Trecho do discurso de posse de Francisco de Castro, não proferido e publicado após sua morte.
Fostes buscar ao prosaísmo da medicina o sucessor do ilustre homem de letras (Visconde de Taunay), que passou o melhor da sua vida no remanso divino da arte, entre os personagens amados dos seus romances, e com a morte do qual se fechou para sempre um vasto ciclo de poesia e de virtude.
Se imaginásseis debuxar num quadro paradoxal a conformidade das antíteses mais violentas e dos mais rasgados contrastes, não o faríeis melhor que aproximando e conferindo as qualidades espirituais do sucessor e do sucedido. É certo que também atravessei o foco ardente e algumas faíscas me ficaram dele; é certo que ambos professamos a mesma fé literária, o culto de alguma cousa superior à imperfeição das nossas obras e à fatalidade dos nossos erros, alguma cousa que escapa à rasoura dos interesses temporais, às sugestões da vaidade, à pressão das circunstâncias, aos golpes do acaso, às bênçãos da fortuna, alguma cousa como um eflúvio do céu, que derrama nas almas atribuladas as músicas da vida interior e refrigera a aridez do coração para as tentações do amor e as doçuras do pecado.
Mas o ardor dessa fé simples e imensa, que apenas foi um episódio sem conseqüências na modesta carreira que adotei, teve para o meu antecessor o poder de uma vocação, a ação magnética de um talismã obrador de maravilhas, um não sei quê de volúpia intelectual com os seus deleites e os seus tormentos. O Visconde de Taunay sofreu a influência dessa tirania maviosa que só a arte tem o privilégio de exercer nos seus cultores. Porque só ela sabe entender-lhes as efusões, premiar-lhes os sacrifícios, estimular-lhes a pujança da seiva criadora, assisti-los na solidão das horas desoladas, requestar-lhes os arroubos e as saudades, as seduções e as provações, os primeiros verdores da alma e as últimas lágrimas da vida.
A capacidade do Visconde de Taunay, como aliás a dos melhores espíritos contemporâneos seus, não se estancou, entretanto, no afã das letras. Com a magnificência dos seus debates, a facilidade dos seus triunfos, o extenso rumor das suas glórias, a política dispõe dos mais enérgicos atrativos para ganhar os talentos sinceros, elegantes e fogosos. E na flor daquela juventude que passou há vinte anos, filha direta da filosofia do seu século, não faltavam merecimentos onde os partidos monárquicos viessem tentar a sua periódica reconstrução, refazer a provisão vital das energias gastas.
Cuido que a política não tem por si mesma a virtude de apaixonar a uma geração bem preparada para as porfias cerebrais. Nem os assuntos puramente políticos, em que apenas se movem conveniências imediatas e momentâneas, nunca foram a preocupação permanente dos povos cultos e viris. Para devorar as forças intelectuais de uma nação e, mais do que as próprias lides religiosas, levar consigo as massas, só os problemas sociais.
Estes são o lado humano por excelência das civilizações, encerram as aspirações universais do pensamento livre, congregam as energias do espírito novo na sua obra de renovação e de progresso, de redenção e de paz; servem a necessidades superiores, infundem na consciência dos fortes para as batalhas do século, nas defesas da vida e nas conquistas do bem, o entusiasmo dos princípios filantrópicos, o sopro das reações liberais, a luz da Providência, a voz do coração.
Melhor política é a que melhor governa, a que garante ao Estado a autoridade com que ele intima e se faz obedecer, a que suaviza as formas materiais da existência, a que espalha sobre os interesses gerais da nação os benefícios de uma administração vigilante. Mas as questões que importam ao regímen interno do Estado e não têm outro alcance que o político, são sempre secundárias.
Qualquer que seja a solução delas, adote-se uma precisa direção ou a sua contrária, e em breve já o resultado não se faz sentir na ordem dos negócios públicos. Cabe ao estadista criar leis, organizar instituições, produzir reformas oportunas; mas, para que medrem as reformas, as instituições floresçam, e imperem as leis onde impera a razão, não bastam os mecanismos da ação oficial: a função do político tem que fundir-se no ofício do filósofo, tem que manipular as idéias gerais do momento histórico, desenvolver tendências, remodelar costumes, consolidar as estruturas morais do país, atuar na vontade dos homens com o peso dos princípios naturais, a força irresistível das coisas. Aluir e converter, desagregar e recompor, talar e reconstituir, eis a fábrica de grandeza faraônica, tarefa de gigantes com que não podem mãos pigméias.