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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alcides Maya

RESPOSTA DO SR. ALCIDES MAYA

 

SR. GREGÓRIO DA FONSECA.

Deparou-se-me num dos vossos ensaios, de fino lavor e sutis conceitos, o seguinte, digno de ser citado ao receberdes a saudação desta Academia:

“Pelo infinito desconhecido que idealiza, a arte pode ser também uma religião.” Pensáveis assim em Estética das Batalhas, lamentando que a arte, ainda hoje, “se mantenha um culto sem organização ritual”.
Era de modéstia, de encantadora modéstia espiritual, assaz conhecida e apreciada por todos os vossos amigos, o íntimo sentido dessas linhas, pois acrescentastes:

Em toda religião sempre há uma barreira intransponível entre a grande casta dos crentes e a pequena, dos sacerdotes, únicos investidos do poder secreto da divindade.

Em arte, cabe somente o pontificado aos senhores dos mistérios do culto – aos artistas... Sou um normal em crenças; as minhas supremas aspirações estéticas atingiram ao limite: amando a arte, servindo-a com fé convicta, que se aproxima da idolatria, sem jamais a profanar, fazendo-a. Na superstição máxima do meu culto, parafraseio Descartes: se pensar é viver, a arte é a vida intensa.

E no meu santuário, um minúsculo gabinete de leitura, aproximo-me da felicidade quando, em um quase dormir, esquecimento de tudo que está longe de mim, sonho, gozo o prazer supremo de viver interiormente horas inteiras fora do tempo que passa; sonho, compreendo o invisível e sinto fulgurante a delícia de pensar, a delícia de existir. Acordado, de volta ao turbilhão da vida prática, ainda sou um feliz, um forte, um sadio, diria um fisiologista: não me recordo do sonho, tenho incapacidade completa em repeti-lo e nem sequer me importuna a mais leve lembrança dos fulgores sonhados. Isso demonstra exuberantemente ser eu a negação do artista: artistas são repetidores natos do sonho, imortalizadores do ideal.

Tais palavras, que vos nasceram do coração, num trabalho de pura crítica, votado ao gênio de altas civilizações, através de poemas, telas, estátuas, monumentos, escolas e sistemas, exprimem discretamente o mesmo delicado sentimento em reflexo nestes períodos tocantes a cerca de Joaquim Nabuco:

A Cadeira de Nabuco! venho ocupá-la comovido, não, porém, humilhado. O piedoso Carlyle, que criou a nobreza do heroísmo para os poetas, dando à Poesia o sentido profundo de percepção do mistério sagrado do Universo, concede a honra de artistas não somente aos que pontificam, também aos que apenas percebem os ritos. Quem sente o sagrado calafrio estético ao meditar a Divina Comédia tem, ainda que em pequeno grau, alguma cousa das faculdades de Dante, – doutrina o apóstolo do culto à Arte. A inteligência criadora, penso, é como a graça divina: em irradiação intensa, cega São Paulo; mas qualquer presbítero humilde, que anuncia o Cristo, possui imanente a centelha dos mesmos raios, diferença apenas de intensidade.

Aludistes depois ao dom admirativo, de profundo amor que, misticamente, sublimava, ante os primores da terra e dos céus, o plácido semblante de Frei Masseo de Marignan, cuja breve canção, de puro enlevo, quereis seja a vossa. Porque “chego, por vezes, a esquecer-me do que sou, para deixar-me absorver por aquilo que admiro”.

Percebe-se, desde logo, o intento que vos guiou ao nosso recinto; nem éreis obrigado a escolher coleção para a vossa imagem, em pósteras evocações de um instituto que vindes assistir com virtudes de preclaro caráter e luzes de raro engenho.

“Não alimento ilusões – asseverastes: na galeria dos nossos imortais serei, em futuro não remoto, busto com etiqueta perdida, e, nos anais acadêmicos, um nome sem renome”.
E também: “Outros na colméia acadêmica produzirão o mel delicioso: eu louvarei o doirado dos favos, o perfume do néctar, a perfeição do fabrico.”

Ah! sabíamos, bem sabíamos...
Entretanto, heis de permitir, sobre o tema versado em vosso discurso, nova citação, que se lhe ajusta:

Il est si doux, si beau, de s’être fait soi-même,
De devoir tout à soi, tout aux beaux arts qu’on aime!

Lindos versos, versos consoladores, estes, de André Chénier; e como, expressivamente, interpretam a alma dos intelectuais da vossa classe, Sr. Gregório Fonseca! Reproduzindo-os, pretendemos dizer-vos a meia voz, carme a carme, em confidência que não vos melindre – antes de mais demorado exame da vossa personalidade – quanto prezamos certos atributos inerentes a ela.
Simpática, em verdade, a tarefa de vos entender, nas harmonias de sentimento e idéia, de vida e de arte!

Sois na geração a que pertenço um dos melhores exemplos de unidade moral. Sois um poeta e um homem de vontade, um afirmativo, de reto e sereno ajuizar, e um criador imaginoso de sonhos. Projetais no plano comum da existência a beleza de superiores perspectivas. As normas valem, no vosso sensório, como princípios animados; a realidade somente vos impressiona transfigurada; pensais defrontando com visões submetidas a leis. Conversando-vos, ouvindo-vos, lendo-vos, recebemos invariavelmente uma impressão dupla, de forma e pensamento fundidos. Sem dúvida, surgis como um idealista; mas um idealista lógico, um idealista que aviva a geometria, antropomorfiza esteticamente a mecânica e descobre nas esferas celestes ritmos e ritmos, numa palavra, que espiritualiza a matemática, assim como, por método e gosto ínsito, tende a simetrizar o Belo e a sistematizar a própria idealidade. Quem, se não o autor d’O Ciúme dos Deuses, sentenciou, nestes peremptórios termos, entre as verdades particulares da ciência e as representações da arte?

“A ciência (lá está) é, as mais das vezes, ilusão da realidade; a arte é sempre a realidade dentro da ilusão e do sonho. Também a matemática não se isola do relativismo enganador das outras ciências, não se refere a realidades absolutas, mas a hipóteses”, – afirma Stuart Mill, “a convenções”, – sustenta Poincaré, ambos eminentes geômetras. Na aplicação ao real é que participa da verdade dele. Para a sensação das distâncias (notai: para a sensação das distâncias), prefiro a arte ao metro. Quando um sábio me afirma que da Terra a Sirius vão tantos milhões de bilhões de miriâmetros, tenho ímpetos de visitá-lo em trem de ferro; ao pensar na frase artística de Pascal: “Assombra-me o silêncio eterno desses espaços infinitos”, imobiliza-me uma impressão nítida (vede bem: uma impressão, nítida) entre mim e Sirius: – o abismo. Não acreditei no átomo, nem creio no absoluto da lei de Newton; juro no entanto que o príncipe dos filósofos, Aristóteles, foi axiomático ao dizer: “A poesia é uma cousa muito mais séria do que a ciência e a história”, esmagando Platão, que audaciosamente esculpia no pórtico da sua República: “Aqui, só entram os geômetras.”

Fora talvez possível registrar irreverentes demasias especulativas em O Ciúme dos Deuses, ensaio cujas filigranas de estilo deixaremos à parte, considerando-o apenas como um documento psicológico. Feito é da presente oração revelar notas matrizes de um temperamento mental.
Que forte e mordente, o timbre escolhido para marcar, em produtos do gênio, a superioridade das criações artísticas sobre as descobertas da ciência!

É triste precisar de gênio, dizeis com ironia, Sr. Gregório Fonseca, para descobrir a lei dos ângulos internos dos triângulos, cousa perceptível com pedacinhos de papel cortado; e é doloroso ver Arquimedes nu pelas ruas de Siracusa, ao aprender a relação existente entre a diminuição do peso do seu corpo e a água extravasada na banheira. Em contraste, como seria glorioso o orgulho de Fídias, no silêncio de uma tarde ateniense, a contemplar iluminado, colorido pelo sol occíduo, o Parthenon, alto, sobre a Acrópole! Foi por compreender o nada do saber humano que d’Alembert, o geômetra eminente descobridor de métodos e fórmulas transcendentais, depois de consumir a maior parte da vida na aridez matemática, exclamou com a Aminta do Tasso:

È perduto il tempo che in amar non se spende.

Comparai a humilhação resignada de Kepler, sábio genial, com a sobranceria de super-homem de um artista de gênio, Miguel Ângelo, por exemplo. Ao terminar esse livro extraordinário, a Física Celeste, Kepler, convencido da existência de um mundo fenomenal infinito, que nem de leve perscrutara, escrevia em prefácio: “Perdoai-me, Senhor, se, simples verme da terra, ousei levantar uma ponta do véu que encobria os vossos mistérios.”

Atentai agora em Buonarotti, ao dar o último retoque ao Moisés: – Parla! – brada, num gesto largo de desafio, ao “outro”, o criador de estátuas falantes...
Esse Outro! Esse! Nos formosos quadros, de ostentosa moldura lendária, de O Ciúme dos Deuses, Ele não passava de... um dos outros, de todos os outros, magníficos e vindicativos, que vitimaram a Prometeu, o gênio amigo dos homens, o decaído titã, criminoso ao olhar percuciente das divas potestades, e que afrontou milênios de castigos olímpicos por haver roubado, em benefício nosso, o fogo sagrado; mas, titã, ainda assim, vitorioso, pela ascendência do amor, que ensinara aos mortais, aperfeiçoando-os, embelecendo-os, sublimando-os.

Destacado o símbolo, pode dizer-se, em arte (eis o argumento central de Ciúme dos Deuses) domina, exclusivamente, o amor, que produz a Némesis vingadora dos olímpicos. Esse conceito ressalta evidente em todas as tragédias gregas, livros sacros, que, precedidos da teogonia hesiódica e da Ilíada, constituem a bíblia dos poetas.

Em obra anterior (Estética das Batalhas), a mesma idéia repontara em inspiradas folhas, em claras regras harmoniosas, em admiráveis iluminuras, em pequenas telas perfeitas, de firme traço nas figuras, de colorido indelével, de massas bem distribuídas em amplos panoramas.
Une-as o senso de beleza plástica e épica, a luta, que “será eternamente oceano de inspiração a escultores, pintores e poetas de gênio”.
Ouvi um trecho sintético:

A primeira manifestação estética do homem foi necessariamente um episódio de luta, reflexo da vida diária: luta pela existência contra os elementos, enfurnando-se; luta contra a fome caçando, dominando os animais mais fracos; e, quando a luta o assoberbou, quando os poderosos contrários, as feras fortes, a natureza brava, se aliançaram para vencê-lo, criou Deus. Deus é um episódio da luta, divinização do invencível, do vitorioso. O homem primitivo, insculpindo o primeiro fetiche, e adorando-o, contava egoisticamente com ele para a vitória. A batalha, embate coletivo, prevalece como soberano modelo das artes: luta ampliada, vasta, multiforme, caleidoscópio desmedido e variado da pose e da linha, onde assistimos ao entrechoque de todas as paixões e de todas as virtudes que ascendem à gloria.

Porfia com deuses, celebração dos aspectos e das forças terrenas, o amor divinizado, a glória, o combate, prélios e prélios, assinalando as teogonias, alentando civilizações, vivificando mármores, bronzes, telas, pergaminhos...
Estranhamento ante concepções desta espécie?

Se éramos, ao tempo, materialistas, abeberados nas correntes do experimentalismo, do evolucionismo?
Materialistas (forçoso, lembrá-lo!), e também poetas, sábios-poetas, críticos-poetas, sociólogos-poetas, teoristas-poetas... Só mais tarde, Sr. Gregório Fonseca, proejamos, de tormentas adentro, q. d., através de todas as luzes do século, à outra esfera, alumiada com a luz da fé... Artistas, entanto, sobretudo artistas, vós e vossos companheiros de cruzada, cultores de perfeição e ardentes visionários, íeis, de ciclo a ciclo das letras e das artes, à procura de arquétipos, de símbolos, de argumentos, de teses, mormente de vibrações de alma, sentidas sob o influxo de todos os efeitos do belo ideal, mas, relativo, terrenho, humanado...

Nota essencial, que, dentre as outras, se destaca, nessa época, é a glorificação do passado nas suas grandes formas genéricas de heroísmo e beatificação, de sublime esforço e de triunfo redentor, selecionados os intérpretes, cérebro a coração, de ato em ato, nas versões míticas, nos lendários, nas epopéias primitivas e eruditas, nos poemas de moderno teor, na guerra, na paz, na ciência, na justiça, no amor, nos sacrifícios, – em todos os sacrifícios – e nas vitórias da nossa espécie, às nuvens e aos astros alçada, senhora que sentiu ser de noções e de forças...

Rememoremos, de consciência, Sr. Gregório Fonseca, os nossos ídolos de tais jornadas ideativas, – pois que o eram todos, ídolos-deuses, ídolos-homens, ídolos-idéias, ou princípios, que de ídolos não passavam; nem passam, todos...
Que lhe incumbia pensar, sentir e fazer, a um artista, a vós, por exemplo, Sr. Gregório Fonseca, em meio assim, em tempo assim?
O que nos importava era a beleza: acertastes com a senda, aliás já por outros (e que outros!) devassada e trilhada, desde augustos e tenebrosos dias de ontem a terríveis (luminosos?) dias vividos e entrevistos por todos nós.

Citastes a Grécia e a Roma citastes; e, daquela, sobre o caráter monumental da Ilíada, escrevestes:

Todo o mármore do Pentélico não bastaria para concretizar, esculturando-as, as cenas de luta que ela contém. Ao calor dessa inspiração, a escultura helênica de antes de Péricles aproxima-se a passos agigantados do ideal, superior a tudo quanto o Oriente até então produzira, por ser a vida, o movimento. Os artistas audaciosos, pelo orgulho da obra acabada, escalam o Olimpo e insculpem pela primeira vez, na frisa dos templos, os deuses batalhando entre os mortais; e, pela primeira vez, no modelar guerreiro moribundo do frontão do templo de Aphaia, o vencido mantém-se belo e doloroso, no mármore dos vencedores.

Nascia também o elemento estético por excelência do combate: Policleto criava perfeito um ideal humano de força feminina, o tipo da Amazona guerreira, que será eternamente o mais belo e escultural soldado de todas as batalhas.

Cortando essa vertigem para a perfeição, desabalava do Oriente entenebrecido a barbaria persa, transformando a Hélade sagrada num montão de ruínas. O gênio grego foi admirável na sua ascensão após o triunfo: quinze anos depois da expulsão do último soldado de Mardônio, era o século de Péricles.
O velho Heráclito, precursor de Nietzsche, na sua linguagem genial e cabalística, afirmara uma verdade, dizendo ser a guerra o pai e o rei de todas as cousas e de todos os seres. Em seguida a Platéia e Salamina, – o Parthenon.

Enfrenta, agora, ao mundo grego o mundo romano, Cinocéfalos:

De um lado, a falange, emoldurada pelo Partenon, Palas radiante, pitonizas de Delfos, hierofantes de Eleusis e a procissão interminável das Panatenéas gloriosas.
De outro, a legião, enquadrada pelo Fórum, magistrados, tábuas cheias de dísticos, – leis agrárias, e a coluna monótona dos lictores, armados de feixes de varas.
Na falange, os Gregos, filhos legítimos dos deuses, nutridos na sabedoria pelo crime sagrado de Prometeu.

Na legião, os Romanos.
Na falange, os hoplitas fortes de Platéia; na legião, os vélites de Cannes, cavaleiros: os catafractas de Alexandre, diante dos céleres de Flaminius. Chocaram-se e Roma triunfou.
A lei, uma fórmula, venceu a beleza, uma criação.

Não reconhecestes, pois, a Roma, como legítima, a vitória de civilização traduzida, como poesia, no gênio coletivo, codificador da jurisprudência, no gênio político, formulado nas cláusulas primaciais do predomínio capitolino, e, com Júlio César, no gênio supremo de Virgílio...

“A expressão das paixões transmuta-se com os séculos”, dissestes.
“A arte é imortal e não se repete; o seu símbolo supremo é Afrodite: amor e beleza, entrelaçados na luta.”
Pérgamo, Antioquia, Alexandria, os triunfos do Macedônio “mesmo fora da medida ática”, mas assombrosos de ânimo civilizador, os séculos clássicos, a Idade Média, Aljubarrota entrevista pelo prisma camoneano, a Renascença, a moderna França dos Reis e os seus padrões de cultura, de tudo isso, Sr. Gregório Fonseca, soubestes extrair em Estética das Batalhas fúlgidos raios estéticos, em feixe inolvidável. É o perfil de Napoleão, todavia, riscado a capricho, embora de relance, que nos dais a justa medida do vosso estilo pinturesco e ladino.

Napoleão é legenda, legenda vivida, igual às grandes legendas imaginadas. Grande sonho, o de Meissonier, o de pintar Erfurt – 1810!
Os soberanos de toda a Europa reúnem-se em Congresso, convocados pelo Corso voluntarioso. Ao entrar na sala das sessões, cada Imperador, Rei, Grão-Duque, é anunciado pela alta voz de um arauto, enumerando-lhes os títulos e subtítulos da realeza.
Reunidos, os potentados da terra pelo sangue e pela tradição esperam. O arauto pela última vez anuncia, numa palavra: – “L’Empereur”, e, no meio de um grande silêncio respeitoso, assoma Napoleão, no uniforme dos Caçadores da Guarda, capote gris de Morengo, chapéu bicorne, enfumaçado, de Árcole.

Para que dizer mais?
Outra cena:

Um episódio, entre muitos: no Egito, a batalha do Tabor, Kleber, ao centro de um quadrado heróico, resistindo ao combate furioso de um número décuplo de mamelucos em carga.
Guiado pelo troar da artilharia, Napoleão marcha em socorro. Ao descortinar a beleza da cena, detém-se – artista, e o estado-maior que o cerca, em vez de ordens precisas de avançada, ouve exclamações à beleza imponente da tela, onde ressalta agigantado o vulto eqüestre de Kleber.
Imaginai o que pensou Bonaparte! Beleza é evocação; dominava-o no momento o prestígio lendário de Saul, imortalizado em livros bíblicos!

Napoleão tinha convicção da sua agigantada estatura épica; Desaix dera-lhe um trono em Marengo. Um túmulo para o herói! Napoleão escolheu: – Para Desaix, os Alpes por pedestal. E no cimo da montanha, em uma garganta do S. Bernardo, repousa o salvador de Marengo, olhando a Itália, palco da sua glória.

E esta, afinal:
Le Petit Caporal era artista incomparável, conhecia como ninguém a cenografia épica: no cemitério de Gratz, o 84 de linha resiste, firme na morte, ao embate furioso de 20.000 Austríacos. Proclamada a vitória, Napoleão dirige-se imediatamente ao reduto dos bravos: um tambor toca a reunir; formam os sobreviventes, algumas dezenas; em continência, uma bandeira, crivo de balas. O Imperador aproxima-se, escreve nas dobras: 10 contra 1.

Era natural o deslumbramento dos artistas, à vista do Herói, em marcha de glória. E recordais:

Os pintores franceses acompanharam a ascensão do vitorioso e com a cor, que d’Annunzio caracteriza como o esforço da matéria a querer ser luz, iluminaram a epopéia: Raffet, as avançadas tumultuárias; Vernet, o incomparável, a tragédia dos combates; Gross, os triunfos pessoais do César; David, o esplendor sereno da conquista, – Napoleão sagrado em Notre Dame, quadro histórico sem rival, que um crítico apelida de “processo verbal épico”. E Austerlitz, Wagram, Yena, Eylau – a Europa repetida em uma vasta tela de batalhas.

Robert de La Sizeranne sustenta que o escultural e o pinturesco desapareceram da batalha moderna, reduzida a simples manobras matemáticas, e cita o fato da vitória de 1870 não haver inspirado, ao outro lado do Reno, obra d’arte de valia. Vai além, e sustenta que os próprios Franceses representaram apenas em telas julgadas obras-primas meros episódios heróicos ou de pequenos grupos de batalhadores.
É vigorosa a vossa réplica, Sr. Gregório Fonseca:

Sizeranne é mau esteta. A observação é bem feita, mas não prova o postulado.
Os Alemães, admiráveis no domínio da idéia pura, nunca o foram nas artes plásticas. Taine diz de Corneille haver criado as primeiras tragédias e fabricado as últimas. Os Alemães fabricaram milhares de quadros, jamais criaram uma tela imortal.

Depois, batalha é o épico através da pintura e da escultura. Não há épico sem herói e o herói em 1870 foi o soldado francês. Natural que as telas francesas imortalizem o seu herói.
De resto, os Alemães, patrícios de Wagner, o gênio mais cenográfico da humanidade, na opinião de Nietzsche, não souberam realizar na arte a cenografia prévia do personagem épico...
A Moltke, representante máximo da sua glória militar moderna, tiveram o mau gosto de perpetuar a figura em painéis fotográficos, pintando-lhe, uma a uma, as protuberâncias do rosto enrugado, em franca senilidade.

O herói é belo: Canova deu a Napoleão uma efígie capitolina de Augusto...
Engana-se Sizeranne: na batalha moderna, como na antiga, a arte tem fonte perene de inspiração. Que é o 1814 de Meissonier? Episódio comum de qualquer guerra, em qualquer tempo: um estado-maior avançando numa planície nevada, paralelamente a divisões que se deslocam. No entanto, 1814 é uma grande página épica: à frente desse estado-maior, marcha, pensativo, ainda cheio de fé, Napoleão, o herói. Retirai-o da tela e restará um quadro banal, tecnicamente bem feito.

Argutos comentários, períodos eloqüentes, concisos, leves, sóbrios; mas, sobretudo, quadros, vultos, desenho, colorido, proscênios, movimento...

Tentamos revelar o vosso talento de pintor, de um vero pintor da pena, espontâneo e de escola. Certo é, porém, que já, então, se descobriam nas telas, vez por outra, esbatimentos de contorno, esmaecimentos subjetivos de tinta...
Napoleão, vimo-lo, é legenda, legenda vivida, semelhante às outras, as imaginadas.
Cumpre, no entanto, não esquecer:

Fausto, D. João, Napoleão, hércules supremos do poder humano, os três, finalmente vencidos, tiveram a sua túnica de Nessus. Fausto, condenado à velhice eterna; D. João, ao martírio da saciedade; Napoleão, prisioneiro em Santa Helena: ironia da dúvida; ironia do amor; ironia da força.
Oh! o poeta de gênio capaz de enfeixar esses três personagens gigantescos em um poema imortal!
Que vos direi ainda, Sr. Gregório Fonseca?

Desejo somente recordar-vos que o autor dessas frases ainda se não apaixonara, como depois aconteceu, por felicidade própria e das letras, pela sublime legenda mística (também sonhada e vivida) do aureolado de Assis, daquele manso e meigo filho do céu, poeta da vida perfeita na terra tristonha e feia, cuja aspereza ele teve o divino poder de alindar espiritualmente; daquele herói-santo, acerca de quem esperamos, os amigos e confrades da Academia, o vosso prometido livro...

Ser-me-ia, decerto, gratíssimo entreter-me convosco de todos os outros trabalhos em que revelais, com o vosso talento, uma dedicação superior à defesa de grandes causas, nacionais e humanas, dos vossos discursos, como o de saudação a Olavo Bilac no Clube Militar, em admirável cruzada cívica, da biografia do Marechal Bento Ribeiro, do estudo sobre o nosso Aníbal Teófilo, de modelares artigos quais o relativo a Clemenceau, e dessa admirável conferência que é A Arte. São obras, aliás, bem conhecidas em nosso meio de imprensa, letras, salões.

*  *  *

Tentei refutar-vos, Sr. Gregório Fonseca, em matéria tocante ao vosso talento, que, nesta solenidade, a Academia Brasileira consagra. Consagramos em vós a Arte Brasileira, de que vos tornastes verbo eloqüente. Valeis pela clareza de idéias e de forma, pela incontestável e sedutora elegância de um estilo pessoal, que vos exprime e nos exprime, nosso, bem nosso, do Brasil contemporâneo, pelo amor às elevadas expressões de cultura humanista manifesto em vossa pequena, fragmentária, mas admirável, una, coleção de modelares páginas, a trechos, palpitantes de vida, agitadas sempre (é a nossa impressão) de motivos superiores ao contexto, trépidas, sonoras, palpitantes de vida, inéditas de altivo, arisco e, também, suave brio mental nas referências. Atesta em vossa escolha a Academia o nosso critério de, tacitamente aceita, indiferença para com o preconceito (os preconceitos, pluralizemos?) de toda a ordem, de escola e de escolas, de sistema e de sistemas e também de seitas e seitinhas e de grupos e grupelhos...

Confesso-vos, malgrado meu, haver interpretado, às pressas, e sem vênia, talvez com indiscrição, mas, decerto, com sinceridade e justiça, algumas expressões de caráter espiritual que desejaríeis demorassem no foro interior. Quis mostrar que o autor em cuja obra encontramos tantas admiráveis passagens, é, embora não queira reconhecê-lo, um pensador, um escritor, um artista.