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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Eduardo Portela

Quem devia estar aqui, saudando João Ubaldo Ribeiro, era o nosso querido Jorge Amado. Ele, mais do que ninguém, dispõe das condições plenas para falar desse traço insólito, dessa crispação, desse conjunto de “aparições e atos mágicos” – e já começo a recorrer a João Ubaldo – que constituem a fábula da Bahia e de suas geografias espirituais próximas. Essa mesma fábula que une estes dois fabuladores por meio de um pacto superior, jamais assinado, porque espontâneo e livre. Jorge Amado se encontra em condições especiais, porque recebeu, ainda muito cedo, a legítima delegação de poderes de todos os Santos e todos os Orixás. Mas, como o coração tem razões que a própria razão conhece, aqui me vejo tentando fazer o impossível: substituir Jorge Amado.

A obra de João Ubaldo Ribeiro recolheu os inúmeros tempos da nossa História e os reconstruiu. Juntou o passado ao futuro e deixou o presente perpassar esse interminável horizonte que vai e vem do mato ao mar. O Brasil profundo consegue respirar, a plenos pulmões, a vida que se renova entre a perda e o encontro. No caso do povo brasileiro, muito mais entre a perda imposta do que entre o encontro lutado.

João Ubaldo Ribeiro reconstrói sem querer explicar, imune a qualquer tentação didática, mas como quem conta, inventa, espanta. E, porque sabe espantar, inventar, contar as infindáveis façanhas da nossa gente, ele está sendo recebido agora, na sua Casa, sob estas paredes onde é fácil perceber ressonâncias vivificadas de um antepassado inconfundível, não por acaso conhecido como o Bruxo do Cosme Velho.

A construção ficcional de João Ubaldo Ribeiro está impulsionada, de ponta a ponta, por uma razão narrativa vitalizadora. Os discursos que se cruzam, por entre as frestas do texto, o discurso histórico e o político, o discurso da moralidade ou o da sexualidade, obedecem a uma decisão narrativa, insuflada pela capacidade de fabular e pelo trabalho livre da linguagem. O romance, nem salvação nem fuga, vai modulando essa imprevisível polifonia, que liga Vencecavalo e o Outro Povo ao Viva o Povo Brasileiro, passando por realizações igualmente consistentes como Sargento GetúlioVila RealJá Podeis da Pátria Filhos. O narrador circular, desdobrado entre o “eu” que o unifica e a série de máscaras que o diversifica, contém surpreendente mobilidade, atua dentro de um ritmo vertiginoso. Versátil e flexível, tanto quanto irônico e crítico, ele assegura o encadeamento, e talvez a coesão interna, de uma obra unitária, emancipada de qualquer determinação uniforme. A velocidade narrativa, que se acelera nos encontros ou nos desencontros individuais, e em seguida coletivos, nas lembranças persistentes, nos episódios fortuitos e nos acontecimentos frequentes, parece reprogramada pela impaciência do olhar. Narrar é olhar. Narrar mais é ver mais. E reunir materiais díspares, e entregá-los à dedicação da linguagem. A avareza da retina que tudo recolhe, em meio à suspeita e à crueldade, ancora a sua pressa no porto inseguro da mudança, porque a cidade, porque Laranjeira, “parece que vai morrer”. As estratégias de transposição, os deslocamentos e os enlaces insuspeitáveis, as improvisações de pontes são próprias dos habitantes da ilha ou dos que, mesmo distantes, guardam dentro da alma, incontrolavelmente, o sortilégio insular. A insularidade, longe de conduzir à resignação, absorve e responde à provocação.

A representação imaginativa sabe gerir, frutuosamente, a inteligência da emoção. O seu programa de invenção da realidade jamais evita, porque recupera e condensa o que parecia simples aceno e constitui a solidez legítima da utopia. E, no caso de uma população animada pelo “Espírito do Homem”, o tamanho da utopia é tal, que inclui a realidade. A realidade se inventa com a realidade. Os viventes ou os sobreviventes que comem pedras, nas plagas de Vila Real, eles criam, porque metaforizam a rudeza da exclusão, esse lugar inóspito, onde os homens e as coisas, a imagem e a miragem, a ocorrência e a impaciência, se encontram e se desencontram para sempre.

A narração da História, recorrência constante nesse mundo de fabulações e de confabulações, sabe até onde pode chegar. O tempo literário redireciona o tempo historiográfico. “Na guerra – diz o narrador –, Otoniel trabalhou de forma funcionária”. Na Literatura, a sua opção instrumental seria ou inútil ou tediosa. No marco de uma sequência de referências históricas e éticas, discretamente valorizadas, o que quer dizer calibradas até o limite ou o respeito da soberania narrativa, o texto lança mão da História mesma e se mostra particularmente receptivo à História outra. O dado histórico irrompe não como um encarte ocioso, que estabelecesse com o corpo narrativo uma relação aleatória. O que se verifica é o intenso intercâmbio de linguagens, em virtude do qual certo registro de época vai buscar, no fundo da memória histórica, os sinais pertinentes para as novas reconstituições. A narração da História se mistura e se confunde com a história da narrativa. Amleto, Henriqueta, Budião, Maria da Fé, Bonjfácio Odulfo, talvez possam depor ainda nesse processo inacabado. Quando a narrativa amplia a História, ela dispensa os clichês antropológicos e funde Natureza e Cultura. O narrador radical jamais visa à transubstanciação ou à reprodução formal da realidade. Ele se impõe à intriga eventual, porque sabe, com o saber de experiência feito, que a Ficção cria o mundo. Por seu intermédio, o imaginário coletivo, que parecia imobilizado, recebe novo sopro de vida.
 
São vários os motivos que se reúnem para assinalar a vitalidade do texto de João Ubaldo Ribeiro. O primeiro deles talvez seja a simultaneidade linguística, no interior da qual coabitam, como se pode ler em Viva o Povo Brasileiro, “a língua dos brancos”, a “língua de preto”, ou a “de caboco holandês”. Esses cruzamentos linguísticos antecipam a interculturalidade que se acentua progressivamente. O idioma da opulência ou da pureza metropolitana, o discurso do poder espiritual, o Latim, as onomatopeias mestiças, do lado de cá da margem atlântica e do lado de lá do pecado, recortam e dinamizam a fábula. As citações estrangeiras e seus efeitos parodísticos, oportunamente localizados, alargam, de igual maneira, o horizonte verbal. Sem receio de romper os hábitos linguísticos institucionalizados, o narrador e seus comparsas deixam prevalecer a obstinação e o acaso da Linguagem. A fala, de irrecusável entonação popular, e tão perceptível no contorno das frases, no aproveitamento lexical, nos nomes e nos sobrenomes, astuciosamente reiterados no batismo irreverente dos personagens, descarta o tom solene e declaratório dos proprietários da Língua. Já em Vencecavalo e o Outro Povo, João Ubaldo Ribeiro se apressa em estigmatizar aqueles que falam “como um memorando de prefeitura do interior”. Recusa, com o vigor comedido da ironia e a força extrovertida da burla, todo e qualquer artificialismo. Nem artifício, nem artimanha, porém o labor intersubjetivo da Linguagem. Nenhuma concessão à inadimplente retórica dos fogos de artifício, do discurso predatório, a uma só vez inflacionário e fraudulento. O regime ortográfico da fala se mostra colado à vida, em franco dissídio com a impostação canônica. Na aparência linear das falas, sertão adentro e litoral afora, na verbalização tosca ou simplesmente rude, do Sargento Getúlio, por exemplo, o que se entrelaça e se entrechoca é o sentido vertical dos seres, animados e inanimados, é a vontade de dar nova vida à Língua. O desempenho da Linguagem e a Crítica da Cultura se identificam: ou porque o primeiro se configura como Crítica da Cultura, ou porque a segunda prospera graças ao trabalho livre da Linguagem.

Se é certo que a ficção de João Ubaldo Ribeiro traduz a busca infatigável da identidade nacional, não é menos evidente a sua aguda sensibilidade em face do irresistível trançado das diferenças. Quase podemos falar da diversidade como identidade. As suas rememorações e as suas comparações percorrem as mais distantes geografias e recolhem, com sábia naturalidade, os mínimos gestos da nossa máxima alteridade. Nesse processo laborioso, a identidade ganha novo corpo e nova alma, deixando de ser o fato consumado, irremediavelmente concluso, dotado de uma certa data. A rigor, a identidade não tem idade – é antes o percurso incerto, sujeito às imprevisões do tempo. E, nessa hora, o absoluto identitário passa a ser relativo. Desfaz-se a lógica apropriativa.
 
A identidade estabelecida, que corria o risco de submergir no sedentarismo, ou de preparar, sem o querer e sem o saber, o caminho do Fundamentalismo, emerge agora em meio ao previsível cortejo de rostos diferenciados. Esse movimento mais ou menos descontraído, menos ou mais tenso, reúne brasileiros de todas as cores, todos os credos e todas as injustiças; reúne brancos, negros e amarelos, os pré os pós-alforriados, acompanhados de seus relatos sem fim. As desigualdades não retrocedem, como também não desanima a convicção fálica de Luiz Cuiúba. “Muito melhor é a vida do povo”, diz ele, depois de alguns exercícios edificantes, pelas páginas tropicais de  Podeis da Pátria Filhos. Sem ceder, em nenhum instante, às pressões de uma identidade social puramente revanchista.
 
As relações conturbadas com o real procuram evitar, com a colaboração atenta do imaginário, a fatalidade ameaçadora de um núcleo concentrado e concentracionário. A narrativa se faz rosa dos ventos, apontando em múltiplas direções. Os personagens, peregrinos e sedentários, “seres que vivem da morte” no paradoxo de Vila Real, se acham perdidos entre a continentalidade do espaço e a insularidade do tempo.

A obra de João Ubaldo Ribeiro está sustentada por culturas que dialogam, por intercâmbios simbólicos instauradores, capazes de universalizar o regional, evitando as sínteses que pudessem ser reciprocamente emudecedoras. Desde os instantes matinais da aventura nacional, desde aqueles dias em que expedições se confundiam com transações, e transações com explorações, começou a formar-se a nova subjetividade, na tradução intercultural do povo brasileiro. É essa interculturalidade que retira a Nação do solo infrutífero do nacionalismo ingênuo ou tão somente folclórico. É essa interculturalidade que revigora a narrativa, proporcionaliza as figuras contrastantes, restaura papéis originários, extraviados no poço da amnésia nacional.

Nesse quadro culturalmente interativo, dissolve-se a oposição Natureza e Cultura. A Natureza deixa de ser a anticultura, ao ponto de autorizar a mediação inesperada da Cultura da Natureza, sem denegar ou denegrir a natureza da Cultura. A distensão do corpo libera a sexualidade das garras do poder discricionário, mesmo quando se trata de um micropoder ou de pequenas extensões delegadas ou usurpadas. A silhueta alegórica de Vevé, toda desenhada entre a margem que comprime e a exclusão que progride, torna-se, sem muito esforço interpretativo, o emblema social que transpõe o individualismo, desde sempre opulento, da consciência infeliz. O erotismo que irrompe das fendas do real, declarado ou clandestino, aceito ou imposto, em qualquer caso cotidiano e exorbitante, inscreve o desejo no quadro da saudável animalidade. A desordem amorosa e a ordem social trocam figurinhas sem o menor constrangimento. A linguagem do corpo, e suas emanações, e o corpo da Linguagem, e suas representações unem-se e, juntos, preparam e sonham com a Irmandade do Povo Brasileiro. Mas sem conseguir romper o circuito fechado do Poleiro das Almas.

Por isso, enquanto esperam, e talvez confiem, estes seres fustigados pela adversidade, quebrados mas não rendidos, recorrem à ironia matizada, ao sorriso discreto e dissimulado, ou ao riso aberto, partilhado, e incontrolável, com que os naturais da ilha observam os gestos caricatos dos invasores. O veio irônico, animado pela cobertura da Linguagem, já despontara vigoroso, nas reconstituições de Vencecavalo e o Outro Povo, quando certos confrontos culturais se empenhavam por acentuar a diferença.

A paródia do amor mais ou menos cortês nas relações truncadas de Patrício Macário, ao mesmo tempo em que ironiza a sociedade ritualizada da época, desabona o formalismo puritano. O riso parodístico que constata o esgotamento de costumes e estruturas sociais, arcaicas ou residuais, paradoxalmente agonizantes e renitentes, expõe à visitação pública o ridículo da heroicidade histriônica, desperdiçadamente obesa.

A admirável sátira à ideologia da segurança, que culmina no capítulo “Abusado Santos Bezerra”, de Vencecavalo e o Outro Povo, mostra como a astúcia nacional consegue fragilizar e desmontar a rigidez do sistema multinacional. No lugar de curvar-se ao panfleto, fazendo a apologia da incultura, orienta a apropriação ou a recepção cultural ao extremo da dicção satírica. O delírio nunca imaginoso, porque repetitivo e monótono, das cabeças submersas nos organismos de informação, denunciaram, sem jamais supor, a perversão atravessada na garganta do Poder.

Porque prefere desdramatizar, João Ubaldo Ribeiro recorre ao cômico. O cômico bipartido entre a demonstração de esperteza com que o vencido se descarta do vencedor e a estratégia de desvalorização do poderoso, surpreendido em desempenhos pouco ou nada edificantes. Os nomes do ridículo, cuidadosamente escolhidos, e a condensação do grotesco, habilmente mobilizada, são aliados fiéis desse empreendimento.

A ironia maior pode ser encontrada na estranha alternância de papéis, quando a “mentiralhada oficial” – a expressão é do narrador – vê no povo o estrangeiro. Estrangeiro de si mesmo, errante, nômade, sem terra e sem destino, que não precisa esconder a sua fatalidade e, como se estivesse diante do espelho, diz: “Eu moro no mundo. Moro andando.” Sem domicílio fixo, talvez escapando, talvez driblando, ou tão somente se debatendo entre a sombra dominadora do senhor Barão de Pirapuama e a volúpia canibalesca do “caboco” Capiroba, mas em qualquer hipótese empurrado pela força motriz da Esperança, que se comprime, prende o grito, até a explosão uníssona, a do “viva o povo brasileiro.” Os seus personagens, ao contrário de serem meras produções verbais, constituem encarnações das lendas, das histórias, das fantasias com que o povo vive.

Por isso, João Ubaldo Ribeiro sente necessidade de desmascarar, por meio do riso, do sarcasmo, da sátira endereçada, o processo de mistificação, forjado pela História petrificada nos manuais do equívoco. A nacionalidade bloqueada, a cidadania vacilante, a liberdade falsificada, o hedonismo reprimido, o racismo estimulado, exibem as suas feridas expostas, bem como a desordem moral que se esconde por detrás da ordem institucional, laica ou beata. O saber premonitório do povo, nos ditos, nas orações, nos aforismos do cotidiano ascético, registra esse desequilíbrio. E pede a expressão correspondente, capaz de dar forma a essa disparidade. A História jamais unívoca requer o discurso simultâneo, veloz, a palavra comedida – medida em regime de parceria. A Linguagem não será nunca a pura produção da subjetividade. Ela olha, vê, convive e vive cada dia mais.

O Espírito, que confere alma à fábula e corpo à fala, em nenhum momento prescinde do seu eixo ético. “O Espírito precisa do Bem”, esclarece o narrador, sem que se abandone ao imperativo categórico. O moralista no sentido montaigniano do termo se inclina ao convite da perquirição. Em vez de prescrever, determinar, sentenciar, ele indaga, pergunta, questiona – imune àquela lógica prescritiva, dada de antemão, a mesma que fez a grandeza e a miséria da Cultura Ocidental.
 
O autor de O Sorriso do Lagarto prefere apostar na invenção da verdade, legenda inegociável do partido do homem. A epígrafe do seu romance Viva o Povo Brasileiro é bem ilustrativa. Diz ela: “O segredo da verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias.” Jorge Luis Borges diria só existem ficciones. Isto significa que se equivocam as suposições de que a Ficção é o contrário da Realidade. Ela é antes o máximo de intensificação do real.

Inexiste a verdade como território estável e imperturbável. O que existe é o olhar, todo minado pelo vigor do outro, que desfaz ou desautoriza a tendência ao egocentrismo. E que ao desindividualizar chega àquela fronteira observante e absorvente, em que a verdade perde o seu caráter absoluto. O olhar é a virtude da fábula; a imaginação, o seu paraíso reencontrado.

O Sargento Getúlio, o que não se cansa de alertar “eu sou eu, Getúlio Santos Bezerra, e meu nome é um verso que vai ser sempre versado”, também cede ao espetáculo do outro. O individualismo pleno e plano que o faz refém de si mesmo, que o transforma no dono da verdade, se vê repentinamente cercado. Escoltando e escoltado, pelos seus demônios e pelos seus fantasmas, ele se depara, reconhece o confim e balbucia as primeiras letras da consciência – alfabeto remoto, e inalcançável, até então conduzido em regime de solidão. O narrador sabe que só há duas maneiras de enfrentar a estupidez absoluta: ou ser mais absolutamente estúpido, ou expor a estupidez ao ridículo. Ele opta pela segunda alternativa. E daí desfia o fio da tessitura política que atravessa as suas páginas.

Trata-se da política sem partidarismo, inteira, vazada no que ele, João Ubaldo Ribeiro, chamou o Espírito do Homem. No desenho grotesco do líder convencional, na paródia precisa da negligência e do descaso, sobretudo na reconstrução evidente e simbólica do desencontro social, quando o povo depara-se com inúmeras dificuldades em se identificar com a Pátria, aí aflora o conteúdo político. Já se falou também do épico. Se épico for, será um épico insólito, sem façanhas totais que o caucionem. Provavelmente, o primeiro épico da esperança.
 
Certa vez, também “por obra do acaso”, quando João Ubaldo Ribeiro estreou em livro, volume coletivo intitulado Reunião, coube-me fazer o prólogo. Hoje, depois de tantos anos e de tantos sonhos, as circunstâncias me fazem acrescentar àquele prefácio resumido o meu posfácio talvez prolongado.
   

   8/6/1994