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Joracy Camargo

CENÁRIO

A mesma porta da igreja dos atos anteriores. Ao subir o pano, MENDIGO e OUTRO estão na mesma situação de sempre.

OUTRO A história da sua vida é muito mais complicada do que a história da própria vida.

MENDIGO O senhor diz isso porque não conhece a história da vida... É muito mais simples do que a vida de qualquer de nós...

OUTRO Desconheço-a. Li muitos livros de história, mas em nenhum encontrei a história da vida...

MENDIGO Não é nos livros que se lê essa história. Há muita gente interessada em ocultá-la, para que os homens como o senhor suponham que a vida sempre foi como é e que há de ser eternamente assim.

OUTRO De que serve saber como foi se a gente não pode fazer voltar o passado?

MENDIGO Mas pode-se estabelecer um presente melhor. (Pausa).

OUTRO (Interessado) Conte-me lá como foi a vida...

MENDIGO Já lhe interessa?

OUTRO Interessa-me, contada pelo senhor... O senhor inventa umas coisas curiosíssimas...

MENDIGO A verdadeira vida é tão diferente desta que vivemos, que ao senhor parece invencionice minha...

OUTRO Se não é, parece mesmo...

MENDIGO O senhor não pensa.

OUTRO Penso.

MENDIGO Não pensa. O senhor pensa que pensa.

OUTRO É isso mesmo...

MENDIGO Se o senhor pensasse, chegaria às conclusões a que cheguei. Sabe quantos são os reinos da natureza.

OUTRO Ah! Isso eu sei! São três: animal, vegetal e mineral. (Contente) Viu?

MENDIGO Muito bem!... São as três vidas. E nenhuma delas escapou à tirania dos homens. Os animais foram atrelados às carroças dos homens; foram atrelados às carroças que lhes transportam a fortuna; os vegetais e minerais foram trancafiados nos armazéns para forçar a alta dos preços. E até a água, coitadinha, foi engarrafada!

OUTRO Que nos resta, então?

MENDIGO O ar, meu amigo, o ar. Mas se a vida continuar assim, eles conseguirão, por intermédio da ciência oficial, monopolizar esse elemento, e teremos de comprar balões de ar para viver, como os moribundos compram balões de oxigênio para prolongar a vida!

OUTRO Então, a ciência é inimiga do homem?

MENDIGO Não. O homem é que é inimigo do próprio homem. Inimigo de si mesmo. O inventor da guilhotina foi guilhotinado...

OUTRO Bem feito!

MENDIGO E tudo o mais tem sido assim. Todas as armas dos homens foram fornecidas pelas suas próprias vítimas. Os capitalistas não inventam nada. Aproveitam-se das invenções dos outros. Homens inúteis, que se utilizam de tudo!

OUTRO E de quem é a culpa, se todos temos o mesmo direito à vida?

Mendigo A culpa é dos egoístas, que sabem que a Natureza deu a todos a mesma vida, impondo as mesmas necessidades, e privam a maioria da satisfação dessas necessidades.

OUTRO Nesse caso não há remédio.

MENDIGO Há. Basta que se corrijam essas desigualdades por meio de nova organização.

OUTRO Mas não é justo que um "burro" tenha a mesma vida de um inteligente...

MÉDICO Mas se todos dependemos uns dos outros, se os inteligentes dependem dos "burros", é justo que aos "burros" seja dado o mesmo direito de viver. Se o carroceiro não der capim ao burro, não terá quem lhe puxe a carroça.

OUTRO Isso é diferente.

MENDIGO É o que lhe parece. O capitalista vive do povo consumidor. Mas se ele reduz o povo à miséria, o povo não poderá consumir.

OUTRO Explique melhor.

MENDIGO O operário produz na fábrica aquilo mesmo que terá de comprar para viver. O dono da fábrica armazena sua produção. Os preços sobem. O operário fica impossibilitado de comprar. A produção armazenada aumenta. O dono é obrigado a fechar a fábrica. O operário fica privado do que produziu, mas em compensação o dono da fábrica não tem quem lhe compre a produção. A vida pára. O operário morre às portas do armazém e o dono da fábrica morre dentro do armazém, como o avarento que morreu asfixiado dentro do próprio cofre... Entendeu?

OUTRO Entendi. Mas continuo a dizer que não há outro remédio.

MENDIGO Há. O senhor conhece a história do cavalo do inglês?

OUTRO Conheço. Quando o cavalo já estava quase habituado a viver sem comer, morreu...

MENDIGO Exatamente. Os próprios ingleses passaram a dizer que os fatos são obstinados. Ninguém pode lutar contra a força lenta e sutil dos fatos.

OUTRO Mas os fatos são sempre os mesmos.

MENDIGO Eis aí porque não adianta fugir à compressão dos fatos. A instituição da mentira, pelo primeiro mistificador da humanidade, só serviu para criar um regime de ilusões e tornar falsa a vida, como toda gente sabe e proclama. Todos se queixam de que a vida é falsa, todos lamentam os aborrecimentos causados pelo convencionalismo da vida, e anseiam o conforto que nos traz a verdade, mas ninguém tem coragem de violar o código do Bom Tom!...

OUTRO Que código é esse?

MENDIGO É a única lei social que a burguesia respeita... Obriga as pessoas a uma série de coisas horríveis que são feitas com muito prazer...

OUTRO Coisas de gente rica...

MENDIGO ... Que os pequenos burgueses procuram imitar para causar pena a quem lhes observe o ridículo. Os pequenos burgueses, aqueles que ainda estão morrendo de fome, vivem, exteriormente, como os ricos: comem as mesmas comidas, vestem as mesmas roupas, andam nos mesmos automóveis... dormem nas mesmas camas... os ricos à custa dos pobres, os pobres à custa da própria miséria... Como são ridículos os pequenos burgueses.

OUTRO Ridículos são os que têm vergonha de ser pobres.

MENDIGO Os pobres de luxo. Aqueles que empenham os móveis para ir ao Municipal. (Noutro tom) Meu amigo, quem não passa fome e tem roupinha melhor para vestir, finge que é rico. A humanidade se compõe de miseráveis, falsos ricos e ricos falsos. A pior classe é a dos falsos ricos. Sofrem mais do que os miseráveis... como nós... (Sorrindo) como o senhor... sofrem mas fingem que não sofrem. Daí a impressão de que não há necessidade de melhorar a vida. A grande maioria tem vergonha de dizer que sofre. O sofrimento para eles é coisa mesquinha. Preferem sofrer calados a ter de confessar a própria miséria, para vir um dia a deixar de sofrer.

OUTRO Isso é verdade... Conheci uma família que não tinha o que comer, mas, da minha casa, do lado, ouvia-se todas as manhãs barulho de garfo em prato de louça, como se estivessem batendo ovos para fazer fritada...

MENDIGO A grande maioria é assim. Mentem que são felizes e que não precisam de nada, precisando de tudo. Aqueles que mais concorrem para aumentar a minha fortuna, são os que pagam à inteligência o pesado tributo da burrice...

OUTRO Se todos pensassem como o senhor...

MENDIGO Todos pensam como eu, mas há uma coisa que atrapalha o pensamento...

OUTRO Que é?

MENDIGO O medo. Medo moral das coisas invisíveis. Os homens só têm medo daquilo que não vêem...

OUTRO Medo de Deus?

MENDIGO É. Ninguém cumpre o que Deus determinou pela palavra do Messias. Mas como o dinheiro resolve tudo, compram o perdão de Deus, por nosso intermédio.

OUTRO O que faz falta é uma religião perfeita.

MENDIGO Todas as religiões são perfeitas. Os homens é que são imperfeitos. Funde-se uma seita que forneça à hora da comunhão, ao invés da hóstia, um suculento bife com batatas, e veremos como não lhe faltarão adeptos.

OUTRO Eu garanto que iria comungar todos os dias...

MENDIGO Claro. Todos querem resultados imediatos. Entretanto, se todos os crentes refletissem um pouco no sério compromisso que assumem ao rezar um "Padre-Nosso", poucos seriam capazes de repetir aquelas palavras: "perdoai Senhor as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores..." Quem é que perdoa dívidas, "seu" Barata? As próprias religiões são intransigentes. O suicida não tem direito à missa...

OUTRO E o senhor acha que Deus concorda com isso?

MENDIGO Não tem outro remédio. Pois se os homens colocaram-se acima d’Ele, arrogando-se o direito de resolver sobre os casos omissos.

OUTRO Mas, afinal, quem é que fala em nome de Deus?

MENDIGO Todos, menos aqueles que obedecem cegamente. Que importa que tenham existido Buda, Confúcio, Sócrates e Platão? Se um dia convocassem um congresso de todas as igrejas para discutir os pontos controversos, acabariam por negar a existência de Deus...

OUTRO É por isso que se diz que sobre religião não se deve discutir.

[...]

(Deus lhe pague, 1932.)

 

A LEI GETÚLIO VARGAS

A "Lei Getúlio Vargas", cujo projeto foi apresentado pelo atual Presidente da República, em 1928, quando S. Exa. era um simples deputado do Rio Grande do Sul, constitui a primeira manifestação de suas idéias em relação aos intelectuais e artistas. Essa lei demonstra que. S. Exa. já naquela época, em que maior era a confusão a que aludimos na introdução deste livro, admitia entre as necessidades nacionais a moralização das relações entre artistas, autores e empresários, e, assim, a consente valorização dessas profissões artísticas, além do necessário desenvolvimento da arte dramática no Brasil. Prova ainda que, como político, estava a salvo de qualquer influência da mentalidade dominante, e revela o amigo dos intelectuais que, mais tarde, como Chefe do Governo, confirmaria a honestidade dos seus propósitos, estendendo as medidas de amparo, vantagens e regalias, a todas as classes incluídas no amplo setor da inteligência.

As intenções do sr. Getúlio Vargas foram, sem dúvida, as mais puras e visavam apenas à melhoria da situação de autores e artistas, quando se sabe que não o poderia mover nenhum intuito eleitoral, ou qualquer outro interesse menos legítimo, senão a própria satisfação de amparar, patrioticamente, duas classes que, até ali, viviam no mais completo abandono por parte dos governos .

Por que razão foi o projeto dessa lei elaborado e apresentado por um deputado gaúcho, quando, sendo o Distrito Federal o maior núcleo de artistas e autores, nunca essa idéia concorrera a um deputado carioca? A explicação é fácil. Muitas vezes os autores e os artistas solicitaram esta medida aos deputados e senadores pela Capital da República, mas sempre em vão, porque nem os governistas, nem os da oposição deram ouvidos aos repetidos apelos. E não deram ouvidos porque, naquela época, os projetos de lei tinha apenas quatro origens: mensagem do Executivo, oposição, "cavação" e formação de eleitorado. Ora, o Poder Executivo nunca se interessou pelos artistas; a situação dessa gente não constituiria na época um forte motivo de oposição; qualquer "cavação" seria impossível, porque os artistas viviam na miséria, e, finalmente, não poderia aquela gente constituir um bom grupo de eleitores, porque os artistas, perante a lei, eram autênticos vagabundos, desclassificados, sem personalidade jurídica, e, por conseqüência, não podiam alistar-se!

Prova-se, assim, mais uma vez, que o deputado Getúlio Vargas foi apenas inspirado pela sua nítida compreensão dos deveres do Estado para com os artistas.

Foi essa a sua primeira manifestação, como membro de um dos poderes públicos, em favor das classes intelectuais. Sabe-se que S. Excia. ficara perplexo ao ser informado da situação da gente do teatro, situação que refletia o lamentável estado de pobreza em que vivia o teatro nacional, que representava, justamente, uma das artes que mereciam os maiores cuidados dos governos em todos os países civilizados. Nossos artistas não tinham a menor garantia no exercício da penosa profissão, que exige, além de enormes sacrifícios, uma vida mais ou menos estável para o necessário desenvolvimento de suas faculdades. Os autores, por sua vez, eram espoliados nos seus direitos autorais, produzindo, conseqüentemente, sem o menor estímulo. O deputado gaúcho, ao saber disso, estudou, espontaneamente, a situação em todos os pormenores e elaborou a lei que até hoje regula e protege o exercício das duas profissões, primeira lei brasileira de proteção aos artistas, de proteção a toda uma coletividade de infatigáveis trabalhadores que ainda não faziam parte, do ponto de vista jurídico, da comunidade social do seu país. Eram verdadeiros párias saltimbancos desprezíveis que os monarcas e os presidentes da República aplaudiam nos espetáculos de gala, mas que viviam, como os criminosos, fora da lei.

Não existindo nenhum ponto de referência para o preparo do projeto, deve-se pôr em relevo o esforço e a inteligência empregadas pelo seu autor, principalmente quando se sabe que transformado integralmente em lei, nenhum dos dispositivos do projeto suscitou até hoje modificações, nem surgiram casos omissos.

A "Lei Getúlio Vargas", que deu personalidade jurídica aos atores e atrizes, como todos os trabalhadores de teatro, não só regula a organização das empresas de diversões e de locação de serviços teatrais, como ampara os direitos de autor, ampliando regalias, criando obrigações, estabelecendo vantagens, enfim, prescrevendo medidas e determinando providências em favor da prioridade artístico-literária.

Nessa mesma lei foram igualmente contemplados os músicos, executantes e compositores.

Vejamos agora as vantagens e regalias estabelecidas na "Lei Getúlio Vargas" (decreto nº 5.492, de 16 de julho de 1928) em prol dos artistas e autores dramáticos. Desde logo, em seu artigo I, determina que as empresas que se constituírem para a realização de espetáculos públicos, com fim lucrativo, qualquer que seja o gênero de diversões permitidas e a forma de organização, fiquem sujeitas às disposições do Código Comercial e leis complementares. E no artigo II inclui, entre os artistas que devem ser amparados, não só autores e músicos, mas ainda cenógrafos, bailarinos, diretores de cena, ensaiadores, coristas e cançonetistas, além do pessoal auxiliar. Em seguida, torna obrigatório o contrato de locação de serviços, responsabilizando ainda as empresas pelos acidentes de que forem vítimas os artistas, durante a execução do contrato. Dentre outras medidas acauteladoras dos direitos dos artistas, estabelece ainda que estes têm penhor legal sobre o material cênico da empresa.

Na parte referente ao direito autoral, estende as disposições do artigo II e seguintes, do decreto nº 4.790, de 2 de janeiro de 1924, a todas as composições musicais e peças de teatro, executadas, representadas ou transmitidas pela radiotelefonia, com intuito de lucro, responsabilizando os proprietários ou empresários de quaisquer estabelecimentos de diversões, salões de concertos ou festivais, pelos direitos autorais das produções realizadas!

No capítulo da fiscalização dos direitos de autor, a "Lei Getúlio Vargas" chega a estabelecer uma situação de privilégio para o escritor teatral, cometendo essa tarefa às autoridades incumbidas da própria fiscalização dos espetáculos, determinando que a sua realização dependa de prévia aprovação dos programas, e de registro dos contratos firmados entre autores e empresários. Desses contratos deverão constar os nomes do autor e do empresário, o título da obra, o local da representação, o valor dos direitos autorais, a forma de pagamento e o mínimo de récitas ajustadas.

Como se vê, não poderia ser mais completa e eficiente a projeção que essa Lei dispensa aos artistas e autores teatrais, Lei que, num movimento espontâneo de gratidão, os artistas e autores resolveram chamar de "Getúlio Vargas". E foram tão rápidos e numerosos os benefícios colhidos, quer pelos artistas, quer pelos autores e, afinal, também pelo próprio Teatro Nacional, que muito antes de chegar à Presidência da República, o sr. Getúlio Vargas conquistava no coração e na consciência da gente de teatro de todo o Brasil o título de "o maior amigo do teatro brasileiro".

E se esse título porventura não estivesse suficientemente justificado pela lei que tem o seu nome, outras justificativas viriam, como vieram, confirmá-la plenamente.

Em 1937, na Lei nº 378, de 13 de janeiro, que reformou o Ministério de Educação, o Presidente Vargas surpreendeu, mais uma vez, a classe teatral criando o primeiro órgão de administração pública para tratar exclusivamente de estabelecer novas e melhores condições de vida para o teatro nacional.

Empenhava-se, então, o Presidente em dar ao teatro as possibilidades de uma existência autônoma, e instituiu a Comissão Permanente de Teatro Nacional, composta de atores, autores, compositores e escritores, sob a presidência do ministro da Educação. A nova instituição promoveu o estudo de todas as questões ligadas à economia do nosso teatro, amparou iniciativas de artistas, realizou espetáculos, premiou obras teatrais, e apresentou sugestões que, afinal, resultaram na criação do Serviço Nacional de Teatro, departamento definitivamente incorporado às contribuições do Ministério da Educação e que, a meu ver, veio solucionar a velha questão do teatro nacional. Dotado dos poderes necessários e de boas verbas orçamentárias, o Serviço Nacional de Teatro deu um extraordinário desenvolvimento às atividades do teatro em todo o Brasil, realizando, ao mesmo tempo, o levantamento do nível cultural da arte dramática, e a melhor obra de assistência social, pois que deu trabalho a todos os artistas e trabalhadores de teatro.

A criação do Serviço Nacional de Teatro, para os artistas e escritores de teatro foi considerada, justamente, como o último favor que poderiam eles receber do Presidente Vargas. E assim, quando já nada mais se esperava, senão que os próprios artistas, autores e empresários se desdobrassem para ampliar os efeitos das providências determinadas por intermédio daquele órgão, surgem ainda, e espontaneamente, na lei que criou e organizou o Departamento de Imprensa e Propaganda, novas concessões ao teatro, como a universalização da censura teatral, que isenta as peças de qualquer outra censura ou pagamento de novas taxas.

Fica assim comprovado e documentado o interesse que sempre demonstrou o sr. Getúlio Vargas pelas classes teatrais, pelos autores, pelos artistas, como também pela própria cultura popular, que vem encontrando no teatro um dos fatores mais eficientes.

(Getúlio Vargas e a inteligência nacional, 1940.)

 

TEATRO, CULTURA E POVO

Quando comecei a escrever, por necessidade econômica, e por imperativo da opressão reinante, estávamos no reinado do “teatro puro” poético, que é embriagador e se prende aos cânones mais brandos da velha tradição estética, ao conceito inerte e mortiço do “artístico”, que atirava para as costas a verdade dramática e dramatúrgica, ao isolar o teatro teatral (no bom sentido), ativo, dinâmico, que exalta e estimula a realidade de nossa vida, sempre em marcha, avançando, que recolhe suas melhores vibrações e as projeta valentemente às sombras do amanhã, para desentranhá-las e para dar-lhes uma forma emocional. Esse teatro, teatro por antonomásia, é o teatro político. Se o teatro é uma arte para multidões, como sempre o foi nos seus melhores tempos, devemos convir com Sander em que o teatro mais teatral, o que mais corresponde à sua origem, é o que chega antes, e com maior força, à consciência de um número maior de espectadores. É o que afronta os problemas e as inquietudes coletivas em sua obscura raiz, e não em uma só emoção as crenças, as dúvidas, os temores, as esperanças, o belo, o doce e o terrível, produz nas massas uma sensação de supervitalidade, de estímulo, nessa luta eterna e universal entre o desejo e a impossibilidade, o tempo e o calendário, o indivíduo limitado e a imensidade. Esse é o teatro político. Não é ainda o teatro revolucionário, que existiu em todas as épocas históricas, porque a obra de arte de proporções geniais é sempre revolucionária. Não foi esse o meu teatro, pela ausência completa de genialidade, mas foi o teatro político, pedagógico, em serviço de colaboração com a burguesia esclerosada, feito com atitude de generosidade consciente, corretivo, que atingiu em cheio grandes massas de espectadores, daqui e de tantas latitudes, mas que teve suas lições indiretas e plásticas recusadas pelos principais interessados. Que foi combatido pelos que deviam recomendá-lo à consciência dos que não sabiam que eram os interessados. Mas o povo, não. O povo, como o fez a Jorge Amado, deu-me o prêmio que hoje recebo ao ingressar na ilustre Companhia. Já é um índice de compreensão dos objetivos do verdadeiro teatro político, não polêmico e panfletário, que não trata de dar ao Comunismo ou ao Socialismo um elemento de propaganda, uma arma de luta, mas um lugar no qual os mais humildes tenham acesso à arte, como declarou Stefan Princel, referindo-se ao Volksbühne, Teatro do Povo alemão. Só os ilustres membros desta Casa poderiam me fazer justiça. Meu teatro era para o povo, e eu sabia que o público teatral, diante de uma obra autêntica, não precisa estar polarizado pela cultura, e muito menos pela cultura livresca. A cultura literária, mais do que formar, deforma o gosto do público teatral. A imaginação das massas, e poucas com tanta imaginação como as nossas, precisa de uma válvula de escape, de segurança, o caminho para o infinito que só a arte pode dar. E, no caso do teatro, temos que oferecê-lo na base de motivos universais e imediatos, cuja entranha política é inevitável, já que a imaginação só coincide, nas massas, para o protesto ou o aplauso, e atrás de cada um dos casos há uma realidade política. A cultura é inimiga dessas coincidências coletivas na afirmação e na negação. É estática, contemplativa. Diante do extraordinário tem uma atitude compreensiva, possibilista, fria. A afirmação ou a negação do público das plateias consiste em reações simplesmente biológicas, vitais. Por isso, a cultura, muitas vezes, dá uma impressão antivital, negativa, e a supercultura, como a supercivilização, conduz, individualmente, no primeiro caso, e coletivamente, no segundo, a um sentido decadente da ação e da vida. Não se suponha, de um modo simplista, que estou fazendo o elogio da incultura. Seria um sacrilégio sob o teto da instituição máxima da cultura do nosso povo; mas também não cairia no polo oposto.

 

            (O Fluminense, “Suplemento Prosa & Verso”, 13 de maio de 1968.)