maior que a dos vencidos nas urnas.
(Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-cultural, 1965.)
TEORIA DA FALSIDADE
Precisamos saber o que é a falsificação, para depois sabermos como suspeitarmos que uma fonte foi falsificada. Princípios jurídicos e de crítica histórica bastam-nos para defini-la. A noção de falsificação não pode ser obtida a menos que se decomponha o fenômeno, isolando-o tanto quanto possível. Para isto é preciso estudar: a) o objeto da falsificação, isto é, o que se falsifica; b) o sujeito ativo autor da falsificação (quem falsifica); c) o sujeito passivo (destinatário) da falsificação; d) a causa da falsificação ou por que se falsifica; e) o modo da falsificação, ou como se falsifica; f) o meio da falsificação, ou com que se falsifica; g) o uso da falsificação, ou o que se faz com ela; h) o efeito da falsificação, ou o que dela se obtém.
O objeto da falsificação é provar alguma coisa. Trata-se de fornecer uma razão e formar um juízo para provar um fato como verdadeiro. O sujeito é sempre um impostor que tem capacidade não só técnica, mas funcional para procurar legitimar o falso. Daí a atenção especial que se deve dar aos empregados oficiais ou públicos, às partes judiciais, aos comerciantes desonestos, etc. A falsa prova pode determinar o falso juízo; quando ela é feita com este fim transforma-se em engano. Mas o engano não é falso juízo, isto é, erro, mas atividade dirigida a gerá-lo. Por isso, falsificação e engano são duas etapas da estrada que leva ao erro.
O engano, na terminologia civilista, chama-se dolo; esta palavra significa, em primeiro lugar, a intenção de provocar dano; um segundo significado é o do comportamento dirigido a gerar erro.
Os motivos da forjicação abrangem toda a escala dos instintos e emoções humanas, desde o amor ao ganho até o desejo de vingança, doações para assegurar privilégios ou imunidades, contratos para proteger títulos ou propriedades, cartas para obter vantagens pessoais ou frustrar oposição, anedotas e contos para exaltar ou danar reputações.
Do ponto de vista jurídico, as três causas principais da falsificação são: intenção de enganar (dolo ou causa decipiendi), a intenção do dano (causa nocendi), e a intenção de fraudar (causa fraudandi). As várias espécies de falsificação são: por supressão, alteração, ou contrafação. Estas são as falsificações externas ou materiais. Há ainda a considerar a falsificação interna, ideológica, a mentira, calúnia, injúria, ou sejam, alterações da verdade, problemas da crítica interna ou da fidedignidade. São as falsificações internas ou ideológicas.
Há, assim, que distinguir entre a falsidade externa e a falsidade interna, entre o verdadeiro externa e internamente, exprimindo-se o primeiro pelo adjetivo verídico e pelo substantivo veracidade, e o segundo pelo adjetivo genuíno e pelo substantivo genuinidade. O resultado da falsidade, que é usada para enganar, é o erro. Engano e erro estão em relação de causa e efeito. Conduzindo ao erro, a falsidade conduz também ao dano, ao abuso da credibilidade particular ou pública, à injúria, à trapaça, à fraude. Assim, pela sua capacidade em determinar o engano e a fraude, a falsidade adquire relevância jurídica e histórica, como um dano não só econômico, mas também moral, como um perigo social. O efeito jurídico da falsidade é a pena.
Pelo Código Filipino, de acordo com as disposições contidas nos títulos 52-54, eram punidas as falsificações de selos, escrituras e testemunhos falsos. No Código Criminal Brasileiro, de l6 de dezembro de 1830, tratava-se da falsidade no título IV, seção VI, cap. II, punindo-se a fabricação de qualquer escritura, papel ou assento falso, ou a introdução em qualquer escritura ou papel verdadeiro de alterações das quais resulte modificação do seu sentido. Punido era também o uso de escritura ou papel falso ou falsificado como se verdadeiro fosse, sabendo-se que não o era. Crime era também o fato de concorrer para a falsidade, ou como testemunha ou por qualquer outro modo. No capítulo III, tratava-se do perjúrio ou falso juramento em juízo. Pelo Código Penal de 1890, era também punida a falsificação de documentos - ou seja, sob o ponto de vista da proteção penal, de todo escrito juridicamente relevante - ou o seu uso. Para a configuração da figura delituosa era necessário, entretanto, que tivesse sido produzido um dano econômico. Foi só depois das cartas falsas atribuídas ao Sr. Artur Bernardes, com o decreto n. 4.780, de 1923 (cujos dispositivos ficaram depois como parte integrante da Consolidação das Leis Penais), que se passou a considerar o dano moral como caracterizando também a falsidade documental. Eram também punidos como modalidades de falsidade em juízo o falso testemunho, a falsa perícia e a denunciação caluniosa. Pelo Código Penal de 1940, as falsificações de que estamos tratando aqui são incluídas no título X, “Dos crimes contra a fé pública”, que é dividido em quatro capítulos, com as seguintes epígrafes: “Da moeda falsa”, “Da falsidade de títulos e outros papéis públicos”, “Da falsidade documental” e “De outras falsidades”. Os crimes de testemunho falso e denunciação caluniosa figuram entre os crimes contra a administração da justiça. O Código Penal de 1940 pune entre os crimes contra a fé publica os de falsificação de moeda (arts. 289-292), o da falsidade de títulos ou outros papéis públicos (arts. 293-295), o da falsidade documental (arts. 296-305) e o de outras falsidades (arts. 306-377).
Na Exposição de Motivos que justificou o novo Código Penal, Francisco Campos escrevia que “para dirimir as incertezas que atualmente oferece a identificação da falsidade ideológica” foi adotada uma fórmula suficientemente ampla e explícita: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou inserir ou fazer inserir nele declarações falsas ou diversas das que deviam ser escritas, com o fim de prejudicar um direito, criar uma obrigação, ou alterar a verdade dos fatos juridicamente relevantes.
A falsidade ideológica ou a mentira, por omissão ou reticência, por alteração ou por invenção se refere à narração do fato, com a qual se perturba tanto o processo jurídico, como o processo histórico e, consequentemente, a história.
A luta do direito e da história contra a falsidade resolve-se pela eliminação desta, pela confiscação da prova falsa e pela retificação do documento falso, pela restituição do documento à sua genuinidade.
A falsidade classifica-se em testemunhal e documental, ambas de estreito interesse histórico. Mas é a figura do falso documento que tem sofrido a mais profunda elaboração científica, e por isso apresenta na lei os contornos mais claros. No conceito de documento falso não se podem incluir apenas os escritos, mas os documentos artísticos, fotográficos, cinematográficos e fonográficos, capazes também de surpreendentes falsificações.
Todas estas formas de falsidade interessam igualmente ao historiador, que vê como os próprios documentos públicos, que têm por si a presunção de autênticos, podem ser falsos. É o exame crítico que decide o grau de genuinidade, como determina a fidelidade, em etapa posterior.
Por isso, documentos de origem jurídica não podem ser qualificados de autênticos ou fidedignos, antes de um severo exame crítico. Só a prova crítica decide e determina a nossa confiança e fé.
Como se chega a suspeitar da falsificação de uma fonte? É uma operação delicada, que exige engenhosidade e clarividência, que têm faltado a muitos historiadores. Desde que houve documentos públicos e falsários que os contrafizeram, diz João Pedro Ribeiro, não podia deixar de buscar-se meios para conhecer a mesma falsidade e demonstrá-la, por isso que ela cedia em prejuízo de alguém. Embora seja moderno o sistema que reduziu a um corpo as regras para distinguir os verdadeiros dos falsos documentos, sempre foram conhecidas mais ou menos as mesmas regras. E para não buscarmos exemplos mais remotos, bastará lembrarmo-nos de que a Igreja, desde a sua origem, usou certos princípios para distinguir as verdadeiras das falsas obras dos Apóstolos e dos padres; por eles se conheceram e foram proscritas outras, castigando os imperadores romanos os seus autores. Algumas dessas regras foram incluídas no Corpo dos Decretais, nos títulos de Fide instrumentorum e de Crimine falsi.
É preciso, assim, em primeiro lugar, considerar-se certas características do documento, como a matéria empregada, examinando se coincide a elaboração da fonte com a época e o lugar de sua elaboração. Frequentemente são as observações externas, tais como a letra, a particularidade ou multiplicidade das abreviaturas, o caráter da escrita, os ornamentos - detalhes que sabemos por intermédio da paleografia -, a natureza do papel, a substância da tinta, que nos indicam a pista. O estudo da linguagem de uma fonte pode também fornecer-nos luzes acerca de sua autenticidade ou falsidade. Devemos, ainda, examinar as características que se referem a contradições de conteúdo, que se encontram em oposição à época de que se quer fazer proceder a fonte, o lugar de que parece proceder, ou a pessoa que parece ser o seu autor.
Na maioria das vezes, com a descoberta dessas contradições só se tem um meio para suspeitar da autenticidade da fonte. Mas para se chegar à compreensão definitiva de que se trata realmente de uma falsificação é necessário traçar a história da fonte falsificada, esclarecer a personalidade de seu autor e verificar a finalidade da falsificação.
De modo geral, pode-se dizer que a descoberta das falsificações segue o mesmo caminho da criminalística.
EXEMPLOS DE FORJICAÇÃO
Entre os exemplos de contrafação oral, citam os tratadistas de metodologia algumas lendas de santos, anedotas, como a do ovo de Colombo, e ditos famosos, como a “Alea jacta est” de César e o “Credo quia absurdum” de Tertuliano, etc. Entre os casos mais famosos de forjicação escrita cita-se o da doação de Constantino, supostamente feita por este imperador ao papa Silvestre e seus sucessores, como sinal de gratidão pela sua conversão ao catolicismo. Aí Constantino teria não só reconhecido a supremacia espiritual dos pontífices romanos como também lhes teria dado a soberania temporal sobre Roma, parte da Itália e todas as províncias e regiões ocidentais. Esse documento foi forjado mais ou menos entre 750 e 800. Durante o século IX, Isidoro Mercator incluiu essa doação entre os chamados “Falsos Decretais” e ele foi aceito pela Igreja na época do papa Nicolau I (858-867).
Compunham-se de numerosas cartas papais forjadas, incluídas numa coleção de Direito Canônico, aparentando ser de autoria dos papas dos seis primeiros séculos. Foram aceitas como genuínas e usadas pelos canonistas durante a Idade Média. A demonstração da falsidade dos “Falsos Decretais” foi realizada por vários humanistas, mas é de Lorenzo Valla (1407-1457), com seu livro De falso credita et ementita Constantini donatione declamatio (composto em 1440 e publicado em 1517), a principal argumentação provando a falsidade da doação, sobre a qual repousava largamente o poder temporal dos papas. Seu trabalho é também um dos primeiros exemplos clássicos da crítica histórica na descoberta das forjicações e teve o efeito de um terremoto intelectual. Para os católicos, os “Falsos Decretais” tornaram-se suspeitos desde a metade do século XV e foram repudiados por todos os canonistas desde 1628.
Na história americana há exemplos maiores e menores de forjicação. Entre outros, os das cartas atribuídas a Washington, forjadas durante sua vida, com o fim de impugnar sua lealdade à causa revolucionária e de rebaixá-lo moralmente no conceito geral. A correspondência entre Abraham Lincoln e Anna Rutledge, publicada no Atlantic Monthly, em 1928, foi imediatamente declarada espúria pelos especialistas.
Assim também se apresenta o caso da carta de San Martín a Bolívar, escrita a 29 de agosto de 1822, primeiro publicada por Gabriel Lafond de Lurcy em 1884, considerada apócrifa por Vicente Lecuna, em vários estudos que comprometem as afirmações de Ricardo Levene.
Exemplo de forjicação de caráter político são os famosos Protocolos dos sábios de Sião, pelos quais se pretenderia estabelecer um plano maquiavélico de dominação mundial pelos judeus. Esse documento espúrio foi composto em 1902 por E. A. Nilus, com elementos de um folheto antibonapartista de M. Jolly, de 1865, e de um trabalho fantástico de H. Goedsche, publicado em 1898, bem como de outras fontes similares duvidosas. Serviu aos propósitos da polícia russa que, já anteriormente, em 1895, havia preparado um memorando para o Czar sobre o segredo do judaísmo. Várias traduções foram publicadas em diversas línguas, existindo versões em inglês, alemão, francês. No Brasil, Gustavo Barroso utilizou-se desse documento para sua propaganda antijudaica e integralista.
(Teoria da História do Brasil: introdução metodológica, 1949.)