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João Neves da Fontoura

DISCURSO NO COMÍCIO HISTÓRICO DA ESPLANADA DO CASTELO

2 de janeiro de 1930

 

Povo carioca! Era inútil dirigir-te uma palavra que traduzisse o pensamento e o anseio do povo do Rio Grande do Sul, que fosse a voz daquele Estado e a consciência profunda e imensa de uma civilização forjada nas fráguas da luta e simbolizada no tríptico Liberdade, Igualdade, Humanidade inscrito na bandeira de Piratini. (Palmas.) Aquela voz já falou ao povo carioca na palavra do Presidente Getúlio Vargas. (Palmas.)

Ela é a voz da paz, a voz da fraternidade, a voz da brasilidade. Viemos de lá, do rincão extremo do Brasil, para ser apenas os escravos da tua vontade soberana.

Em todas as flutuações da nossa existência, ora cheia de amarguras, ora crepitante de glórias, o Rio Grande outra coisa não tem sido nem quer ser senão o artífice obscuro, mas constante, da grande Pátria. (Palmas.)

Nada fica, porém, o povo carioca a dever, na lealdade, na grandeza dos seus ideais, na bravura da suas atitudes, na elegância dos seus gestos e até na singularidade da sua graça, a nenhum dos outros grandes luzeiros da civilização no Brasil. Aqui se refletem todos os estremecimentos da periferia. Para aqui circula todo o sangue da nossa vida. Aqui é o polo de atração de todas as ideias, o centro de gravitação de todas as campanhas. Daqui irradiou o pensamento da Independência. Daqui nasceu a cruzada pela emancipação dos escravos. Aqui se proclamou a República. Daqui há de vir a vitória da Aliança Liberal. (Palmas prolongadas.)

Felicidade extraordinária a de falar à maior multidão de brasileiros que já se haja reunido em uma comemoração cívica. Já agora abençoemos o gesto dos dominadores, arrebatando a tribuna da Câmara à palavra que nunca se abateu, do pupilo de Parlamentares liberais. (Palmas.)

Cidadãos do Rio de Janeiro! Está é a mais bela terra do Brasil; bela pela convergência de todas as magnificências que a mão do Criador poderia distribuir a uma metrópole de eleitos. Mas de que valeria a formosura das vossas avenidas, a atrevida imponência dos vossos arranha-céus, a majestade dos vossos monumentos, que beleza poderia haver na orla serpentina das vossas praias batidas pelas ondas atlânticas, que esplendor teria a própria Natureza, fechando o cenário com uma cadeia de montanhas em que o povo do Rio de Janeiro, índice e espelho da vontade do Brasil, não passasse de um ajuntamento de escravos, incapazes de triunfar? (Palmas e aplausos prolongados.)

Podeis estar seguros que agora vos fala, pela humildade de minha voz, a consciência do Rio Grande do Sul inteiro de que ele, como um só homem, unido num só rumo, será o executor fiel das vossas aspirações.(Palmas e bravos.)

Aqui ao meu lado está o Presidente João Pessoa. Ele simboliza, na sua toga de juiz e na sua inteireza moral, aquela terra esquecida, aquele Nordeste flagelado pelas inclemências da temperatura, pelas soalheiras caniculares que o martirizam e calcinam, mas que, ressecando o solo, dão ao caráter do povo a têmpera do aço para resistir aos ultrajes do poder.

A pequena e altiva unidade que ele dirige e comanda resume toda a bravura brasileira, a guardar, como num escrínio, a pureza de uma República que ainda não se praticou. (Palmas e aclamações.)

Erguei para além os vossos olhos e lá, nas montanhas altaneiras de Minas Gerais, tereis em Antônio Carlos o outro grande vulto desta cruzada de opinião. Ele descende em linha reta daquele ramo intrépido de construtores de pátrias que com mão ciclópica fundaram os alicerces da nossa independência política. (Palmas.)

Nesta hora apostólica, o Presidente Antônio Carlos é o para-raios dos ódios e das injúrias, que sobre nós desabam e que o procuram de preferência, por ter sido o pioneiro desta cruzada pela redenção da República. (Palmas prolongadas.)

Não esqueça o glorioso povo carioca que Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul são apenas a vanguarda do Brasil. (Palmas.) Não é o poder que a nós nos seduz. As candidaturas Getúlio Vargas e João Pessoa têm um inavaliável valor intrínseco. Mais do que elas, porém, vale a vontade do Brasil. (Palmas.)

Há quarenta anos, a espada destemerosa de um herói, que é, ainda hoje, um padrão do civismo brasileiro, o grande Deodoro, proclamou, numa das praças desta Capital, o regime republicano. Mas, ou porque a Nação estivesse, para adotá-lo, imperfeitamente preparada ou porque a República madrugasse demais, o certo é que as linhas fundamentais do sistema quase não passaram até agora de uma ficção constitucional.

A Nação brasileira há de, entretanto, chegar à verdadeira prática da democracia. Tudo depende de nós. Esforcemo-nos no sentido de que 1º de março de 1930 seja para o País o que não foi o 15 de novembro de 89 a aurora de um grande dia! (Palmas prolongadas e aclamações.)

A jornada liberal, vol. II., 1931)

A ALIANÇA LIBERAL E A REVOLUÇÃO DE 1930

 

Desde que partimos de Cachoeira, sempre me recusei a fazer discursos, nas manifestações que íamos recebendo pelas estações do caminho. Minha firme disposição era encerrar no dia da vitória a atividade política. Razões de sobra ditavam-me aquela resolução, que levei a cabo, entre dificuldades e estranhezas.

Infelizmente não tardei a voltar às lutas públicas, forçado por novos e velhos deveres. Durante a marcha para a frente, apenas uma vez consenti em escrever as seguintes palavras que foram insertas no Jornal do Soldado, impresso e distribuído pelas diversas colunas militares:

 

“Liberais do Brasil Aqui está, como um só homem, o prometido Rio Grande do Sul. Há quatorze meses, rompendo hostilidades contra o Governo Federal, na sessão histórica de 5 de agosto de 1929, anunciei da tribuna da Câmara dos Deputados que o facciosismo do Sr. Washington Luís nos arrastava, sem razão e sem justiça, para a campanha incruenta das urnas e quiçá para o prélio terrível das armas.

Pois bem, brasileiros. Os desatinos do Governo da União, sua política personalista, escudada na corrupção e na fraude, impediram que a pugna se encerrasse nos comícios eleitorais.

Não seria possível aceitarmos o julgamento de uma magistratura política degradada, provinda de um Congresso sem expressão e sem caráter cívico, como ultima ratio, num cotejo de valores eleitorais entre a Nação escravizada e o poder fora da lei.

Desde a primeira hora, pela minha voz humilde, o Rio Grande declarou com rara e resoluta firmeza que não se curvaria senão perante a vontade da maioria dos eleitores, imparcialmente apurada por forma regular.

A negativa dos poderosos não nos deixava outro caminho senão o do apelo às armas para restabelecimento do direito violado.

Liberais do Brasil, marchamos para restaurar o império do Direito. Ainda nesta hora suprema, não nos move o impulso de uma ambição, nem nos anima o espírito regionalista. Somos hoje, como sempre fomos, soldados ao serviço da Pátria, que queremos una, próspera e feliz.

Já temos sob o domínio revolucionário doze unidades da Federação, e as outras aguardam a aproximação das nossas vanguardas para se incorporarem a nós.

Brasileiros, o Rio Grande do Sul segue ao vosso encontro. Não é a arrancada de um partido ou o avanço de um grupo sectário. É o Povo em armas, com o glorioso Exército Nacional e as bravas milícias estaduais à frente, conduzindo, como bandeira renovadora, o programa da Aliança Liberal.

Fica assim cumprida a palavra empenhada.”

XXXII

A 23 de outubro, as ordens para o ataque a Itararé entraram em curso de execução. Durante a manhã conversei demoradamente com o Gen. Miguel Costa. Estava tranquilo quanto ao êxito final da operação, que seria decisiva para a nossa causa. Se penetrássemos em território paulista por aquela porta, que o Governo se esmerara em fortificar com a concentração de numerosas tropas e copioso material de guerra, nada mais deteria o nosso avanço, inclusive porque a E. F. Sorocabana num largo trecho de Itararé à capital do Estado ficaria em poder da revolução. Até ali nossa ofensiva fora retardada pela necessidade de recebermos novas forças que iam constantemente chegando do Sul, e também devido às chuvas torrenciais.

Muitas informações circulavam a respeito da situação militar que teríamos de enfrentar. Sabia-se que o comando geral se achava com o então ten.-cel. A. Paes de Andrade, um chefe de real valor. Igualmente se conheciam quais as unidades de que ele dispunha.

Já estava mesmo redigida a ordem de combate, datada de 25 de outubro. Dela constava que o nosso grupo de Destacamentos iria naquele dia “atacar as posições de Itararé, fixando o inimigo de frente, e envolvendo-o pelos flancos”. As diversas missões foram assim definidas: “Destacamento Flores da Cunha envolver Itararé pelo Norte e impedir a retirada do inimigo pela via férrea; Destacamento Silva Júnior fixar o inimigo de frente, atacando-o a fundo; Destacamento Alexino envolver Itararé pelo Sul e impedir a retirada do inimigo na direção da Capela da Ribeira.”

A emoção entre a nossa gente às vésperas de empenhar-se na luta era grande, mas reinava serenidade nos espíritos. Sobretudo, confiança na vitória. Praticamente, cada qual desejava ver-se livre, quanto antes, daquele buraco de Sengès onde vivíamos havia cerca de dez dias.

Depois da nossa chegada, muitos contingentes vieram incorporar-se ao Destacamento Miguel Costa, inclusive a Brigada comandada por Batista Luzardo, que trazia no uniforme as divisas de coronel da sua milícia.

Na manhã de 24, saí do nosso trem entre oito e nove horas. Fazia um belo dia, de sol quente. Dirigi-me para um caponete acima do povoado, onde acampara o 1º Regimento de Cavalaria da Brigada Militar do Rio Grande. Desde lutas passadas, era eu muito ligado àquela brava gente. Sua sede ficava mesmo na cidade de Santa Maria, próxima de Cachoeira. Quando prefeito, foi do 1º Regimento que me vieram os elementos aos quais confiei o policiamento do meu município.

Assim que me aproximei do local, já de longe pude sentir o perfume do churrasco que estavam assando, e escutar o rumor das gaitas e violões com que se distraíam oficiais e soldados.

Estendi-me numa rede e logo fechou em torno a roda do chimarrão, à espera do almoço. A conversa versou, é claro, a respeito da iminente operação militar sobre Itararé. Cada qual emitia sua opinião, referia notícias trazidas pelas últimas patrulhas, que penetraram no território inimigo.

Muitos dos meus companheiros mais chegados, como Camilo Martins Costa, Leopoldo Sousa, Glicério Alves, Marajó de Barros, Miguel Teixeira e vários outros, se achavam no local quando, cerca de dez horas, vi Maurício Goulart, que saía correndo do estado-maior e se dirigia ao nosso grupo. Agitava os braços com o aspecto alegre de uma boa mensagem. De longe gritou-nos: “Caiu o Washington Luís.” Fomos ao encontro dele. De Curitiba e Ponta Grossa procedia o aviso de que o Presidente da República havia sido deposto aqui no Rio. Secamente, sem pormenores.

Meu primeiro movimento foi de incredulidade, ainda que esta hipótese estivesse dentro das nossas perspectivas, desde o entendimento de Collor com os generais Tasso Fragoso, Francisco Ramos de Andrade Neves e Malan d’Angrogne, nos fins de setembro, como antes relatei.

Maurício Goulart regressou logo à sede do comando onde fora montada a estação radiotelegráfica.

Nisto surgiu, galopando em nossa direção, Flores da Cunha. Escaramuçava um belo cavalo preto. Antes que apeasse, contei-lhe a notícia. Sua reação foi serena e simpática. Cercado por todos nós, exclamou entre grave e risonho: “Mais mió bom, como diz o caboclo.”

Momentos depois confirmava-se a informação. Também os detalhes chegaram no curso do dia.

Estávamos na véspera do ataque a Itararé, que devia ocorrer a 25, por volta do meio-dia. Em face da queda do Governo, a situação mudara naturalmente, e não era curial que nos empenhássemos numa luta sangrenta sem antes tentarmos conhecer as disposições da tropa adversária.

[...]

 

No dia seguinte bem cedo entramos em Itararé, ansiosos pelo regresso à vida civil. A cidade recebeu-nos cordialmente. Lá, fomos ouvindo todas as misérias e mentiras de que haviam lançado mão os dominadores estaduais, tentando incompatibilizar-se com o povo paulista.

À tarde chegaram de Ponta Grossa João Alberto, Maurício Cardoso, Luís Aranha, Virgílio de Melo Franco e Assis Chateaubriand. Este grande jornalista, que fora um dos nossos mais dedicados companheiros e intérpretes durante a Aliança Liberal, conseguiu sair daqui do Rio, em avião, justo no dia 3 de outubro. Em Santa Catarina tentaram detê-lo, mas ele logrou atingir Porto Alegre. Dali marchou, já fardado, com uma das forças que seguiam para Curitiba. Veio depois juntar-se a nós em Itararé, donde saímos à noite de 25 num trem especial rumo de São Paulo.

Também participaram dessa viagem o Gen. Miguel Costa, Paulo Nogueira Filho, Álvaro Cruz e Ibañez Verney.

Ainda em Itararé, jornalistas insistiram para que cada um de nós falasse a respeito do momento nacional. Limitei-me a estas palavras: “Ao penetrarmos no território do glorioso Estado, que a própria invocação do grande Apóstolo do cristianismo santifica, saúdo os paulistas.”

Ao meio-dia de 27 nosso trem entrou na estação da Sorocabana, em São Paulo. Considerável massa de povo ali se aglomerava para receber-nos. Tratei de fugir aos abraços e congratulações. Deliberado a despedir-me da política, eu já me sentia estranho ao clima dos entusiasmos revolucionários. Não tinha outra ansiedade senão seguir sem demora para o Rio e aqui ou alhures reorganizar minha vida profissional, regressar às atividades privadas e ao seio da família. Voltar a ser eu mesmo. Sonho que infelizmente pouco durou.

No curso da viagem, fui recebendo telegramas em que Vargas me pedia para esperá-lo em São Paulo, onde precisava falar-me. Da primeira estação, respondi que tinha pressa, por motivos particulares, de ver-me no Rio; por isso desculpava-me de não atendê-lo. Ele voltou imediatamente à carga. Tornei a resistir. Logo que entrei no Hotel Esplanada, procurou-me um oficial entregando-me o seguinte telegrama urgentíssimo: “Deputado João Neves da Fontoura. Onde estiver. Peço aguardes minha chegada para conversarmos durante a viagem, sem prejuízo de qualquer resolução hajas tomado. Abraços. (a) Getúlio Vargas.”

Não havia senão submeter-me ao apelo, o que deliberei devo dizer a contragosto. Não por ele, mas pela certeza de que tornaríamos a examinar questões que eu considero definitivamente encerradas.

O golpe final, vibrado aqui no Rio, na manhã de 24 de outubro, contra o Governo Washington Luís representava um desfecho natural no curso dos acontecimentos e fazia parte do que oficiais altamente acatados no seio das Classes Armadas haviam prometido ao Rio Grande nos fins de setembro. Tudo dependia de que o nosso movimento ganhasse força e extensão. Se tal acontecesse e aconteceu com espantosa rapidez não seria admissível que o país permanecesse contenciosamente dividido, esgotando suas energias numa luta impatriótica, sobretudo depois que a autoridade do Sr. Washington Luís se reduzira à capital da República e ao Estado de São Paulo.

Impunha-se apressar o termo das hostilidades e começar vida nova. Os sentimentos da Nação já haviam transparecido mais do que incontestáveis.

Para que se tenha ideia do desvario em que o país se achava imerso, basta dizer que os matutinos cariocas de 24 de outubro publicavam em destaque a seguinte nota oficial: “É de absoluta tranquilidade a situação na capital da República, onde a ordem se mantém inalterada!” Parece inacreditável, mas, ao chegar aqui, fui ler os jornais e neles encontrei essa barbaridade. Logo abaixo, outro comunicado acerca da situação no front em que nos encontrávamos: “Na frente paranaense, mais uma vez cobriram-se de glória as armas da legalidade!”

Deposto o Presidente, que se portou com grandeza como se esperava, foi instalada a Junta Pacificadora, de que faziam parte o Gen. Tasso Fragoso, presidente, o Gen. João de Deus Mena Barreto e o Contra-almirante Isaías de Noronha.

O movimento aqui no Rio começou ao anoitecer de 23 e na manhã seguinte estava completamente vitorioso, sem o disparo de um tiro. Uma reprodução do 15 de novembro de 1889.

Entre as forças que vinham do Sul, formou-se no primeiro momento uma atmosfera de compreensível desconfiança em relação aos intuitos da Junta. O Sr. Getúlio Vargas não se considerava, e com razão, obrigado a aceitá-la como poder executivo da revolução, que deflagráramos numa hora incerta, correndo todos os riscos. A Junta prestara certamente um grande serviço ao país, porque extinguira, com o afastamento do Sr. Washington Luís, o motivo do prosseguimento da luta armada; não lhe assistia, porém, o direito de empolgar as consequências políticas de uma vitória que nos pertencia por todas as razões. Aliás, nenhum de seus ilustres membros pensava de modo diferente.

Causou, sobretudo, grande mal-estar a designação, feita pela Junta, do Gen. Hastimphilo de Moura, que era amigo do Sr. Júlio Prestes e comandante da Região de São Paulo, para ocupar o Governo daquele Estado. O ato fora ditado sem intenções políticas ou militares, mas sua repercussão logo agitou a nossa gente. Aos exaltados mais do que a quaisquer outros, e os exaltados sempre se acham na primeira linha de todas as rebeldias.

Vargas replicou categoricamente: “Entrarei com as forças do Sul no Estado de São Paulo, que será ocupado por tropa de confiança, resolvendo ulteriormente sobre minha ida ao Rio.”

Para evitar choques e prevenir suspeitas, o Sr. Ariosto Pinto, que aqui se conservara durante o período de 3 a 24 de outubro, foi enviado a Ponta Grossa a fim de dar explicações a Vargas e dissipar as reservas que se iam formando contra os novos dirigentes do país.

O Sr. Oswaldo Aranha tomou em Porto Alegre o primeiro avião e veio conversar com os generais. Seu objetivo era organizar-se, sem atritos injustificáveis, uma solução que, com o devido apreço pelos nobres componentes da Junta, preparasse a transmissão do poder ao Sr. Getúlio Vargas, tal como desejavam os homens que haviam desencadeado o levante de 3 de outubro, complemento militar da Aliança Liberal.

[...]

No dia seguinte pela manhã, muito cedo, acordou-me João Alberto. Ia, num trem especial, ao encontro de Vargas que já estava viajando para São Paulo, com o estado-maior e sua comitiva. Disse-me que havia apreciado muito a maneira pela qual eu, na véspera, encaminhara a discussão com o Secretariado e solucionara o problema. Achava que o difícil não havia sido conquistar a vitória militar; o difícil seria implantar a nova ordem com que todos pretendíamos dotar o país. Considerava necessário que um grupo dos nossos se dispusesse a uma ação uniforme, solidária e sem rivalidades. Com elementos assim identificados (e citou vários nomes, inclusive o meu) parecia-lhe possível alcançarmos os nossos objetivos. Os objetivos da revolução.

Limitei-me a ouvi-lo simpaticamente. Não lhe fiz parte de meus propósitos de afastar-me da atividade, nem aceitei suas sugestões.

No curso do dia andei revendo a Paulicéia. Eu era um antigo admirador daquela já então grande cidade e de seu povo. Várias vezes ali estivera a passeio.

À noitinha é que o trem de Vargas pôde atingir a capital. Pelo caminho, o povo o vinha detendo nas paradas e tributando-lhe retumbantes homenagens. Da estação ferroviária até o Palácio dos Campos Elísios, o cortejo gastou mais de duas horas. As manifestações sacudiam a cidade inteira. Descrevendo-as, em suas Memórias de um revolucionário, Aureliano Leite, meu caro amigo e esplêndido companheiro desde 1929, assim pintou o quadro com suas verdadeiras cores: “Não havia cortejo. Era uma só massa da estação aos Campos Elísios. São Paulo não se limitou a embandeirar-se. Estendeu nas janelas colchas e tapetes. Nunca, a não ser nas procissões de antanho, se praticou essa honraria.”

Juntamente com José Carlos de Macedo Soares, fiz o percurso no automóvel presidencial.

Ao chegar ao Palácio, chamado insistentemente pela multidão, Vargas pronunciou algumas palavras de agradecimento, declarando que aquele espetáculo não visava à sua pessoa, mas ao ideal que ele simbolizava, a insurreição do povo contra a onda de erros, injustiças e desmandos, que sepultara o Governo e o regime.

Logo que ele terminou, os apelos da massa dirigiram-se para mim, ordenando-me que falasse. Recusei-me a atendê-los até que o próprio Vargas me impeliu para a frente do balcão do Palácio, dizendo-me que não poderia calar-me.

Desde minha chegada a São Paulo e presenciando as primeiras escaramuças dos elementos avançados da revolução em relação aos homens públicos daquele Estado, convenci-me de que ali já se estava forjando uma nova luta para subverter os objetivos que nos levaram ao campo da ação militar. E os fatos posteriores infelizmente o confirmaram. Por isso, meu pequeno discurso procurou tocar logo o fundo do problema, com a preocupação de evitar que se criasse uma injusta prevenção entre São Paulo e o Rio Grande.

Fiz, em dois ou três parágrafos, a justificação do movimento. Mostrei que aquela cidade solidária conosco, justamente na terra do candidato adverso, evidenciava que não nos havíamos levantado senão contra dos defraudadores da República.

Terminei com estas palavras, que calaram enormemente na opinião pública: “Os exércitos do Rio Grande, que aqui chegaram no cumprimento de seu dever cívico e ao serviço dos ideais de renovação política, trazem um lema inscrito nas suas bandeiras: São Paulo, aos paulistas.”

Fácil imaginar o entusiasmo que estas palavras despertaram num auditório tipicamente bandeirante, de milhares e milhares de homens e mulheres.

Só muito tarde foi servida uma ceia no salão de jantar dos Campos Elísios. Dela participei, pois Vargas, que, como se diz na gíria, não chegava para as encomendas, me pediu que esperasse para falarmos ainda naquele noite.

Por volta de uma da madrugada subimos aos aposentos presidenciais, no segundo pavimento. Estávamos ambos visivelmente cansados. Depois de breve comentário acerca da recepção que lhe haviam feito, indagou: “Quando segues para o Rio Grande?” Entendi perfeitamente o alcance da pergunta, mas respondi como se não o houvesse percebido: “Devo ir lá no fim do ano. Amanhã parto para o Rio, onde minha mulher já se acha desde ontem, segundo me telegrafou.”

Vendo que não dava resultado a construção indireta, colocou a questão no vértice que lhe interessava: “Não é isso; quero saber quando vais assumir o Governo do Estado.”

Contestei imediatamente: “Mas eu não vou assumi-lo, como te escrevi de Cachoeira logo depois de 3 de outubro. Tanto que te mandei meu ofício de renúncia à Vice-Presidência. Isso, aliás, já nem tem mais sentido, pois a revolução extinguiu toda a ordem constitucional do país.”

Ele ficou um momento calado. Depois insistiu para que reconsiderasse minha deliberação, empregando vários argumentos. A conversa não foi longa. Eu estava aflito por encerrá-la. Roguei-lhe que me dispensasse de dar outras razões. Despedimo-nos cordialmente, e eu tratei de recolher-me ao Esplanada. O tempo mudara e, apesar de estarmos na primavera, caía uma forte garoa.

Pela manhã foi ver-me meu antigo condiscípulo de ginásio e bom amigo Eng. Fernando de Abreu Pereira. Era o Diretor da Viação Férrea do Rio Grande e viera conosco, assumindo pelo caminho a chefia das demais estradas de ferro. Levou-me duas passagens e o número da cabina do comboio da Central do Brasil em que, naquela noite de 30 de outubro, Vargas, seu estado-maior e comitiva viriam para o Rio rumo ao Catete. Uma das passagens era para mim, a outra para o meu secretário Paulo Godoy, que nos acompanhara na travessia.

Desde cedo, eu assentara comigo mesmo não vir no trem oficial. Não queria continuar naquele constrangimento de figurar ainda como prócer revolucionário quando já me achava com o pé na vida privada.

Paulo Godoy conseguiu comprar duas passagens para o trem noturno comum, o qual devia sair quase ao mesmo tempo que a composição presidencial. Por essa forma imaginava que chegaríamos ao Rio pouco depois de Vargas, o que me pouparia de tomar parte nas manifestações planejadas aqui na antiga capital da República. Os jornais anunciavam a organização do cortejo pela Avenida Rio Branco, e lá estava no programa do desfile um carro destinado a mim e a Juarez Távora.

Durante o dia andei passeando, vendo amigos, matando saudades de São Paulo, mas não disse a ninguém que tomaria o trem de carreira. De resto, a cidade continuava em festas, e toda gente não fazia outra coisa senão entregar-se ao júbilo pela vitória da revolução. Quem, como eu, viu aquela unanimidade, aquela sólida base humana para sobre ela edificar-se a nova República não pode entender como nem por que logo depois os vencedores, ocupando o Governo do país, açularam ou permitiram as lutas e rivalidades que dividiram sob a bandeira da constitucionalização imediata. Mas essa é uma outra história.

Ao anoitecer, encontrei-me junto com Paulo Godoy no noturno de carreira e, da janela da minha cabina, vi quando deslizou, iluminado e embandeirado, o trem presidencial, debaixo de aclamações tão estrondosas como as que haviam na véspera acolhido o chefe do movimento.

(Memórias, vol. 2, A Aliança Liberal e a Revolução de 30, 1963)