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Discurso de posse

 

 

 

Willian Shakespeare deixou eternizado este conceito estrutural como afirmação de uma Arte: “o mundo é um palco e todos nós, seres humanos, somos atores sobre esse palco.”

Agradeço e muito – com o meu coração e a minha razão – estar sendo aceita nesta Casa por este elenco protagonista, referencial, da nossa mais alta Cultura, que é a Academia Brasileira de Letras.

Emocionada, tomo posse neste momento da cadeira n˚ 17, pedindo às Senhoras e aos Senhores Acadêmicos, compreensão pela maneira como expressarei esta pulsação de vida que trago comigo neste ato.

Como prólogo desta minha fala, devo esclarecer que sou uma incansável auto-didata, cuja origem intelectual, emocional, sempre me chegou e ainda me conduz através da vivência inarredável de um ofício: atriz. Sou atriz.

Venho dessa mítica, mística arte arcaica, eterna, que é o Teatro.

Sou a primeira representante da cena brasileira, do palco brasileiro, a ser recebida nesta Casa como Acadêmica.

Solicitaria a paciência das Senhoras, dos Senhores Acadêmicos, e demais presenças, para trazer, sem me estender, algumas vivências, memórias, desta minha profissão – já que por ela existir – aqui estou.

Esse meu ofício – não para todos – esse meu ofício expressa uma estranheza compreensível.

A raiz desta arte está na complexidade de só “existir” através do corpo e da alma de um ator ou uma atriz ao trazer a literatura dramática para a verticalidade cênica.

É a carnificação da dramaturgia escrita. Do “ser ou não ser” sobre as tábuas de um palco.

Não se cumpre essa profissão sem devoção, sem obstinação, sem coragem.

É um oficio de absoluta solidão em que “o outro” é fundamental. Buscar “o outro”. Somar com “o outro” numa só estrutura. Daí, estarmos sempre, falo de atores de teatro, na esperança de total e imediata aceitação: da tragédia à comédia, do drama à farsa, à sátira.

Albert Camus, filósofo e escritor, define o ator como a configuração de sua visão filosófica. Para Camus este ofício simboliza “o absurdo do existir”.

Pequeno trecho do seu extraordinário ensaio “O Mito de Sísifo”. Diz Camus:

“O ator reina no domínio do mortal. De todas as glórias do mundo sabemos que a sua é a mais efêmera. E é também o ator quem mais percebe, entre os homens, que tudo deve morrer um dia”.

Sim. Na nossa Arte o ato cênico exige o ser humano aceitar como criatividade “Morrer e Renascer”. “Morrer e renascer”. “Morrer e renascer”. É uma opção de vida inquietante. Abstrata – embora corporificada. Uma sobrevivência desafiadora. Sem escamoteio. É ou não se é. De imediato, aceita ou renegada.

É a existência humana numa absoluta liberdade criadora, tendo não só o corpo, mas, a alma do ator como instrumento.

É a sublime Arte Amoral.

É uma Arte Amoral – da qual somos os oficiantes criadores.

Para alguns, esta é uma profissão marginal como comportamento.

Nenhum pai – e mãe nenhuma – aceitam com tranquilidade um filho – muito menos uma filha – optar profissionalmente pelo palco. Amadoristicamente até podem. Como profissão, não.

Mas a vida nos palcos, nas arenas, existe nessa “Terceira Margem do Rio” há milhares, milhares e milhares de anos.

Como histórica referência, lembro Molière – gênio criador de uma grande e sublime dramaturgia. Antes de alcançar um lugar nobilíssimo nas enciclopédias desse mundo, Molière foi um ator. Um ator vocacionado. O protagonista absoluto do seu próprio elenco.

Como Shakespeare, na Inglaterra. Ambos foram intérpretes titulares, suplantando todas as condenações moralizantes existentes desde sempre. Na distância do tempo, devemos a eles, na criação cênica, o homem contemporâneo.

Molière pode ter tido até a glória de ter- se sentando à mesa de seu rei, mas, como todos os comediantes de seu tempo, foi enterrado fora do cemitério como qualquer marginal da época. Senhoras    e    Senhores    Acadêmicos, importantes personalidades presentes, queridos

amigos,

 

Já são 300 anos da presença do Teatro no Brasil, precedidos de mais 2 séculos de catequização jesuítica, encenando autos religiosos. Portanto – Teatro.

Nesses 3 séculos, tivemos gerações e gerações de artistas nas nossas praças, arenas, palcos, picadeiros, anfiteatros.

Alcançamos a era eletrônica, digital, com o rádio-teatro, teleteatro, telenovelas, teleséries. Chegamos ao cinema e ao streaming, apresentando o nosso caráter cênico brasileiro com reconhecido sucesso, com total respeito, através de incontáveis premiações nacionais e internacionais.

Ressalto que, como nesta minha profissão a solidão não existe, a minha vida cênica traz sempre comigo incontáveis e memoráveis companheiros sem os quais nem eles nem eu teríamos dado conta através dos nossos pulmões, dos nossos corações, da nossa criatividade, de todo um conjunto inimaginável

de encenações de obras referenciais da grande dramaturgia.

Graças aos Deuses – e a nós mesmos – sou testemunha, sou integrante, sou parte do que o Teatro no Brasil realizou no período maior do século XX. Sempre, sempre, diante de plateias, que também prestigiavam ousadas, corajosas propostas cênicas. Um público que não negava se juntar a nós nos memoráveis protestos públicos, quando exigíamos liberdade de expressão, liberdade política, diante daquela violenta asfixia militar pela qual o País passou.

Nesses meus quase 80 anos de vivência teatral, enfrentei, sim, personagens desafiadoras, oriundas de uma sublime dramaturgia que me alimentou, me culturalizou – de Sófocles a Plauto, de Shakespeare a Molière, a Cervantes. De Corneille a Racine. De Goethe a Goldoni, a

Ibsen, a Strindberg, Bernard Shaw, Pirandello, a O’Neill. De Tchecov a Brecht, a Fassbinder, a Harold Pinter, a Beckett.

Na nossa literatura dramática, de Martins Penna a Castro Alves, a Gonçalves Dias, a Machado de Assis, José de Alencar, Arthur de Azevedo. De Oswald de Andrade a Millôr Fernandes, a Ariano Suassuna.

E a Nelson Rodrigues – a quem devo uma    presença    absolutamente    referencial    na minha    vida    profissional.    Foram    três    peças escritas a nosso pedido: “O Beijo no Asfalto”, “Toda Nudez Será Castigada” e “A Serpente”. O meu primeiro trabalho em cinema devo a ele em “A Falecida”, direção de Leon Hirszman. Além de três novelas de tv: “A Morta Sem Espelho”, “Pouco Amor Não É Amor” e “O Desconhecido”.

Nelson Rodrigues é o cronista visceral do comportamento do homem brasileiro. E é um memorialista comparável a Pedro Nava. Dele, já faz tempo, apresento pelo Brasil “Nelson Rodrigues Por Ele Mesmo – Memórias” com total aceitação de plateias de todos os tamanhos, de todas as idades, de todos os níveis sociais.

Fecho esta saudação a Nelson Rodrigues com esta sua frase tão humana: “Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo”. Esse é o Nelson.

Na área de intérpretes, saúdo como primeira referência de atriz, a figura histórica de Estela Sezefreda.

E sigo, trazendo a esta Casa, a memória de Apolônia Pinto; Itália Fausta (que vi em cena); Lucília Perez (com quem contracenei); Henriette Morineau (minha mestra básica); Eva

Todor; Tônia Carrero; Maria Della Costa; Dercy Gonçalves; Alda Garrido; a grande Cacilda Becker; Cleyde Yáconis; Marília Pêra; Ruth de Souza; Dulcina de Morais (a mais orgânica, a mais completa e importante personalidade do Teatro Brasileiro). E Bibi Ferreira. Bibi querida. “A atriz que eu sonhava ser quando crescesse.”

Quanto aos atores honro e louvo de João Caetano a Procópio Ferreira; de Paulo Gracindo a Chico Anysio – e a Paulo Autran – atores símbolos.

E, particularmente, para sempre, meus “irmãos” Sérgio Britto e Ítalo Rossi, com os quais convivi e contracenei celularmente durante 50 anos.

Na minha eterna e imensa saudade, o homem de teatro, Fernando Torres – uma vocação sem igual. Minha incansável e louca

retaguarda. A ele eu devo 60 anos de uma busca de realização artística pelos muitos e muitos e muitos palcos deste nosso Brasil. E, como o máximo encontro do nosso existir, devo a Fernando Torres “a particular Tribo de Oficiantes Vocacionados” – nossos filhos.

E chegamos a este novo século com uma inarredável presença vocacionada de criadores cênicos plenos de talento: atrizes, atores, encenadores, dramaturgos, cenógrafos, figurinistas.

Somos uma raça indestrutível mesmo diante dessa brutal, trágica posição governamental contra a cultura da artes que, no momento, estamos vivendo no Brasil.

 

Mas, resistimos. Resistimos. Sempre.

Somos eternos.

*

Encerro assim este prólogo, esta minha explanação geral sobre o mundo de onde venho. Para mim, um mundo cultuado porque sagrado.

*

Senhoras, Senhores Acadêmicos e importantes presenças,

Frequento a Academia Brasileira de Letras faz muitos anos. Com algumas personalidades desta centenária Casa tive e tenho o privilégio de conviver. Recebi, algumas vezes, sugestão para me propor a esta Instituição

– gentileza dos Acadêmicos Marcos Vilaça, do Presidente Merval Pereira.

Muito me aproximei do Acadêmico Domício Proença Filho quando da leitura de sua obra “Capitu – Memórias Póstumas” – aqui, no

Teatro Raimundo Magalhães Junior. Trago também o nome da Acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira, que esteve ao meu lado nos debates que se seguiam após a apresentação do espetáculo “Viver Sem Tempos Mortos” – de Simone De Beauvoir.

Mas, de forma especial, quero reverenciar nesta Cerimônia de Posse, a pessoa da Acadêmica Nélida Piñon.

Querida,    muito    querida    Acadêmica Nélida Piñon – personalidade artística, cultural, humanista – não só desta Academia – deste nosso País. Tive na sua pessoa uma generosa conselheira, uma condutora.

Por tanta atenção, crença e respeito, receba o meu reconhecimento, a minha benquerença, o meu grande, imenso e eterno obrigado.

*

Sigo, então, cumprindo o ritual da Cerimônia de Posse, trazendo as figuras altamente importantes que me precederam na cadeira n˚ 17, cujo patrono é Hipólito da Costa – um consagrado brasileiro, um revolucionário, uma brava e histórica figura na luta pela nossa Independência. Hoje inscrito no “Livro dos Heróis da Pátria”.

Hipólito da Costa, nascido em 1774, formou-se em Filosofia e Direito na Universidade de Coimbra. Acusado e condenado pela Inquisição por defender e propagar a Maçonaria em Portugal, após quase 3 anos de cárcere, foge para a Inglaterra, ali permanecendo até o fim de sua vida. Na luta heroica pela liberdade de nosso País, em 1808, funda o “Correio Braziliense”, que circulou,

mensalmente, por 14 anos, sendo ele o único editor e redator. Esse personagem deixou 29 tonus de críticas e análises objetivas, sólidas, em defesa da liberdade do nosso País.

Segue dele este pequeno trecho tão revelador do seu humanismo:

“O primeiro dever do homem em sociedade, é ser útil aos membros dela, e cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar em benefício da mesma os conhecimentos ou talentos que a natureza, a arte, ou a educação lhes prestou. As luzes que ele espalha tiram das trevas aquele que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano”.

Hipólito da Costa falece em 1823, já vendo concretizada a nossa Independência por ele tão sonhada.

Quando da fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, o historiador, ensaísta,    crítico    literário    excepcional,    o memorialista destemido Sylvio Romero, já como Acadêmico,    proclamou    Hipólito    da    Costa Patrono da cadeira n˚ 17, cadeira esta criada pelo próprio Sylvio Romero.

O Acadêmico Sylvio Romero morre aos 63 aos de idade.

Esta cadeira passa a ser comandada por Joaquim Osório Duque-Estrada, poeta, crítico literário, ensaísta.

Nascido no município de Vassouras, no Estado do Rio de Janeiro, viveu apenas 57 anos.

É dele, em versos decassílabos, a letra do Hino Nacional Brasileiro.

É, então, que em 1928, chega a esta Casa o antropólogo Roquette Pinto – autor de um clássico de nossos estudos antropológicos: “Rondônia”.

Historicamente, o Acadêmico Roquette Pinto é a figura pioneira, referencial, da comunicação eletrônica no Brasil. Em 1922, esse extraordinário brasileiro cria e comanda a importante Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.

Em 1936, numa doação, ele transfere para o Ministério da Educação e Cultura esse milagroso sistema moderno de radiodifusão. Nasce, então, a Rádio Ministério da Educação e Cultura – a Rádio MEC – cuja programação passou a transmitir um sistema educacional, cultural, organizado e supervisionado por

escritores, professores, jornalistas, músicos, compositores clássicos e folclóricos, transmissão de óperas, concertos, aulas de literatura, de história, de filosofia, sociologia.

Houve    necessidade        de    preparar intelectualmente        redatores,            adaptadores, locutores e rádio-atores com aulas de dicção, de recitação, de prosódia, noções de logopedia e o estudo    da    matéria        a    ser    interpretada    em adaptações de obras literárias para o rádio-teatro. Formou-se, então, um elenco de rádio-

atores.

Em 1945, eu, aos 16 anos, depois de, em

 

um    teste,    ler    uma    poesia,    fui    aceita profissionalmente no elenco da emissora.

Permaneci na Rádio MEC por 10 anos

como locutora, rádio-atriz e responsável, durante alguns anos, pelo programa “Passeio Literário”, baseado em adaptações de obras referenciais.

A Rádio MEC foi a minha vibrante “Universidade”.

Devo a esse educador, a esse corajoso visionário – Roquette Pinto – o início da minha atividade artística. Eu o tenho como o meu particular Patrono.

Esse importante homem esteve presente nesta vida por 70 anos.

O “slogan” para a Rádio MEC, criado por esse grande brasileiro, Roquette Pinto, permanece eterno na minha memória:

“Pela cultura dos que vivem em nossa Terra; pelo progresso do Brasil”.

*

Na sequência das personalidades que me antecederam nesta Instituição, faço presente a figura obstinada de brasilidade de Álvaro Lins, advogado, professor, memorialista, importante jornalista e sólido crítico literário. Esse grande homem público, sempre a serviço de nossa cultura, nos deixa aos 58 anos de idade.

Antonio Houaiss torna-se então o quinto ocupante da cadeira. Foram 28 anos de uma participação ampla, calorosa, como crítico literário, tradutor, diplomata, ministro da cultura do governo Itamar Franco, filólogo e enciclopedista.

Na sucessão acadêmica, quem me precede como sexto ocupante é o Acadêmico Affonso Arinos de Mello Franco – Affonso Arinos Filho – professor, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, escritor, deputado,

memorialista, diplomata, embaixador do Brasil na Bolívia, no Vaticano e na Holanda.

Prezadíssimas Acadêmicas, Prezadíssimos Acadêmicos, muito prezadas personalidades,

Simone De Beauvoir afirma que “O Acaso Tem Sempre a Última Palavra”.

O que motivou uma mulher de teatro aceitar se candidatar e estar, neste momento, na Cerimônia de Posse de uma cadeira nesta Casa?

Como o “acaso” se apresentou?

Nas minhas primeiríssimas vindas à Academia, certo dia, um belo e elegante senhor de presença altamente civilizada, com quem eu nunca trocara uma palavra, veio ao meu encontro. E, de uma maneira determinada, clara, direta, irmanada, sem sorrisos, com total cumplicidade e delicadeza, intimou:

“Fernanda, entre para a Academia.

Escreva um livro e entre para a Academia”.

Permanecemos um instante nos olhando. Voltei da minha surpresa. Agradeci. E logo ele seguiu em direção a outras pessoas ali presentes.

Nesta importante Sala, toda vez que o via, sabia que ele viria ao meu encontro. E no tom de um “cúmplice comando”, delicadamente ordenava: “Fernanda, escreva um livro e entre para a Academia”. Eu sempre agradecia e ele seguia adiante.

Nos olhos daquele homem sempre li uma objetividade comovente.

Por que a insistência, tão surpreendente, daquele Acadêmico para comigo? Por que achar, com absoluta crença e respeito, que uma mulher de teatro, uma mulher do palco, teria o

direito de estar na Academia Brasileira de Letras? Candidatura essa, para alguns, impensável.

A razão desse comando tão fraterno feito a mim por Affonso Arinos de Mello Franco

– Affonso Arinos Filho – é que esse ser humano era um ativista cultural real. Na pele, um artista. Um irmão da mesma fé.

Além de escritor, um potencial cantor, ator. Um feliz e saudável boêmio. Companheiro de grandes figuras da nossa, dita, “criatividade popular” – “criatividade popular” da qual eu faço parte, como igualmente o nosso grande, grande artista absoluto: Gilberto Gil. Somos Artistas Populares – sim – com a graça de Deus – e de todos os Deuses, somados, deste nosso Brasil.

O Acadêmico Affonso Arinos Filho teve, no seu convívio, entre tantos artistas

referenciais, Tom Jobim, Antonio Maria, Rubem Braga, Zé-keti. Frequentava o “Grêmio Recreativo Escola de Samba União de Vaz Lobo”. Entre alguns famosos bares: o “Beco das Garrafas” se destacava, pois, era onde ia ouvir cantar Dolores Duran. Tinha como grande amigo Vinícius de Moraes, não mais diplomata, mas, um grande poeta, um compositor, uma presença encantatória em memoráveis shows, quando ouvíamos “o nosso poetinha” saudar e cantar a nossa extraordinária e eterna música, dita – graças aos anjos e arcanjos – música popular.

Registro, aqui, trechos de um de seus livros de memória, ele já nos seus 69 anos de idade, quando aceitou mais um desafio artístico: ser um dos atores no espetáculo “Chuveiro Iluminado”.

Escreve ele em suas memórias: “Desde os anos 50, eu me habituara a falar em comícios, rádios e televisões, nas assembleias políticas, nas reuniões diplomáticas. Também o fizera, quando jovem, tocando violão pelas ruas em Ouro Preto, em Recife, em casa de parentes e companheiros. Agora, porém, a coisa muda de figura. O que começara como uma brincadeira entre amigos tomou forma quando Boal, o grande diretor de Opinião e Arena Conta Zumbi, criador do Teatro do Oprimido, concordou em escrever um roteiro e dirigir-nos. Para encurtar razões: estamos apresentando desde o princípio de março, na Casa de Cultura Laura Alvim, um musical composto por canções, sambas, marchas, tangos e boleros que fizeram sucesso em nossa mocidade. Até agora não houve um só lugar vazio nos espetáculos que se realizam nos fins de

semana, de sexta-feira a domingo. Atribuo sinceramente o êxito inegável do grupo de amadores, à competência criativa deste homem de teatro que é Boal”.

Affonso Arinos Filho sabia que Augusto Boal era e é um homem importante na história do teatro brasileiro. Personalidade cultural com quem trabalhei e de quem fui amiga.

“Chuveiro Iluminado” tinha como abertura Affonso Arinos Filho, acompanhando- se ao violão, cantando “Chão de Estrelas”, de Orestes Barbosa. E do elenco de 7 pessoas faziam parte duas atrizes amadoras, Cecília Boal e Laura Sandroni.

Essa encenação, depois de 2 meses em cartaz no Rio de Janeiro, seguiu para Paris e foi apresentada no belo Théâtre de L’Epée de Bois,

isso graças às relações de Augusto Boal com o meio cultural ministerial francês, que também o apoiou na fundação do seu Théâtre de L’Oprimmé, criado pelo próprio Boal, na França, quando do seu exílio imposto pela ditadura militar no Brasil.

Affonso Arinos de Mello Franco – Affonso Arinos Filho – tomou posse da cadeira n˚17 no dia 26 de novembro de 1999.

Quem o saudou na cerimônia foi o Acadêmico José Sarney num pronunciamento vigoroso, nobre, sobre o grande caráter, sobre a personalidade tão civilizada, tão sensibilizada desse brasileiro.

Dessa saudação, destaco estas palavras do Acadêmico José Sarney:

“Podemos analisar sua vida e sua obra por três grandes vertentes – o homem de estado,

o político, o escritor. Temos (no homem de estado) o servidor público, o diplomata, o embaixador, o negociador e operador de relações internacionais, marcando sua carreira – não pela burocracia burocrática, a consumir-se no cotidiano de suas tarefas – mas, com espírito público, com posições nítidas, defendendo políticas públicas, colocando ideias claras voltadas sempre pela compreensão de que os interesses do Brasil não se esgotam nos assuntos específicos do País, mas na visão de sua inserção no mundo, no destino dos homens, na revisão das injustiças a começar pelas desigualdades sociais”.

“Affonso Arinos rompeu as camisas- de-força do formalismo para cumprir a fidelidade de seus ideais cristão e de humanidade”.

 

Estas são palavras do Acadêmico José Sarney.

O Acadêmico Affonso Arinos Filho faleceu em 15 de março de 2020.

Diante da morte desse homem – um ser humano tão dimensionado na sua vivência tão existencial – eu me perguntei: por que não obedecê-lo? Por que não aceitar aquele comando, vindo de um brasileiro que, como eu, sabia o que representa a transcendência de um palco?

Ousei obedecê-lo. Saudá-lo.

Aceitei esse desafio à minha vocacionada vida vivida nos incontáveis e resistentes palcos deste nosso País.

Uma Mulher de Teatro, uma atriz, se candidata à Academia Brasileira de Letras.

É aceita.

Fato emblemático.

Detalhe do “acaso” a sublinhar:

Nessa cadeira n˚ 17, que eu ocupo a partir desse momento, nela, o meu Patrono Roquette Pinto, Afonso Arinos de Mello Franco e eu – por Imortalidade Acadêmica – estaremos para sempre juntos. Para sempre.

Como diz o Bardo:

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia”.

*

Prezado Presidente da Academia Brasileira de Letras,

Acadêmico Merval Pereira, Prezadas Senhoras Acadêmicas, Prezados Senhores Acadêmicos, Prezados amigos aqui presentes,

Minha Querida Família,

 

Falo, neste momento, como uma Acadêmica desta Casa:

Esta conquista não está circunscrita à minha pessoa.

É uma ação abrangente.

A sublime e resistente história dos nossos palcos agradece à esta Casa o reconhecimento cultural da nossa Arte Cênica.

Os 300 anos do Teatro no Brasil, em estado de aleluia, saúda a Academia Brasileira de Letras por este ato tão íntegro, tão civilizador e tão libertário.

 

O Nosso Muito Obrigado.

Fernanda Montenegro

 

Rio de Janeiro, 25 / Mar / 22