O ELOGIO DA VIDA
Minhas senhoras e meus senhores,
Gostaria de dedicar este discurso a Eduardo Portella, um de meus heróis intelectuais. Em 1995, o Itamaraty convidou alguns escritores para a entrega do Prêmio Camões a José Saramago, em Brasília. Depois da cerimônia, na presença de meus amigos João Ubaldo Ribeiro e Antônio Torres, Eduardo sugeriu minha candidatura à Academia. Fiquei perplexo. Eu tinha 43 anos, pensava que era jovem e me achava o cidadão mais antiacadêmico do mundo. Mas Eduardo, como sempre, pensava no futuro. Como se não bastasse, era amigo de meu pai, que adoraria estar aqui esta noite, bêbado de felicidade. Por isso peço ao Eduardo que me dê a alegria de representar o encargo dessa paternidade.
Conforme o costume acadêmico, tenho o privilégio de falar de meu antecessor, o jornalista e crítico teatral Sábato Magaldi. Não me parece exagero afirmar que Sábato é das maiores figuras intelectuais do teatro brasileiro. E esta tarefa é particularmente difícil, porque tudo no Brasil parece conspirar contra o teatro brasileiro.
O próprio Sábato, aliás, concordaria com esta afirmação. Já em sua primeira obra publicada, Panorama do teatro brasileiro, Magaldi nos faz a advertência: "Ainda é comum afirmar-se, quando (se procuram critérios absolutos ou) se fazem comparações com as realidades europeias ou norte-americana, que o teatro brasileiro não existe." E de fato raramente existia, antes de Sábato. Pelo menos como discurso articulado. Devemos a ele uma das primeiras histórias orgânicas do teatro brasileiro, essa quimera que, ao contrário de sua ancestral da Grécia, em vez de causar horror, quase sempre causou indiferença.
Sábato menciona, entre os que conspiravam para a inexistência do teatro aqui, nos subúrbios do Ocidente, o crítico José Veríssimo, que já havia lapidado, no princípio do século XX, o epitáfio da atividade teatral no Brasil: "Produto do Romantismo, o teatro brasileiro finou-se com ele." E Silvio Romero, outro gigante da crítica, acrescentou: "O teatro é a parte mais enfezada de nossa literatura."
Não admira que a dramaturgia brasileira sofra de complexo de vira- latas. Somos colonizados. E a primeira condição do colonizado é ignorar a sua própria história. Sábato define a psicologia do pensamento brasileiro sobre o teatro assim: "Há um quase esnobismo em negar-se a existência de nossa dramaturgia: os autores deleitam-se na ilusão de que são os primeiros a fazer bom teatro no país; os intérpretes não precisam preocupar-se com os textos da língua, desejando apenas encarnar os heróis universais; e os críticos justificam inconscientemente a sua ignorância, podendo acreditar, também, que inauguram a sua profissão." Aqui, quase todo crítico é metido a Aristóteles, quase todo dramaturgo é metido a Sófocles e quase todo mundo acha que Ésquilo é só um hippie decadente do Baixo Leblon.
Graças a Sábato, percebemos que, contra essa força destrutiva, há uma razão e uma paixão persistentes na história do teatro brasileiro. Talvez movidas pelo desejo de escapar ao esquecimento ou à irrelevância, lugar que lhe foi reservado pela visão colonizada. Em suma, a história do teatro brasileiro é paralela à luta pela afirmação da ideia da nacionalidade. Afinal de contas, embora a nossa realidade às vezes pareça uma alucinação, tudo nos leva a crer que o Brasil existe. Ou, se não existe, é pelo menos uma superstição recorrente para alguns brasileiros, entre os quais o modesto locutor que vos fala.
As primeiras peças brasileiras, como todos sabem, foram escritas e encenadas por José de Anchieta e faziam parte do projeto de catequese de nossos indígenas, patrocinado pela Companhia de Jesus. Anchieta escreveu suas peças em português, espanhol e tupi. Percebendo a simpatia dos nativos pela música, e sua dificuldade de entender as letras, o Anchieta encenador, segundo Sábato, demonstrava "eficiente contaminação com o gosto do gentio". Seus espetáculos terminavam sempre em dança. Talvez por isto encantassem suas plateias e, graças a esse e a outros poderes prodigiosos, Anchieta tenha escapado à propensão antropófaga de nossos nativos.
Mas isto é uma espécie de pré-história, porque ainda não havia a ideia de Brasil. Por aqui, Deus ainda falava grego ou latim, e ainda nem fora traduzido satisfatoriamente para o inglês, o que só aconteceria alguns anos mais tarde, por obra e graça do Rei James I, da Inglaterra.
A primeira peça nacional, segundo Magaldi, foi "Antônio José ou O Poeta e a Inquisição", encenada em 1838, escrita pelo poeta Gonçalves de Magalhães. O protagonista é o comediógrafo Antônio José da Silva, mais conhecido como O Judeu, nascido no Rio de Janeiro, no princípio do século anterior, e depois queimado pela Inquisição, em Lisboa, segundo a versão oficial. Ou, segundo outras versões, queimado somente em efígie, isto é, substituído por uma imagem posta na fogueira em seu lugar - o que é bem menos doloroso do que ser queimado ao vivo e em cores. Fica por conta dos historiadores desta Casa a elucidação deste episódio incendiário.
Sábato observa que, no prefácio de "Antônio José ou o Poeta e a Inquisição", Gonçalves de Magalhães faz questão de escrever: "Lembrarei que esta é, se não me engano, a primeira tragédia escrita por um brasileiro." E era fundamental que fizesse esse registro; do contrário, provavelmente ninguém o faria. O teatro brasileiro, como sugere Sábato, parece cultivar o vício de revogar a sua própria história.
Gonçalves de Magalhães teve o cuidado de acrescentar à sua frase a expressão "se não me engano", entre aspas, sempre oportuna. E, como quase nada soubesse sobre a vida de Antônio José, que só seria conhecida mais tarde, tratou de inventar um vilão e uma história de amor, como era do gosto dos folhetins, tanto da época, quanto de hoje. Para fazer jus ao título de nosso primeiro romântico, Magalhães condena a mocinha da peça a morrer subitamente, assim que presencia a prisão do herói pelo Santo Ofício. Sábato critica essa morte misteriosa, talvez adequada para uma heroína romântica, mas sem a menor verossimilhança clínica.
Para piorar, a peça é escrita em decassílabos cuja metrificação não é das mais elegantes. Não me atrevo a reproduzi-los, para não correr o risco de depreciar o fundador de nosso movimento romântico. E Sábato percebe com precisão os limites do dramaturgo Gonçalves de Magalhães, que, mesmo que se supusesse afinado com as modas do Romantismo europeu, é ainda prisioneiro do Classicismo do século anterior. Essas duas visões de mundo se chocam como uma pororoca. É como se Plínio Marcos fizesse parceria com José de Anchieta.
Talvez se pudesse eleger retrospectivamente, como fundador da comédia brasileira, o próprio Antônio José da Silva, herói e mártir da peça de Gonçalves de Magalhães. Conspira contra essa ideia, porém, o fato de que ele foi levado pela família para Lisboa aos oito anos de idade. E, para nossa desventura, foi adotado como ícone da literatura portuguesa. Seria possível, no entanto, que Antônio José fosse pelo menos considerado um dos precursores da comédia besteirol do fim do século XX, porque sua versão de Dom Quixote e sua comédia "Esopaida ou Vida de Esopo" parecem escritas por um carioca do fim do século XX.
Se nós, brasileiros, não demonstrávamos vocação para a tragédia, como gênero literário, mesmo que nossa História fosse uma sucessão de extermínios, demonstramos desde cedo vocação para a comédia. Em seu Panorama do teatro brasileiro, Sábato registra, no mesmo ano de estreia da tragédia de Gonçalves de Magalhães, a chegada ao palco brasileiro de Martins Pena, nosso mestre da comédia de costumes. Maus costumes.
Para Sábato, Martins Pena "atinge religião e política, e esta no funcionamento dos três poderes - executivo, legislativo e judiciário (...) Invectiva as profissões indignas e os tipos humanos inescrupulosos, denunciando inclusive o tráfico ilícito de negros na sociedade escravocrata brasileira. Não lhe é estranha a galeria dos vícios individuais, como a avareza e a prevaricação." Prevaricação, palavra chique para se falar do crime mais atual do Brasil. Martins Pena chega a sugerir, criticando as assembleias legislativas, o seguinte: "... não seria mau que os presidentes de nossas câmaras fossem todos defuntos."
E suponho que esta fala, se repetida nos palcos de hoje, talvez fosse aplaudida em cena aberta. Mas Sábato jamais abdica de sua formação política, e corre a nos advertir que a comédia tem licença poética, desde Aristófanes, para criticar os poderosos, sem que com isso tenhamos que atear fogo em Atenas.
Também era comum acusar-se Martins Pena de copiar Molière. Tolice. Jamais ocorreu aos críticos brasileiros que Molière nunca teve pudor de copiar outros autores. Certa vez, a propósito de uma cena inteira que expropriou de Cyrano de Bergerac - que não devemos confundir com o personagem de Edmond de Rostand, embora um fosse inspirado no outro - Molière declarou: "Esta cena me pertence, porque é boa. Je prends mon bien où je le trouve." Em tradução selvagem, diríamos: "Eu cato o que tenho de bom onde eu encontro." Quase trezentos anos depois, Oswald de Andrade, que, na opinião de Magaldi, é dos maiores dramaturgos brasileiros do século XX, faria da expropriação uma das leis de sua estética. Cito: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago." Nada de tão novo. Como todos sabem, a literatura sempre se alimentou de literatura. O canibalismo literário existe desde o princípio dos tempos, sob o pretexto da imitação dos clássicos ou com o álibi da intertextualidade.
Martins Pena, no entanto, tinha o dom de fazer a plateia rir. E esta é uma qualidade admirável, mesmo que os críticos tenham preferência pelas tragédias, desde tempos imemoriais. Aristófanes ou Plauto podiam escrever as cenas mais engraçadas, mas a catarse, a chave de Aristóteles, para eles só se consuma com o horror e o pesar partilhados pela plateia. Só William Shakespeare foi capaz de fazer as plateias rirem e chorarem na mesma peça, ou pelo menos na mesma temporada teatral. Martins Pena podia ser desprovido de talento para o drama, mas nos deixou vinte comédias dignas desse nome.
Entre os dramaturgos do século XIX, Sábato destaca também Joaquim Manuel de Macedo. Escritor famoso por seus romances, entre os quais A moreninha, que se passa em grande parte em Paquetá, a ilha natal de nosso ilustre presidente, Domício Proença Filho. Macedo adaptou com êxito A moreninha para o teatro. E é também autor da comédia "A Torre em Concurso". Esclareço que concurso é o que se chama hoje de concorrência. Era preciso construir uma torre de igreja. E, para que esse empreendimento fosse bem sucedido, exigia-se no edital da concorrência que o engenheiro fosse inglês. Macedo era preceptor dos filhos da família imperial do Brasil, mas já desconfiava de que quem não falasse inglês seria considerado cidadão de segunda classe nas futuras colônias do império anglo-americano. Correria o risco de ser barrado na fronteira pelo topete dos futuros déspotas.
Outro dramaturgo fundamental mencionado no Panorama de Sábato é José de Alencar, um dos inventores do Brasil. Alencar é autor da comédia "Verso e Reverso", que, segundo Sábato, é precursora das chamadas revistas de ano. O protagonista se chama Ernesto, um paulista que visita a cidade do Rio de Janeiro, cujas mazelas são estranhamente parecidas com as de hoje. Alencar enumera os horrores do Rio: "Dos tipos inescrupulosos, da sujeira das ruas, da alucinação do trânsito, nessa desordem que para muitos esconde até a beleza natural."
Ernesto estranha o caos do Rio e exclama:
"É insuportável! Não se pode viver em semelhante cidade; está um homem sujeito a ser empurrado por todos esses meus senhores, e esmagado a cada momento por quanto carro, carroça, carreta ou carrinho anda nestas ruas!"
A única coisa capaz de demover Alencar de sua péssima impressão sobre o trânsito da cidade, que de lá para cá só fez piorar, são as moçoilas cariocas: "Não há como as moças do Rio de Janeiro para fazerem de um nada, de uma palavra, de um gesto, um encanto poderoso! Seu espírito anima tudo; onde elas se acham, tudo brinca, tudo sorri, porque a sua alma se comunica a todos os objetos que a cercam." Provavelmente desse encanto têm origem suas Lucíolas, Divas e tantas raparigas em flor.
Sábato registra a passagem pela dramaturgia de alguns dos maiores poetas do século XIX: Gonçalves Dias, com sua "Leonor de Mendonça", Álvares de Azevedo - com seu promissor "Macário", que faz entrever um futuro Goethe tropical - e Castro Alves, com seu "Gonzaga ou a Revolução de Minas", que recebeu elogios de Alencar e de Machado. Quase todos esses poetas, porém, morreram cedo. Mal tiveram tempo de experimentar a glória e sobretudo as misérias da vida teatral brasileira.
Sobre Machado de Assis, o ídolo e ícone maior de nossa literatura, Sábato tem a coragem de afirmar que "suas peças não apresentam grandes qualidades em si." E, como se não bastasse, repete o veredito de Quintino Bocaiúva sobre dois textos teatrais do início de carreira de Machado: "As tuas comédias são para serem lidas e não representadas." Afirmação esta endossada por quase todos os críticos posteriores do teatro machadiano, inclusive seus amigos. O que nos leva a considerar duas hipóteses: ou o teatro de Machado não era mesmo o seu ponto forte, ou ele não sabia escolher os amigos.
Em tênue defesa das comédias de Machado, Sábato afirma que suas escassas virtudes decorrem sempre de negações: suas peças "não têm mau gosto - (porque) só de vez em quando (há nelas) algumas frases incompreensíveis num escritor requintado - não se entregam a exageros, não admitem o melodrama." (os grifos são nossos) Em suma, Sábato celebra a falta de afinidade de Machado com a dramaturgia. Porque sem um certo mau gosto, uma boa dose de exagero e algumas frases pouco dignas de um "escritor requintado", dificilmente se faz teatro.
Resumo da ópera: Machado é um dramaturgo que não gosta de conflitos. Se tivesse escrito o “Hamlet”, Cláudio, o usurpador, jamais teria matado o irmão. Gertrudes seria uma mulher fidelíssima - embora o rei seu marido pudesse desconfiar de seus olhos de ressaca e imaginá-la oblíqua e dissimulada. E não haveria nada de podre no reino da Dinamarca. Talvez nem no Brasil.
Sábato aponta também o desinteresse crescente do Rio de Janeiro da época pela atividade teatral. Ressalva, porém, em favor do nosso admirável bruxo do Cosme Velho que: "Quanto ao crítico teatral, (Machado) foi possivelmente a maior autoridade que tivemos no século XIX."
Não é à toa que, em 1873, em seu estudo "Literatura brasileira: instinto de nacionalidade", Machado escrevia: "Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais deste país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que não admitissem alguma obra nacional quando aparecia. Hoje, que o gosto do público tocou o último degrau da decadência e da perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor obras (...) de arte. (...) Os autores cedo se enfastiaram da cena que a pouco e pouco foi decaindo até chegar ao que temos hoje, que é nada." Se a reflexão de Machado pode nos servir de consolo, houve tempo em que a coisa ainda esteve pior do que nos dias de hoje.
O teatro brasileiro poderia adotar como divisa a abertura do famoso poema de Fernando Pessoa:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
As palavras de Machado talvez tenham desalentado o comediógrafo França Júnior, que levou anos até reunir energia para arrematar suas peças. Apesar disso, Sábato sumariza: "França Júnior teve a sorte de compor umas poucas comédias deliciosas, que figuram obrigatoriamente em qualquer antologia do nosso teatro de costumes. No terreno político, ele fixou certos ridículos brasileiros melhor que ninguém. Escreveu, por felicidade, algumas obras-primas... (que) prestam-se a remontagens, que não se tornam rotineiras devido ao nosso desconhecimento do passado. (As peças) "Como se Faz um Deputado", "Caiu o Ministério" , entre outros textos, sustentam a reivindicação para França Júnior do título de melhor comediógrafo do Brasil." E acrescentamos: se França Júnior escrevesse em russo e se chamasse Gogol, talvez se transformasse num clássico planetário.
O protagonista seguinte do Panorama do teatro brasileiro é Artur Azevedo. Seus detratores talvez o identificassem com o necrológio do teatro brasileiro da época, já mencionado aqui, escrito por Machado de Assis: na mediocridade total do fim do século, quem comporia verdadeiras obras de arte? E mesmo que as compusesse, até mesmo a plateia da época é desqualificada por Machado: "Quem lhas receberia, se o que domina (o teatro brasileiro) é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?"
No entanto, ao contrário do que dizem os que lhe são desafeiçoados, Artur Azevedo é um craque. Escreveu uma quantidade industrial de burletas, vaudevilles, traduções, adaptações, tudo. A opereta francesa “La Fille de Madame Angot”, em sua subversão tropical, ganha o título de “A Filha de Maria Angu”. E sucedem-se versões e adaptações brilhantes de textos de todas as latitudes.
Artur Azevedo comete, para seus críticos, o pecado de escrever por encomenda. A ignorância de seus detratores não lhes permite saber que grande parte da obra de Mozart e de Johann Sebastian Bach também foi escrita por encomenda. Wolfgang Amadeus, até onde se sabe, era um perdulário, vivia "competindo contra o aluguel", como dizia séculos mais tarde seu colega Antônio Carlos Jobim. E Bach era pai de uma família tão numerosa que, se não escrevesse música por encomenda, cometeria um genocídio doméstico.
Artur Azevedo chegou a ser acusado pelos críticos de sua época de ser o responsável pela ruína teatral do Brasil. E respondeu: "Todas as vezes que tentei fazer teatro sério, em paga só recebi censuras e apodos (...), ao passo que, enveredando pela bambochata (que, para quem não sabe, é pândega, patuscada, peça burlesca), não me faltaram nunca elogios, festas, aplausos e proventos (que, para quem não sabe, é dinheiro). E arremata seu raciocínio: "Relevem-me citar esta última fórmula da glória, mas - que diabo! - ela é essencial para um pai de família que vive da sua pena."
Artur Azevedo legou ao Brasil duas obras-primas: "A Capital Federal" e "O Mambembe". A única restrição que Sábato lhe faz é o fato de que nunca lhe ocorreu uma ideia original: Azevedo tomou-as sempre de empréstimo de outros autores. Em defesa de Artur Azevedo poderíamos lembrar que também Shakespeare quase nunca se deu ao trabalho de ter uma ideia original. Ele as recolhia em Plutarco, ou nos livros de História, ou nos livros e folhetos que comprava, dentre os quais certo conto italiano idêntico a "Romeu e Julieta", do qual ele só trocou o nome da mocinha para Julieta Capuleto, senão ela manteria até hoje o nome pouco elegante e notavelmente comestível de Julieta Capeletti.
Apesar de sua originalidade questionável, Sábato reconhece em Artur Azevedo "a maior figura do teatro brasileiro. Não, certamente, o maior dramaturgo, mas a personalidade que melhor encarna os nossos vícios e virtudes."
Para ocupar o lugar de dramaturgo-mor do Brasil, Sábato elegeu Nelson Rodrigues. Aliás, ele e a torcida do Flamengo, embora Nelson fosse um tricolor roxo. A explosão de sua dramaturgia se deu com a peça “Vestido de Noiva”, encenada em 1943, no Theatro Municipal aqui ao lado. Sábato descreve a força desse novo modo de pensar o teatro: "Quando as nossas peças, em geral, se passavam na sala de visitas, numa reminiscência empobrecedora do teatro de costumes, “Vestido de Noiva” veio rasgar a superfície da consciência para apreender os processos do subconsciente, incorporando por fim à dramaturgia nacional os modernos padrões da ficção."
“A renovação não se circunscreveu, contudo, a esse importante aspecto da mudança da objetiva temática, passando do convencionalismo das situações domésticas para a desagregação da mente de uma (mulher) acidentada que vai morrer. Os temas novos são insuficientes para marcar uma alteração no panorama literário, se não estão sustentados por uma linguagem nova. E é nesse campo que a contribuição de Nelson Rodrigues se tenha revelado mais significativa: enquanto os dramaturgos da geração adotavam um diálogo artificial, com um tratamento diverso da linguagem corrente, ele restringiu a expressão cênica a uma absoluta economia de meios, conseguindo de cada vocábulo uma ressonância admirável."
Desnecessário recapitular as virtudes de Nelson Rodrigues como escritor de diálogos. É, por exemplo, o primeiro dramaturgo brasileiro a misturar a segunda e a terceira pessoa do singular, conforme a fala carioca. Alcançou provavelmente a glória maior de um fazedor de frases, que é incorporar-se ao patrimônio dos falantes de sua língua. Assim como Shakespeare se disseminou no patrimônio da língua inglesa, dezenas de frases de Nelson são usadas como se de origem anônima. Exemplo? "Dinheiro compra até amor verdadeiro." Ou: "Tarado é toda pessoa normal pega em flagrante."
Sábato afirma o enorme valor de Nelson Rodrigues: "Ele guindou de novo o teatro ao carro da literatura, e, dessa vez, como contribuição própria de dramaturgos, e não de escritores atraídos subsidiariamente pelo palco." E completa, em Teatro em foco: "...a estreia de “Vestido de Noiva” fez com que o teatro brasileiro perdesse o complexo de inferioridade." Foi Sábato quem deu ao teatro brasileiro essa nova dimensão. Se hoje o teatro brasileiro raramente tem a sua existência questionada, isto se deve em grande parte à paixão e ao empenho de Sábato Magaldi.
Um pequeno parêntese pessoal. Conheci Sábato no Teatro Ipanema, em 1985, acompanhado de sua imprescindível Edla Van Steen. Já era um dos maiores críticos do Brasil havia muitos anos, mas não fazia pose, era extremamente cordial e ainda apaixonado pelo ofício. Hoje, graças a essa arquitetura de consonâncias de que é feita a vida, temos a alegria de comemorar, mais uma vez, a vida e a obra de Sábato Magaldi. Para que esta homenagem seja completa, temos aqui a presença da atriz sobre quem Sábato declarou que já não tinha mais palavras para elogiar: a nossa musa Fernanda Montenegro.
Gostaria de falar também sobre o antecessor de Sábato na cadeira 24, Cyro dos Anjos. Gostaria de falar sobre sua prosa neomachadiana, da qual cito fragmentos: "É plano antigo o de organizar apontamentos para umas memórias que não sei se publicarei um dia." (...) "Por que um livro?" Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. (...) O melhor seria viver sem livros, mas o homem não é dono do seu ventre. (...) Este mesmo Belmiro sofisticado foi quem matou dois outros livros, no decurso dos dez últimos anos. Um no terceiro capítulo, e outro na décima linha da segunda página. Enterrei-os no fundo do quintal, como se enterravam os anjinhos sem batismo (...). Sobre a cova brotou uma bananeira."
Por acaso, conheci Cyro dos Anjos em 1959, em Brasília, porque um de seus filhos era meu colega de carteira na escola pública. De vez em quando íamos à sua casa tomar lanche, na quadra ao lado da escola, e lá estava Cyro com sua cara simpática de Amanuense Belmiro, o título de seu primeiro romance, do qual fazem parte os fragmentos citados acima.
Se pudesse voltar atrás na máquina do tempo, gostaria de falar sobre nosso patrono, Júlio Ribeiro. Falaria, é claro, sobre seu livro A carne, publicado em 1888, ano da Abolição. Gostaria de comentar a dedicatória, escrita em francês para homenagear Émile Zola - que aliás foi sócio correspondente desta Academia. De como A carne se tornou o nosso mais famoso livro erótico, lido às escondidas por diversas gerações. A história da mocinha que se julga "hysterica", depois descobre que seu estado "não era pathologico", mas apenas "physiologico". "Era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da CARNE", escrita em letras maiúsculas. Temos que registrar aqui a paciência dos leitores do passado, obrigados a ler avidamente o livro até a página 229, até que se consumasse o amor dos protagonistas, Lenita e Barbosa. Mas a espera, mesmo para os padrões de hoje, vale a pena. E o desfecho do livro é original. Ao contrário das heroínas românticas e pós-românticas que morrem no fim, desde a Marguerite de A dama das camélias até a Luisa de O primo Basílio, Lenita descobre que Barbosa, o mocinho - aliás, já meio velhusco - nunca foi modelo de comportamento masculino. Em represália, casa com um pretendente de ocasião e vai para a Europa, enquanto o mocinho comete o suicídio. Talvez, ao fazer o elogio de uma heroína emancipada, Júlio Ribeiro tenha feito um romance pré-feminista.
O primeiro ocupante da cadeira 24 foi Garcia Redondo, engenheiro, jornalista, professor, contista e teatrólogo. Garcia Redondo, como se vê, fazia de tudo um pouco, como nós continuamos a fazer. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1854, frequentou por algum tempo a Universidade de Coimbra e foi amigo de Guerra Junqueiro, o poeta de "O melro, eu conheci-o: era negro, vibrante, luzidio." Depois, engenheiro fiscal de obras de Alfândega de Santos. Usava pseudônimos curiosos, como Um contemporâneo, Um plebeu e Childe Harold, este último em homenagem a Lord Byron, que infelizmente morreu antes da existência desta Academia.
O sucessor de Garcia Redondo foi Luís Guimarães Júnior, filho de Luís Guimarães Filho. Não me peçam para explicar como o Júnior é filho do Filho. É um mistério, para mim, insondável. Sei que Luís Guimarães é também filho de um belíssimo soneto de seu pai, que muitos aqui conhecem de cor, chamado “Visita à Casa Paterna”, cuja primeira estrofe diz:
Como a ave que volta ao ninho antigo,
Depois de um longo e tenebroso inverno,
Eu quis também rever o lar paterno,
O meu primeiro e virginal abrigo.
Sendo filho de um soneto desses, com um verso como "depois de um longo e tenebroso inverno", Luís Guimarães Júnior não precisava de outra credencial.
Quem o sucedeu na cadeira 24 foi Manuel Bandeira, fã desse mesmo soneto. Fez dele uma paráfrase, um soneto que se chama “A Ninfa”:
"Estranha volta ao lar naquele dia!
Tornava o filho pródigo à paterna
Casa, e não via em nada a antiga e terna
Jubilação da instante cotovia."
Não sei se essa cotovia ausente era a mesma que cantou no balcão de Romeu e Julieta. O fato é que Bandeira, ao entrar no quarto da casa de seu pai, se depara com uma mulher nua. A ninfa do título. E ao vê-la nua, deitada na cama, o poeta tem um de seus maiores alumbramentos:
"Buliu na luz do lar, na luz do leito,
Como um brasão de timbre indecifrado,
O ruivo, raro isóscele perfeito."
Não vou me arvorar em dizer coisas sobre Manuel Bandeira. O poeta merece uma reflexão toda sua. Talvez esteja em sua poesia o centro da história da poesia brasileira, a ponte entre o passado e o presente. Para ele convergem a herança portuguesa, desde Dom Dinis e Camões, a quem é dedicado um de seus primeiros poemas, e toda a tradição romântica e parnasiana. Nele se funda o Modernismo. Seu poema “Os Sapos”, como todos sabem, fez parte da Semana de Arte Moderna de 22. Bandeira foi o grande leitor de nossa tradição poética. Reescreveu vários de seus poemas, ora como paráfrase, ora como paródia. Era pós-moderno, antes que existisse pós-modernidade. Vinicius de Moraes o chamou de "poeta, pai, áspero irmão." Sendo pai de todos, Bandeira estabeleceu o nosso paideuma, se me perdoam o palavrão. Bandeira é a fonte de onde nascem quase todos os rios significativos da poesia do Brasil. Mesmo quem não escreve sob o influxo de Bandeira é obrigado a escrever contrariando a sombra de Manuel Bandeira.
Seus poemas estão guardados na memória de quase todos os aqui presentes. Sua biografia se oferece n' O itinerário de Pasárgada, no qual o próprio poeta relata os lances fundamentais de sua vida. Quem quiser conhecê-la em minúcias pode consultar depoimentos como os de Antenor Nascentes, seu colega de Colégio Pedro II. Segundo ele, Bandeira era brigão e ficava indignado com qualquer erro que se cometesse no uso da língua portuguesa. E arremata: "criou-me um hábito que hoje me impede de colocar os pronomes à brasileira." Logo Bandeira, que depois diria numa entrevista: “Aos poetas e escritores compete o dever de trabalhar artisticamente os brasileirismos, até dar-lhes foros de linguagem literária.”
Até São Pedro, na poesia de Bandeira, fala em português do Brasil: "Entra, Irene. Você não precisa pedir licença."
Bandeira tinha a intenção de ser arquiteto, mas a tuberculose impediu que seguisse a carreira. A poesia se instalou na vida do rapaz tísico, que passou a perambular pelos sanatórios do Brasil e da Suíça. Como diria o Conselheiro Acácio, há males que vêm para o bem. Bandeira era um condenado à morte. Sua melancolia pode ter começado com a consciência de sua mortalidade. "A vida inteira que poderia ter sido e que não foi." Tudo conspirava para que sua vida fosse uma chama breve. Uma história sem muito som e fúria, significando pouca coisa. Mas a vida tinha outros planos.
Suponho que convivessem no poeta pelo menos duas identidades. Primeiro, Bandeira ele mesmo, professor do Pedro II e da Universidade do Brasil. Um scholar, se me permitem o anglicismo. E seu duplo, Manduca Piá, o codinome com que Bandeira assinava suas letras de música. Este era frequentador da Lapa, dos batuques, da boêmia - ou boemia, para os íntimos.
(Gostaria que a ideia da duplicidade psicológica de Bandeira fosse minha. No entanto, descobri que já havia sido insinuada por Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, na introdução à coletânea Estrela da vida inteira, de 1966. Também fora tangenciada por Mário de Andrade, com sua sintaxe peculiar, em Aspectos da literatura brasileira, a propósito da coletânea Libertinagem: "Aliás, se dá mesmo uma luta permanente entre essa essência "intratável" do indivíduo Manuel Bandeira e o lírico que tem nele. Vem disso o dualismo curioso que a gente percebe nas obras dele, passando de jogos com valor puramente pessoal (...) a concepções profundas duma beleza extremada e interesse geral.")
Manuel Bandeira, ele mesmo, era um clássico. Já Manduca Piá, seu alter ego, era moderno e às vezes um romântico tardio. N'O itinerário de Pasárgada, há seis páginas sobre a musicalidade da poesia e a composição de canções. Nelas, além de falar sobre seus poemas musicados, Bandeira declara: "Essa tarefa de escrever texto para melodia já composta, coisas que fiz (...) para Jaime Ovalle e (...) para Villa-Lobos, é de amargar." Em suma, enquanto se discute no início do século XXI se Bob Dylan merece o Prêmio Nobel de Literatura, a Academia Brasileira de Letras já tinha, no século passado, o seu letrista Manuel Bandeira. Ou Manduca Piá.
Não tive a felicidade de conhecer Bandeira. Contudo, inspirado numa dedicatória de Jorge Luis Borges a Leopoldo Lugones, seu antecessor na Biblioteca de Buenos Aires, gostaria de pensar que um dia todos os tempos se confundirão, e será como se eu tivesse feito este discurso na presença dele, como se ele o tivesse ouvido, e talvez tivesse até gostado, por reconhecer nele ecos de sua própria voz. Por caminhos e veredas que se bifurcam, Manuel Bandeira, cabe a mim, em nome dos girassóis das futuras gerações, manifestar a você a nossa gratidão e o nosso apreço.
Agradeço também à minha mãe, meus irmãos e meus filhos, que me ensinaram o exercício da fraternidade, qualidade rara num mundo em que se fecham as fronteiras das nações e do pensamento.
Agradeço aos parceiros de literatura e dramaturgia, a cuja amizade e paciência devo minha formação profissional. A Bráulio Pedroso, Millôr Fernandes e João Ubaldo Ribeiro.
Agradeço aos parceiros de música e de arte, que são tantos que não me atrevo a enumerá-los.
Agradeço aos amigos e acadêmicos aqui presentes, que convenceram quase todos os demais amigos e acadêmicos a votarem em mim. Agradeço também à única abstenção que recebi, talvez manifesta pelo membro mais sensato desta Academia. Aliás, creio que esta frase foi plagiada de uma declaração feita há vinte e três anos por outro amigo, Antonio Callado, quando eleito para esta Casa.
Para terminar, gostaria de agradecer a Ana Paula Pedro, que me tem suportado há tantos anos. Quando a conheci, e tomei conhecimento de seu nome, eu lhe disse: "Ana Paula, tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja." A frase pode parecer solene, mas foi sincera. Mesmo que haja muitas encarnações, não deve ser em todas que nos é permitido encontrar uma mulher que nos conceda uma faísca de divindade no meio da finitude de que é feita a vida.
Muito obrigado e boa noite a todos.