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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Candido Mendes de Almeida

Helio Jaguaribe e a Militância da Racionalidade

Helio Jaguaribe e Roland Corbusier visitaram Karl Jaspers em Basiléia, em 1955. Mais do que um encontro com o filósofo, marco da perspectiva existencial no recado maior do século XX, o que os brasileiros buscavam, instintivamente, era a noção da relevância em que uma primeira geração nossa se rebelava à cultura ornamental, típica da vida do espírito do país ainda dependente, e à própria convenção de sua ruptura. Nenhum grande pensador do século XX foi tão longe em trazer a procura do sentido à História, em toda a sua dorsal. Jaspers atentava a como esse percurso se devolve e se corrige em saltos, impelido por uma nova intelecção, pela qual se cria uma mundanidade, e se escreve a aventura, sobre a crônica do homem.

A História tem, pois, relevo e se pauta pelo “tempo-eixo”, frente ao qual uma leitura interna renovada a define, em contracampos, épocas canônicas, como de esterilidade, de ruptura, como da quebra dos supostos dessa trajetória, na retomada de um questionamento de certezas, reconhecendo-se a infinita querela do seu fundamento. Rematava-se, nessa idéia-força, a tradição herdada, de Dilthey e Husserl, do novo referencial epistemológico como passo decisivo da modernidade na desconfiança radical do cogito e do discursivo, se não da arrogância ingênua do humanismo renascentista.

A noção do tempo-eixo guarnecia, nessa hermenêutica emergente do cuidado e na percepção de realidade, a busca do significante que o processo da nossa cultura prosélita reclamaria. Este, nós o viveríamos até a caricatura, quando a Semana de Arte Moderna, nos anos 20, protagonizou a modernização como pantomima, no cenário mais que adequado do Teatro Municipal da Paulicéia, com a repetição da pirueta cansada de Marinetti, no confronto à Belle Époque, ao fim da primeira década do século.

A “Semana” da Paulicéia desempenhava ainda o último lance do mundo interior da dependência, tão bem assinalado por Henri Michaux: “Oh! o beletrismo tropical, sempre em reflexo, jamais em reflexão.”

Helio chega à Academia no ano do cinqüentenário do ISEB. O Instituto que ele criou nascia, historicamente, da percepção do impacto do desenvolvimento, como desatar do imobilismo ou saída de nossa história circular. Exprimiu o meio século um primeiro confronto determinado com a inércia de um pensar brasileiro, à falta ainda de uma tradição humanista universitária, e no avanço pontual do seu conhecimento científico, de castigado pioneirismo, ou sôfrega canonização.

Esse sentimento irrompia no Rio dos filhos-família, do Santo Inácio, das Faculdades Católicas, do Palácio Joppert, do Padre Franca, onde Helio continuava a interpelação contra o peso das apologéticas da cultura confessional brasileira. Da leitura do Padre Lahr, da veemência catequético-metafísica do Padre Arlindo Vieira ou Pedro Cerruti; ou, no plano dos cânones imitativos, dos clichês da “Águia de Haia”, da confusão da cultura com o prodígio lingüístico, ou com a erudição, no seu viés tão inútil quanto retórico, do atletismo dos dicionários estacados na letra A, como os infindáveis cantos do Mahabarata.

Por uma vez, entretanto, tratava-se de um “mal-estar” contagiante, capaz de associar o Clube Pégaso dos rapazes cariocas – de Helio, José Paulo Moreira da Fonseca, Roberto Paulo César de Andrade, Jorge Hue – a um inconformismo paulista, insatisfeito com a acalmia pós-modernista. Nascia – com a iniciativa inédita entre as inteligências das duas megalópoles – o Grupo de Itatiaia, cioso de sua perfeita fronteira, buscando rever os conteúdos de uma interpretação do país. Pretendia quebrar o discurso da contemporaneidade, preso àquelas constantes de um universal acrítico, exposto pela hermenêutica jasperiana. Marcavam-no a enciclopédia marxista, como a permanência do positivismo – em si mesmo, sintoma da nossa excessiva mimese – e o começo de pergunta pela realidade, de Oliveira Vianna a Sergio Buarque de Holanda.

Helio, Roland Corbisier, Almeida Sales, Guerreiro Ramos, José Ribeiro de Lyra, Paulo Edmur de Souza Queiroz e Rômulo de Almeida se associavam no recado da grande e exata pretensão: a dos Cadernos de Nosso Tempo, onde se encontra, talvez, a única e efetiva colaboração entre uma inteligência paulista e uma carioca, em pensar o contexto malbalizado do país partido, ainda, tão impressentido, nas suas contradições.

O ISEB seria o resultado, nascido quase armado, de uma exigência da nossa nascente interpelação interior, irrompida quando o juscelinismo nos inseria no “tempo-eixo”, dos “50 em 5”. Guardava como pano de fundo o primeiro momento de maturação, súbita e única, de uma consciência brasileira acicatada pelo suicídio romano e fundador de Getúlio Vargas. O ISEB nascia contra o torpor universitário – palavra tão cara a Roland Corbisier – e frente ao último proselitismo da busca da tecnicalidade e do cientificismo demandado no exterior, da fascinação pelas ciências exatas.

O impacto dessa aceleração histórica não só forçava o destaque de órbita da dependência, como pedia um novo referir brasileiro. Exprimia – sob a consciência jasperiana – o começo da política de “toma de consciência” na percepção do processo social. No seu recado de hoje, mais que nunca, Helio herdou esse imperativo de ver o nosso tempo escandido em prazos históricos, momentos de decisão ou desfecho, tanto passava a reclamá-lo uma coletividade “para si” e não “para outrem”. Não era outro o novo mordente de geração, ou do “ser de risco”, da demanda de Sartre, a se somar à reflexão existencial, ibérica ou alemã, ao levar à reflexão radical o que representavam os colonialismos, seus sistemas e sua alienação.

Na perspectiva da crítica paulista, passada outra trintena, Caio Navarro de Toledo denominaria o ISEB de uma “fábrica de ideologias”. Na verdade, tratava-se de integrar, de vez, o racionalismo ao desenvolvimento, no que o querer político – segundo a concepção heideggeriana da verdadeira poesis – labora um “ser de fundação” e exige, para gerações implicadas pela mudança radical, uma denúncia dos voluntarismos ingênuos, do alcance das reformas das instituições, ou o desatar-se mesmo da sociedade, na palavra intraduzível da mouvance, de Lévi-Strauss, ou do “inacabado perene”, de Pierre Bourdieu. É o Helio de Cadernos de Nosso Tempo que nos deixa com as primeiras visões seminais da verdadeira arquitetura das causações sociais, em que desponta uma cultura crítica e a percepção, em ato, de um tempo de mudança, como pedido pelo desenvolvimento brasileiro.

Aí estão os textos canônicos, também de 50 anos, “O Moralismo e a Alienação das Classes Médias” e “Política de Clientela e Política de Ideologia”. A revista morreria – como é próprio das publicações inaugurais – no seu quinto número. Mas não sem plantar o caminho discrepante à convenção do pensar as nossas categorias de “ver o mundo” e emprestar-lhes o começo dessa reflexão referida em tempos ainda desmunidos da hermenêutica da desconstrução, de Jacques Derrida, ou dos “reconhecimentos” de Paul Ricœur. É a etapa de A Redução Sociológica, de Guerreiro Ramos, e, sob a melhor gnose crítica, da dialética da ingenuidade da nossa representação coletiva, na obra-matriz de Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional.

O programa isebiano trabalhava a marca clássica de uma propedêutica humanística brasileira. Queria-se inclusive eclético, sem se aperceber dos limites de ruptura imposto por essa abordagem. Nela, todo o referir-se à realidade está permeado por uma intentio escrutinadora; por um depósito cultural, para se dar conta da apropriação de uma modernidade, no conteúdo da ciência política ou da sociologia. O intento ia à retorsão sobre o compreender, a resultar na literal metanóia de Vieira Pinto, o comentador do Timeu, de Platão, antes de se abrir à epistemologia radical de seu cometer-se, do ver de novo para entender o Brasil.

Helio Jaguaribe associou mais do que o rasgo de um tempo-eixo brasileiro, como presa acabada, trazendo-o à Rua das Palmeiras. Expôs-se, na cumulação da consciência e suas reificações instantâneas, às próprias polêmicas redutoras dessas ideologias, que marcaram o debate do seu O Nacionalismo na Atualidade Brasileira e a fatura do primeiro ISEB.

O pensador que rompe e sai do Instituto, no movimento em que o acompanhamos – Evaldo Correia Lima e eu mesmo –, como que ganha o largo compasso de uma atualidade internacional. É o seu tempo de Harvard, e onde pode nos dar o que, unanimemente à época, se reconheceu como a obra-chave da teoria política no desenvolvimento. O texto transformou-se no vade-mécum de toda a geração subseqüente dos brazilianists. Tornou-se a interpretação continuada daquele Brasil “para si”, que prossegue, frente ao inverno militar, à cassação da reflexão crítica, ao exílio dos membros do CEBRAP, ao começo do IUPERJ, como esforço de reflexão proibida pela própria sintomática da nova representação e da prática da mudança, vencida à contra ideologia, em que a Escola Superior de Guerra replicaria ao ISEB, primeira organização cultural fechada pelo governo de exceção, dispersa a sua biblioteca, no minucioso esquartejamento simbólico.

Nesse encontro do Brasil-projeto, como permitem o desenvolvimento e a irrupção de modelos diante de uma sociedade vista como aberta, a geração isebiana deparou o papel do intelectual, ou da intelligentsia, ao assumir, com todo o risco da conduta ideológica, a busca de um quefazer histórico. Ficávamos entre a aspiração, o conselheiro do príncipe e a imersão, sem retorno, no próprio processo político, enfrentando a representação eleitoral e as lacerações da campanha, na servidão da legenda, da frustração com o desempenho parlamentar, de que, anos antes, Santiago Dantas nos dera, como deputado pelo PTB de Minas Gerais, o mais contundente dos depoimentos.

Em tempos latentes de tantos protagonismos – e sem recorrer ao insuportável chavão do homem renascentista –, Helio viu-se urgido, também, no melhor modelo schumpeteriano, pelo comportamento empresarial. Não só na reformulação da Companhia Ferro e Aço de Vitória, inaugurada a semanas do colapso do Governo Goulart, mas, sobretudo, no propósito, insidiosamente criativo, da Latinequip ou de uma primeira empresa que juntaria a produção de um saber-fazer, valorado em todo seu intangível, a uma dimensão precursora, em fins dos 50, de um mercado latino-americano.

Foi, ao mesmo tempo, na expressão dessa latinidade brasileira, derramada sobre a Argentina, sem dúvida, hoje, o mais exigido dos nossos pensadores, ao formular a visão nodular do continente, a partir de Buenos Aires. Com Aldo Ferrer, Torquato di Tella ou Natalio Botana, deu-nos essa rede de contato e sobretudo de interpelações, a envolver com a capital, Córdoba, Rosário e Mendoza a pergunta continuada por uma visão-matriz da mudança, capaz de vencer em definitivo as confrontações compulsórias com a comparação a menor, e os fracassos periódicos, dos desenvolvimentos brasileiro e argentino.

Mas é um Helio pertinaz, esse, também, da conversação contínua com o Uruguai de Enrique Iglesias, com o Chile de Gabriel Valdez e Aníbal Pinto, ou o México de Porfírio Muñoz Ledo, então presidente do PRI. Desenvolvia-se, com o confrade que hoje recebemos, uma verdadeira pedagogia do poder latino-americano, amigo e confidente de Raúl Alfonsín ou, no México, de Miguel de la Madrid e Luis Echeverría Álvarez, disputando a contínua interlocução sobre os modelos de desenvolvimento. Defrontava-se o repto do neoliberalismo, sempre mensurado ao limite da Realpolitik, a efetiva plataforma de que pudesse resultar, ainda, o Estado-nação entre nós, no arranco do novo século, nesse percurso final, ao lado do Brasil, do México ou da Argentina.

O mesmo Helio jasperiano é também o do fascínio original por Ortega y Gasset, de cuja leitura vivíamos, todos, nas então Faculdades Católicas, e na insatisfação com os saberes oficiais da Suma, que o maritainismo nos oferecia para um tempo prospectivo, como o dos anos 60. Beneficiávamo-nos, à época, da cópia das traduções espanholas do grande pensamento alemão da modernidade, pelos exilados republicanos do Fondo de Cultura no México, a partir de José Gaós, responsáveis por este verdadeiro curto-circuito, no acesso internacional ao pensamento europeu, vulnerado pela II Guerra Mundial.

Vivemos uma contemporaneidade com O Ser e o Tempo, ou com a Teoria da História, ou com Verdade e Método, antes mesmo de que as traduções francesas e inglesas desses textos criassem a consonância esperada com a possível paidéia do nosso pensar, até o terceiro quartel do último século.

Helio, de mais e mais, enjeitaria a carreira modelar do exilado voluntário – tal como Celso Furtado – para fazer do seu Instituto, na volta, a retomada da tarefa interrompida pela dupla radicalização do compreender brasileiro do começo dos 60, do marxismo ressurrecto e da geopolítica da ESG. O IEPES vai permitir a fixação da memória e da interlocução das grandes conversas sobre o Brasil, então interrompido, de Santiago Dantas, Roberto Campos ou Rômulo de Almeida.

Helio não enjeitaria a grande convocatória política quando o Governo Collor, à exigência ainda de responder à expectativa de seu mandato, fora de todas as rotinas eleitorais, constituiu o Ministério de Notáveis, com Marcílio Marques Moreira, Celso Lafer e Célio Borja, ocupando ele a pasta de Ciência e Tecnologia. Não se repetiu, então, a síndrome descrita por Santiago, dos intelectuais no poder travados pela opacidade ínsita à trama palaciana. Deve-nos a história contemporânea o relato dessa consciência, se não da tragédia, da chegada a Palácio de uma equipe capacitada à dialética real da vigência política, sem concessões, trazida ao impasse da credibilidade, ao abate-cidadão do Príncipe.

Nessa etapa, em que as “vozes fundadoras” da nossa mudança passam, no trânsito canônico das gerações, a pedagogos de um destino, Helio desdobraria, com Celso na sucessão da mesma cadeira, o chamado à urgência do desenvolvimento, como seu antecessor nos repetia, na importância da tônica nacional contra a voragem da globalização.

De livro a livro, não ainda como Cassandra, nosso novo confrade nos adverte do castigo do não atingirmos a sustentabilidade do desenvolvimento, que tem prazos infranqueáveis para escapar do círculo vicioso da torna à inércia social, ou à frustração das salidas – outra palavra de Santiago –, para atingirmos a aura das derradeiras possibilidades de um Estado-nação, neste arranco do século. No perseverar dos fundadores, o Helio da grande maturidade vai ao repto radical, do maior entender. Entrega-se à tarefa única, que é em si mesmo um exemplo do adensamento da cultura brasileira e também dos riscos do seu grande impulso.

Não temos, no repertório de nossa vida do espírito, tarefa da magnitude de Um Estudo Crítico da História. É como se a voracidade do sentido e o desatamento do compreender de uma inteligência, sucessivamente coartada do seu projeto, impelissem ao despojamento das últimas miradas. Helio vai a Toynbee, exatamente, no que marca o quadro de um pensamento do Brasil-projeto, após o vir-a-ser orteguiano, que nos mobilizou sem retorno. Manifesta-se na ambição da obra a máxima guinada sobre o que importa a uma geração crítica: o desenho da totalidade, por mais que temerária, para definir o portento do lance e, a seguir, o destramar de sentido. O paradigma toynbeeano de Helio – sem paralelo em todo cometimento das ciências históricas do Brasil – não se demite em nada do esforço meticuloso dos aspectos inéditos que apresentou, entre nós, de busca das fontes, interpelação das competências especializadas, continuada autocrítica dos seus resultados. A vencer uma síndrome da subcultura, Um Estudo Crítico da História trouxe, à sincronia do nosso tempo, a participação de uma mesma problemática e seu pulsar.

O empenho do novo confrade vai além de uma etapa da maturidade de nossa cultura no plano da História e das Ciências Sociais, em que o sério pode se identificar com o estrito apuro das fontes; com a nitidez do dado, sobre o impressionismo mesmo da conjuntura, sobretudo no contexto de uma história rala, pobre de lances, e de brechas de sentido, da nossa pertinaz condição semicolonial.

Helio nos convoca ao enciclopedismo diante do monográfico, para além da bateia estrita da informação, cujo afinco pode crescer, de par, a insensibilidade com a relevância. À grande teoria, Jaguaribe propõe outro e voraz empenho: o do sustento da racionalidade no acontecer, a partir do princípio antrópico, com todos os riscos, na plena consciência do questionamento pós-moderno de uma teleologia, ao se perder na complexidade de nosso tempo. A crítica a essa mesma pós-modernidade não se furta ao questionamento da hermenêutica aberta, que impõe a verdadeira desconstrução continuada do cogito, em nossos dias, de Lyotard, Derrida, Jean Baudrillard, ou mesmo de Gilles Deleuze.

A contestação do relativismo absoluto por Helio se mostra eivado de uma nostalgia do logos. No seu entendimento da causação, apetrechada por fatores, ideais materiais, o acaso ou a liberdade, ele se perguntaria até onde a proposta sartriana da “tomada de consciência fundadora”, do in prompto da liberdade sobre o acontecer, evade, continuamente, a singularidade de onde se faz, inescrutável, o desfecho final do sentido. Um Estudo Crítico de História leva Helio a reencontrar, sempre em termos cautelosos, na forma de “condições de possibilidade”, essa busca do advento do homem a partir das culturas, sem deixar de impor-lhe a finitude de paradigmas e seu clímax, seu repetir e sua destruição.

A História fez-se para Helio, e como a vê Heidegger, com essa toma de posse da “Casa do Ser”, em que, de toda forma, confina a busca do sentido. Não temos êmulo, na ambição do seu questionamento, que melhor se inscreva como uma virada de página da nossa cultura prosélita.

Nesse remate, como que deságua a fidelidade de Helio à luta contra o depósito das idéias recebidas, ou o argumento de autoridade que só se fortalecia no quadro em que a excelência do ensino, para a elite da época, se vinculava ao confessionalismo da formação. No próprio Santo Inácio, Helio, para espanto dos seus colegas, se identificava à prematura afirmação de um agnosticismo que resiste até hoje como linguagem da modernidade humanista, do questionamento do “ser no tempo”, para se perguntar de sua historicidade e da transcendência. Ou, hoje, na sua defesa da transimanência, que vê como a verdadeira moção do homem no cosmos pelo princípio antrópico, na superação continuada, pela liberdade racional, da inércia circundante.

Nesse rigor da provação do absoluto, Helio não se satisfaz com o descompromisso perpétuo da filosofia analítica, nem com os avatares do materialismo novecentista, nem, sobretudo, com o fascínio fácil do teilhardismo, nas versões simplificadas do mesmo princípio antrópico, que levará às últimas conseqüências. No mesmo laivo, ainda, da mimese, continuamos, no Brasil, teilhardianos, como fomos positivistas tardios.

A amplitude da perspectiva de Helio seria necessariamente cobrada pela intransigente racionalidade, em que baliza o próprio contorno do comportamento significante e da aventura do homem. Jaguaribe configurou-a contra todo ímpeto ou contra toda exigência da “finitude inconclusa” a que se referem Ricœur, Lyotard ou Baudrillard, a expor-se mais, ao que a liberdade dê ao real concreto toda a dialética aberta da diferença. O logos intransigente de Helio nos leva sempre de volta à menagem da natureza. E não escapa da aporia de que o homem se guarnece sempre de um sistema interno de ajuste à realidade; aos jogos, pois, de interação com a circunstância e ao caveat que Helio impõe à afirmativa de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas, “mas se esta afirmativa se restringe aos limites da esfera antrópica”.

Para além do cutelo analítico de Jaguaribe, indagaríamos do différent lyotardiano para se configurar a História como o resultado da interação dos ditos fatores reais, ideais, da liberdade e do acaso. É essa concausalidade homogênea que se altera, por exemplo, frente ao impacto do inconsciente coletivo. Permanecemos numa visão do contínuo do nosso tempo de sentido, mal exposto ainda aos fractais da sua seqüência? Ou, como querem os pós-modernos, uma contabilidade estocástica do evento nos exige mais na definição dessa liberdade como “acidental necessário”, quando os atos fundadores vão para além do luxo do cálculo ou da vontade?

Na riqueza sutilíssima de seu percurso da razão, Helio, afinal, contingencia o implícito na sua regra de entender o mundo e ver-nos no seu imo. É o ajuste estrutural do homem a seu dintorno, a nos dar a cadência passiva à primeira determinação, a talvez deixar de lado esse “mais” de adaptação, por onde irromperam, na inércia do cosmos, a vida, a consciência e o tonel das Danaides da complexidade.

À meditação dramática da contingência a que nos convida Jaguaribe, ficou-lhe talvez a demasiada sedução pelo logos e a trazer o belo a períodos absolutos, onde se tornou prisioneiro, exaustivamente saciado, da Renascença e do Iluminismo. E seu veredicto é também o da definitiva expressão apolínea para o humanismo contemporâneo. Os limites impostos pelo princípio antrópico excluem a possibilidade de um contínuo progresso qualitativo da arte e tem outras implicações mais amplas. A conseqüência desses limites da excelência da ação humana – conclui Jaguaribe – está em que a cultura só pode repetir os padrões já atingidos, ou destruí-los.

O mais articulado dos pensadores do ser histórico entre nós, o confrade que hoje recebemos, exaure a sua lição na defesa agonal da racionalidade, para garanti-la por toda leitura da História como “condições de possibilidade”, distinta e definitivamente assentada. Expõe-se o jogo dessa trama à corrosão do negativo, de Slavoj Zizek, no acontecer, ou às dialéticas do tempo débil, de Gianni Vattimo, ou ao impacto do reducionismo, de Georg Lukács, por sua vez oferecendo novos cenários ao dizer do homem, para além do “à-vontade do cogito” em meio ao contraponto totalitário da contradição. É a Helio que devemos a resposta em defesa da complexidade, diante da tentação da racionalidade linear, na acolhida do aleatório, da retroação e no verdadeiro vestíbulo da historicidade. O que fica, à frente, na visão de Lucien Sève ou de Camille Ripoll, é a dialética cumulativa, a nos permitir, para além da concasualidade, o conceito de emergência, e suas variáveis, não só abertas, mas a superar a dicotomia entre o universal e o singular.

O acadêmico que hoje recebemos nos garante essa grande interlocução contemporânea, e exatamente no chão mesmo do sentido, da premonição de Jaspers às grandes leituras e seu processo. Seu novo passo vai a Scheler, para nos dar a posição do homem no cosmos. É como se ficasse como legatário do cursivo completo do pensamento do século XX, a nos arrimar para o salto mais brutal do acontecer de que somos contemporâneos, na aceleração ou na ruptura em que, após Hiroshima e a queda do Muro, deparamos a sublevação do racional, após o abate das torres de Manhattam. Eis-nos no advento a reptar a antropia do irracional dos inconscientes coletivos, da luta pela diferença, baixada à identidade escura do homem, como a matéria invisível do cosmos, cativa da “civilização do medo” e dos discursos fundamentalistas da hegemonia.

À frente do portento de sua obra e do que nos promete exatamente pelo excesso de lucidez, aguardam os contemporâneos de Helio que possa, para além das seduções, por Toynbee, por Sorokin ou, sobretudo, Weber, e valendo-se da desconstrução epistemológica contemporânea, explorar plenamente a tensão entre a identidade e a diferença. O Helio goethiano que ora começa, equipado de maneira incomparável para esta reflexão e a para o compromisso da hermenêutica do nosso tempo, nos repta a esse “estar no mundo” que efetivamente se modifica e nos expõe, enfim, à perturbadora verdade da História.

Esta é a sua Casa, Acadêmico Helio Jaguaribe.