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Graça Aranha

SACRIFÍCIO DO CAVALO

Ao amanhecer de um dia nevoeiro, a paisagem perdera o seu contorno exato e regular. As linhas definitivas dos objetos se confundiam, as montanhas enterravam as cabeças nas nuvens, a cabeleira das árvores fumegava, o rio sem horizonte, sem limite, como uma grande pasta cinzenta, se ligava ao céu baixo e denso. O desenho se apagara, a bruma mascarava os perfis das coisas e o colorido surgia com a sombra numa sublime desforra. Por toda a parte manchas esplêndidas se ostentavam. E sobre a campina esverdeada, vaporosa, uma dessas manchas, ligeiramente azulada, movia-se, arqueava-se, abaixava-se, erguia-se e se ia lentamente dissipando. O sol não tardou a vir, e a natureza se sacudiu, a névoa fugiu, o céu se espanou e se dilatou em maravilhosa limpidez. A mancha móvel sobre a planície se definiu no perfil de um pobre cavalo que passeava na verdura os seus olhos de velhice e fadiga, tristes e longos. De passada, com os túmidos e negros beiços, afagava a erva, triturando-a com fastio e desânimo, enquanto a sua atenção de cavalo experimentado estava voltada para a cabana, a cuja porta os seus donos, os novos colonos magiares, o miravam com interesse. A neblina leve, veloz, vinha distraí-lo daquela postura de curiosidade humilde, e acariciava num frio elétrico o seu pelo ralo e falhado. Estremecia num gozo manso, e estendendo o focinho, arregaçando os beiços, sensual e grato, beijava o ar. Não mais encontrava a névoa, que fugira para os montes, levada pela brisa, como se fosse o imperceptível véu que envolvesse alguma deusa errante e retardada. Um rio de sol, porém, descera a brincar-lhe nos olhos e incendiava-lhe a pupila. Meiguices da natureza.

Um dos jovens magiares, levando uma corda, caminhou para o cavalo. O animal entregou-lhe a cabeça numa mistura de abandono e tédio. O rapaz passou-lhe o cabresto e o levou ao poste fronteiro à casa, onde o amarrou. Os colonos tinham resolvido principiar naquele dia a plantação do seu prazo, e o velho deu ordem de partir para a queimada. Os filhos armaram-se das ferramentas de lavoura, o cigano, saindo de sua modorra e apenas armado de um chicote, acompanhou os outros, que, desamarrando o cavalo, seguiram com ele para o roçado. As raparigas que ficavam em casa cheias de instintivo pavor, viam o grupo afastar-se vagarosamente.

Chegaram ao aceiro que, aberto como uma larga ferida sobre o dorso da terra, era um sulco de alguns metros de largura, circundando a queimada. Da mata carbonizada ainda resistiam de pé alguns troncos despojados, enegrecidos. Milkau e Lentz, passeando àquela hora, passaram perto do roçado e viram chegar aí o grupo dos vizinhos.

- Ainda bem, disse Milkau, eles vão trabalhar; fazia-me dó ver esta gente apática, irresoluta, entorpecida na preguiça.

- Mas para que trazem eles quase arrastado aquele cavalo? Perguntou Lentz.

E os dois se afastaram um pouco e ficaram a distância, acompanhando os movimentos do grupo.

O velho colono segurou o animal pelo cabresto e o colocou no meio da vala. Os filhos puseram-se de lado, num recolhimento religioso. O pai puxou o cavalo para a frente. De chicote em punho, o cigano seguia atrás, e a primeira vergastada, cortando o ar num sibilo, caiu em cheio sobre o animal. Este, como arrancando-se de si mesmo, pinoteou assustado. Novas lambadas foram arremessadas por mão vigorosa. Estirou o cavalo o pescoço para a frente, abaixou-se, alongou-se, encostando quase o ventre à terra, como para se libertar do flagelo que lhe vinha do alto. Os seus membros se estorciam, confrangidos sob a dor imensa. E desapiedadamente, puxavam-no para diante, levando-o ao furor do açoite. Naquele sacrifício cumpria-se uma missão sagrada: ligava-se à nova terra o nervo da tradição da terra antiga. Quando os antepassados tártaros desceram do planalto asiático, e no solo europeu renunciaram à vida errante dos pastores, para lavrar o campo e buscar na cultura a satisfação da vida, sacrificaram aos deuses o velho companheiro de peregrinação nos brancos estepes. E, assim, a imolação ficou sempre no espírito dos descendentes como um dever, cujas raízes se estendem até ao fundo da alma das raças.

Continuava o grupo a caminhar. O velho, como um sacerdote, conduzia a vítima, seguida do cigano, em cujo rosto se recompunha a antiga expressão infernal e terrível dos antepassados, num retrocesso harmônico e rápido, produzido pelo singular efeito da paixão sanguinária. Os outros assistiam mudos à cerimônia. O chicote vibrava incessante; as suas pontas de ferro cortavam o lombo do animal. O ar leve e frio, penetrando nos fios de carne viva, causava uma dor fina, aguda, acerba, e a vista e o cheiro do sangue excitavam ainda mais a energia do flagelador. Veio-lhe uma histérica insensibilidade, uma rudimentar anestesia, uma assassina obsessão. Estonteou-o uma vertigem, mas o açoite não parou. Os sulcos na carne se abriam mais fundos; o sangue escorria frouxo. Mofino de dor, o cavalo prosseguia arrastado, regando a terra. Gotas vermelhas respingavam sobre a descoberta cabeça do velho magiar, de uma brancura de açucena. As suas narinas se dilatavam em lânguido gozo. Cavos gemidos ressoavam no peito da besta. E no seu olhar infinito de moribundo se traduziam os humildes protestos e os tímidos apelos de misericórdia.

E o relho soava, enquanto o mártir ia lento, de pescoço estirado, pernas trôpegas, esvaindo-se pelas veias abertas, como torneiras de sangue. O cigano mais terrível, mais feroz, transfigurava-se, e da sua garganta afinada irrompeu brusco, sonoro, o canto de guerra dos velhos tártaros. O chicote cruel e rápido marcava o compasso desse ritmo estranho. O contágio do furor se apoderou dos outros, que, imobilizados, assistiam ao sacrifício. E embriagados pouco a pouco pelas frases da música, pela sugestão do rito, pelo odor de carne sangrenta, acompanhavam o canto, num coro infernal. O animal, exausto, caíra de lado, como um peso inerte. O açoite inexorável ainda o levantou uma vez, e no solo, como numa verônica, ficou estampada a imagem do seu corpo, impressa em sangue. Prosseguia sem interrupção, fogoso, lúgubre, o canto que feria asperamente o ar, e era o eco da melodia satânica da morte. O cavalo deu mais alguns passos, cambaleando como um alucinado, e afinal se prostrou sobre a terra. Arquejante resfolegando num espaçado estertor, morria vagarosamente. Nas suas pupilas de moribundo se fotografaram num derradeiro clarão as fisionomias dos algozes. E esta imagem medonha, que se lhe guardara no interior dos olhos, era a infinita tortura que o acompanharia além da própria morte, presidindo à dolorosa decomposição da sua carne de mártir.

Cessaram as vozes. Os homens se agruparam em torno do cadáver, rezando como fantasmas loucos. Poças e fios vermelhos manchavam o sulco. A camada de argila, lisa, escorregadia como uma couraça, tornava o seio da terra impenetrável ao sangue, que sorvido pelo sol se evaporava e dissolvia no ar. Era a rejeição do sacrifício, o repúdio da imolação, rompendo a cruenta tradição do passado. A nova Terra juntava a sua contribuição aos límpidos ideais dos novos homens...

(Canaã,1902)

 

NABUCO E MACHADO

A essência intelectual de Nabuco provém das suas origens e é por isso que nele se acentua, mais do que o artista, o pensador político. É uma tradição espiritual que ele conserva e eleva a um grau superior, ainda que a essa vocação política se alie a sensibilidade artística. Ele não foi artista absoluto e exclusivo; a sua atração pela história e o culto pelo passado são manifestações de um temperamento político. Nos estudos históricos Nabuco considerava sobretudo a evolução social, a diretriz política das sociedades. Herdou do pai o amor da perfeição, o gosto do conceito, a fórmula expressiva e gráfica, a que ele ajuntou a modernidade do espírito, a curiosidade cosmopolita, o sabor da novidade e o ardor romântico.

Machado de Assis não tem história de família. O que se sabe das suas origens é impreciso; é a vaga e vulgar filiação, com inteira ignorância da qualidade psicológica desses pais, dessa hierarquia, de onde dimana a sensibilidade do singular escritor. E por isso acentua-se mais o aspecto surpreendente do seu temperamento raro, e divergente do que se entende por alma brasileira. Há um encanto nesse mistério original, e a brusca e inexplicável revelação do talento concorre vigorosamente para fortificar-se o secreto atrativo, que sentimos por tão estranho espírito. De onde lhe vem o senso agudo da vida? Que legados de gênio ou de imaginação, recebeu ele? Ninguém sabe. De onde essa amargura e esse desencanto? de onde o riso fatigado? de onde a meiguice? a volúpia? o pudor? de onde esse enjoo dos humanos? Essas qualidades e esses defeitos estão no sangue, não são adquiridos pela cultura individual. A expressão psicológica de Machado de Assis é muito intensa para que possa ser atribuída ao estudo, à observação própria. Cada traço do seu espírito tem raízes seculares e por isso ele resistirá a tudo o que passa.

Em 1865, quando se inicia esta correspondência, quem era Machado de Assis? Já era aquele geômetra sutil, que encerrara o Universo no verbo, que se libertara da exaltação racial e sabia dissimular nas linhas tranqüilas e desdenhosas o frêmito da natureza e revelar a loucura dos homens. Tinha apenas vinte e cinco anos; a sua ação literária era eficiente no teatro, no romance e na crítica. Havia publicado novelas, feito representar comédias, brilhava no Diário do Rio ao lado de Quintino Bocaiúva, que Nabuco chamaria o “jovem Hércules da imprensa daquela época”. Fora até “futurista”, se por este epíteto recordarmos ter sido o cronista singularmente clássico de um efêmero jornal de 1863, O Futuro. Era o poeta das Crisálidas.

Para aí chegar, a viagem espiritual de Machado de Assis foi bem secreta. Veio do nada, venceu as suas origens modestas, tornou-se homem de cultura, de gosto e criou a sua própria personalidade. É um doloroso e belo poema o da elaboração do gênio neste obscuro heroísmo. Machado de Assis não revelou nunca esse árduo combate interior, não fez transbordar no ódio e no despeito a sua humildade inicial. Aristocratizou-se silenciosamente. O seu heroísmo está neste trabalho de libertar-se da sua classe, nessa tragédia surda do espírito que se eleva, na distinção pessoa, no desdém de ser agressivo aos poderosos e aos felizes. Da sua angústia intelectual transpira a perene melancolia da luta. Das tristes fontes da sua inteligência persiste para sempre o travo da amargura. Mas esta amargura da vida é nobre, é o desencanto do civilizado e não o rancor do escravo e o destempero do selvagem.

O heroísmo de Joaquim Nabuco foi o de separar-se da aristocracia e fazer a abolição. O heroísmo de Machado de Assis foi uma marcha inversa, da plebe à aristocracia pela ascensão espiritual. Ambos tiveram de romper com as suas classes e heroicamente afirmar as próprias personalidades.

(Correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, 1923)

 

A EMOÇÃO ESTÉTICA NA ARTE MODERNA

Para muitos de vós a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje, é uma aglomeração de “horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo.

Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o Universo, que a ciência decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, insolúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista. O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e seus fragmentos são sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como a função estética, que é a de idear e imaginar, é essencial à nossa natureza.

A emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador. Cada arte nos deve comover pelos seus meios diretos de expressão e por eles nos arrebatar ao Infinito.

A pintura nos exaltará, não pela anedota, que por acaso ela procure representar, mas principalmente pelos sentimentos vagos e inefáveis que nos vêm da forma e da cor.

Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Que nos importa que a música transcendente que vamos ouvir não seja realizada segunda as fórmulas consagradas? O que nos interessa é a transfiguração de nós mesmos pela magia do som, que exprimirá a arte do músico divino. É na essência da arte que está a Arte. É no sentimento vago do Infinito que está a soberana emoção artística derivada do som, da forma e da cor. Para o artista a natureza é uma “fuga” perene no Tempo imaginário. Enquanto para os outros a natureza é fixa e eterna, para ele tudo passa e a Arte é a representação dessa transformação incessante. Transmitir por ela as vagas emoções absolutas vindas dos sentidos e realizar nesta emoção estética a unidade com o Todo é a suprema alegria do espírito.

Se a arte é inseparável, se cada um de nós é um artista mesmo rudimentar, porque é um criador de imagens e formas subjetivas, a Arte nas suas manifestações recebe a influência da cultura do espírito humano.

Toda a manifestação estética é sempre precedida de um movimento de idéias gerais, de um impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida. Na Antiguidade clássica o surto da arquitetura e da escultura se deve não somente ao meio, ao tempo e à raça, mas principalmente à cultura matemática, que era exclusiva e determinou a ascendência dessas artes da linha e do volume. A própria pintura dessas épocas é um acentuado reflexo da escultura. No renascimento, em seguida à perquirição analítica da alma humana, que foi a atividade predominante da idade média, o humanismo inspirou a magnífica floração da pintura, que na figura humana procurou exprimir o mistério das almas. Foi depois da filosofia natural do século XVII que o movimento panteístico se estendeu à Arte e à Literatura e deu à Natureza a personificação que raia na poesia e na pintura da paisagem. Rodin não teria sido o inovador, que foi na escultura, se não tivesse havido a precedência da biologia de Lamarck e Darwin. O homem de Rodin é o antropoide aperfeiçoado.

E eis chegado o grande enigma que é o precisar as origens da sensibilidade na arte moderna. Este supremo movimento artístico se caracteriza pelo mais livre e fecundo subjetivismo. É uma resultante do extremado individualismo que vem vindo na vaga do tempo há quase dois séculos até se espraiar em nossa época, de que é feição avassaladora.

Desde Rousseau o indivíduo é a base da estrutura social. A sociedade é um ato da livre vontade humana. E por este conceito se marca a ascendência filosófica de Condillac e da sua escola. O individualismo freme na revolução francesa e mais tarde no romantismo e na revolução social de 1848, mas a sua libertação não é definitiva. Esta só veio quando o darwinismo triunfante desencadeou o espírito humano das suas pretendidas origens divinas e revelou o fundo da natureza e as suas tramas inexoráveis. O espírito do homem mergulhou neste insondável abismo e procurou a essência das coisas. O subjetivismo mais livre e desencantado germinou em tudo. Cada homem é um pensamento independente, cada artista exprimirá livremente, sem compromissos, a sua interpretação da vida, a emoção estética que lhe vem dos seus contatos com a natureza. É toda a magia interior do espírito se traduz na poesia, na música e nas artes plásticas. Cada um se julga livre de revelar a natureza segundo o próprio sentimento libertado. Cada um é livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima desencadeada de toda a regra, de toda a sanção. O cânon e a lei são substituídos pela liberdade absoluta que os revela, por entre mil extravagâncias, maravilhas que só a liberdade sabe gerar. Ninguém pode dizer com segurança onde o erro ou a loucura na arte, que é a expressão do estranho mundo subjetivo do homem. O nosso julgamento está subordinado aos nossos variáveis preconceitos. O gênio se manifestará livremente, e esta independência é uma magnífica fatalidade e contra ela não prevalecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando bom gosto, e do infecundo bom-senso. Temos que aceitar como uma força inexorável a arte libertada. A nossa atividade espiritual se limitará a sentir na arte moderna a essência da arte, aquelas emoções vagas transmitidas pelos sentidos e que levam o nosso espírito a se fundir no Todo infinito.

Este subjetivismo é tão livre que pela vontade independente do artista se torna no mais desinteressado objetivismo, em que desaparece a determinação psicológica. Seria a pintura de Cézanne, a música de Strawinsky reagindo contra o lirismo psicológico de Debussy procurando, como já se observou, manifestar a própria vida do objeto no mais rico dinamismo, que se passa nas coisas e na emoção do artista.

Esta talvez seja a acentuação da moda, porque nesta arte moderna também há a vaga da moda, que até certo ponto é uma privação da liberdade. A tirania da moda declara Debussy envelhecido e sorri do seu subjetivismo transcendente, a tirania da moda reclama a sensação forte e violenta da interpretação construtiva da natureza pondo-se em íntima correlação com a vida moderna na sua expressão mais real e desabusada. O intelectualismo é substituído pelo objetivismo direto, que, levado ao excesso, transbordará do cubismo no dadaísmo. Há uma espécie de jogo divertido e perigoso, e por isso sedutor, da arte que zomba da própria arte. Desta zombaria está impregnada a música moderna que na França se manifesta no sarcasmo de Eric Satie e que o Grupo dos Seis organiza em atitude. Nem sempre a fatura desse grupo é homogênea, porque cada um dos artistas obedece fatalmente aos impulsos misteriosos do seu próprio temperamento, e assim mais uma vez se confirma a característica da arte moderna que é a do mais livre subjetivismo.

É prodigioso como as qualidades fundamentais da raça persistem nos poetas e nos outros artistas. No Brasil, no fundo de toda a poesia, mesmo liberta, jaz aquela porção de tristeza, aquela nostalgia irremediável, que é o substrato do nosso lirismo. É verdade que há um esforço de libertação dessa melancolia racial, e a poesia se desforra na amargura do humorismo, que é uma expressão de desencantamento, um permanente sarcasmo contra o que é e não devia ser, quase uma arte de vencidos. Reclamemos contra essa arte imitativa e voluntária que dá ao nosso “modernismo” uma feição artificial. Louvemos aqueles poetas que se libertam pelos seus próprios meios e cuja força de ascensão lhes é intrínseca. Muitos deles se deixaram vencer pela morbidez nostálgica ou pela amargura da farsa, mas num certo instante o toque da revelação lhes chegou e ei-los livres, alegres, senhores da matéria universal que tornam em matéria poética.

Destes, libertados da tristeza, do lirismo e do formalismo, temos aqui uma plêiade. Basta que um deles cante, será uma poesia estranha, nova, alada e que se faz música para ser mais poesia. De dois deles, nesta promissora noite, ouvireis as derradeiras “imaginações”. Um é Guilherme de Almeida, o poeta de Messidor, cujo lirismo se destila sutil e fresco de uma longínqua e vaga nostalgia de amor, de sonho e de esperança, e que, sorrindo, se evola da longa e doce tristeza para nos dar nas “Canções gregas” a magia de uma poesia mais livre do que a Arte. O outro é o meu Ronald de Carvalho, o poeta da epopeia da Luz Gloriosa em que todo o dinamismo brasileiro se manifesta em uma fantasia de cores, de sons e de formas vivas e ardentes, maravilhoso jogo de sol que se torna poesia! A sua arte mais aérea agora, nos novos epigramas, não definha no frívolo virtuosismo que é o folguedo do artista. Ela vem da nossa alma, perdida no assombro do mundo, e é a vitória da cultura sobre o terror, e nos leva pela emoção de um verso, de uma imagem, de uma palavra, de um som à fusão do nosso ser no Todo infinito.

A remodelação estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e do provincialismo.

O regionalismo pode ser um material literário, mas não o fim de uma literatura nacional aspirando ao universal. O estilo clássico obedece a uma disciplina que paira sobre as coisas e não as possui.

Ora, tudo aquilo em que o Universo se fragmenta é nosso, são os mil aspectos do Todo, que a arte tem que recompor para lhes dar a unidade absoluta. Uma vibração íntima e intensa anima o artista neste mundo paradoxal que é o Universo brasileiro, e ela não se pode desenvolver nas formas rijas do arcadismo, que é o sarcófago do passado. Também o academismo é a morte pelo frio da arte e da literatura.

[...]

O que hoje fixamos não é a renascença de uma arte que não existe. É o próprio comovente nascimento da arte no Brasil, e, como não temos felizmente a pérfida sombra do passado para matar a germinação, tudo promete uma admirável “florada” artística. E, libertos de todas as restrições, realizaremos na arte o Universo. A vida será, enfim, vivida na sua profunda realidade estética. O próprio Amor é uma função da arte, porque realiza a unidade integral do Todo infinito pela magia das formas do ser amado. No universalismo da arte estão a sua força e a sua eternidade. Para sermos universais façamos de todas as nossas sensações expressões estéticas, que nos levem à ansiada unidade cósmica. Que a arte seja fiel a si mesma, renuncie ao particular e faça cessar por instantes a dolorosa tragédia do espírito humano desvairado do grande exílio da separação do Todo, e nos transporte pelos sentimentos vagos das formas, das cores, dos sons, dos tatos e dos sabores à nossa gloriosa fusão no Universo.

(O Espírito Moderno, 1925)