Sr. Eduardo Portella,
nascestes na Bahia, naquela Salvador barroca, cidade encantada e misteriosa, altamente civilizada e civilizadora, da qual recebestes o gosto da conversa amável e culta, da convivência gentil, das boas maneiras, da sociabilidade, do convívio familiar, da arte de bem receber e da boa mesa. Dela deriva a vossa tendência à composição sem capitulação. É que, civilização humanística a da Bahia, procura resolver os contrastes políticos e sociais pela conciliação e pelo diálogo, pela miscigenação e hibridismo, detestando os sectarismos e as posições extremas. Estou a ouvir a música celestial de seus milhares de campanários dobrando às Ave-Marias! Ainda escuto o batuque de seus atabaques, subindo do fundo dos vales e enchendo as suas noites de sonho e mistério. Bahia mágica!
De vossa genitora, D. Maria Diva Mattos Portella, representante típica da classe média daquela sociedade, baiana de tronco longínquo e ilustre, herdastes as qualidades de distinção que fazem o gáudio da boa gente de vossa e minha terra. Também dela recebestes a vocação para o Magistério, competente e culta professora de quem fala alto a comunidade de Feira de Santana, pela admirável folha de serviços prestados à causa da Educação em nosso Estado.
Nessa cidade, porta do Sertão, sede de um dos mais importantes centros do ciclo econômico do couro e do gado, hoje verdadeira encruzilhada dos caminhos que buscam o Norte e o Nordeste, em Feira de Santana, vosso pai, Enrique Portella, honrado comerciante espanhol, cedo se estabeleceu e fixou no ramo em que prosperou. Viera da Espanha, daquela área da Galícia dos caminhos de Santiago de Compostella, de cuja imigração se enriqueceu a Bahia, de forte colônia espanhola. E foi ele, vosso pai, quem vos despertou a compreensão valorativa da Europa e a paixão pela Espanha, e, nos vossos dois irmãos, Enrique Portella e Franco Portella, a tranquila vocação empresarial.
Assim, ao tronco baiano juntou-se um forte enxerto espanhol, de cuja mescla se engendraria muito do encanto e da robustez de vossa personalidade humana e intelectual.
Como se não fosse suficiente, ocorreu outra enxertia para mais vos fortalecer o espírito. Concluídos os estudos primários e iniciadas as humanidades, em 1947 partistes para Recife, a fim de completar o curso secundário e seguir os estudos superiores na famosa e admirável Faculdade de Direito, na qual vos matriculastes em 1951. Aí aguçastes o temperamento crítico e o pendor para as ideias, em que se distinguiram aquela cidade e aquela forja, sempre fiéis ao debate intelectual que caracterizou os tempos de Tobias Barreto e Sílvio Romero. Recife era no Direito o que a Faculdade do Terreiro de Jesus na Bahia foi para a Medicina: extraordinários centros de irradiação cultural.
Ainda ressoavam pelos salões e corredores da vetusta Academia os ecos do famoso concurso de Sílvio Romero, em 1875.
“A metafísica está morta”, bradava ele a um examinador menos cordato as suas ideias.
“Foi o senhor que a matou?” Perguntou o lente sarcástico.
“Não, não fui eu, foi a ciência... o espírito positivo, o progresso”. E retirou-se da sala renunciando ao concurso, ante a mofa dos examinadores e em meio aos aplausos frenéticos da estudantada sempre ávida de novidades.
Mal sabia o nosso gigante que a história das ideias não o confirmaria: a metafísica não morreu.
Também pelas ruas, pelas sacadas e no interior do velho Teatro Santa Isabel, parece que se ouviam as vozes de dois pugnazes boêmios da Poesia – Tobias Barreto e Castro Alves – que se encontraram como dois navios iluminados, cruzando-se na escuridão da noite.
A briga entre o sergipano e o baiano, por causa de duas atrizes, explodiria em versos.
Meus instintos não esmago
Não sonho, não me embriago
Nos banquetes de Friné...
Era Tobias na ofensiva, ao que retrucava o Castro:
Sou hebreu... não beijo as plantas
Da mulher de Putifar...
A Academia do Recife, contudo, não logrou fazer-vos um bacharel típico, embora vos diplomastes em 1955. Dela, é verdade, saíram juristas que, com os da Faculdade de São Paulo, deram ao nosso País a sua estrutura jurídica. Mas também por ela perpassaram jovens que se tornariam escritores, alguns notáveis escritores, historiógrafos, poetas, romancistas, críticos literários. Trazíeis do bom berço a vocação docente. A ela se ligaria, desenvolvendo-se, a vossa vocação de escritor. E vos fizestes escritor e crítico literário. Nessa condição, é que entrais para esta Academia. Desde muito cedo, vosso e meu querido Jorge Amado e eu conspirávamos a vossa entrada para a Academia. E isso é de longe. O próprio autor de Os Velhos Marinheiros, ao empossar-se em 1961, já prenunciava a vossa eleição.
Sentistes, no Recife, que não era aquele o vosso caminho. Vosso inconformismo intelectual exigia mais que um diploma de bacharel em Direito. Por isso, buscastes a Espanha. E, enquanto decorriam os anos do curso jurídico, ao mesmo tempo, viajáveis à Espanha, dividindo o ano de estudos entre Recife e Madrid, conciliados os períodos letivos, que não coincidiam, e assim conseguindo queimar as etapas de um e outro, num esforço explicável somente por indômita vontade de saber.
Dessa forma, foi-vos fácil absorver obras como as de Unamuno e Ortega y Gasset, ao tempo em que vos familiarizáveis com a grande Literatura Espanhola e com as lições, então no apogeu, da escola espanhola da estilística, nos cursos de Dámaso Alonso e Carlos Bousoño, bem como de Filosofia com os professores Xavier Zubiri e Julian Marias.
Durante esse tempo, não desdenhastes a França e a Itália, onde Paris e Roma vos proporcionaram ainda mais que aprender.
Então, concluídos em 1955 os cursos de Letras em Madrid, em 1956 chegastes ao Rio de Janeiro, com o caráter formado e a inteligência burilada. Aqui plantaríeis a vossa tenda de pegureiro intelectual, armado de baraço e cutelo para grandes feitos no campo das Letras.
Ficará, todavia, acima de tudo, marcado para sempre no vosso espírito aquele hibridismo Bahia-Pernambuco. Não é novo, aliás, o fenômeno em nossa vida cultural. Nossos Castro Alves e Rui Barbosa dele participaram. O pernambucano Joaquim Nabuco era filho de pai baiano. Gilberto Freyre é muito querido e festejado na Bahia e ainda em artigo recente salientava o fato de Pernambuco e Bahia, desde o século XVI, “constituírem as bases, uma completando a outra, de uma cultura, nacionalmente brasileira”.
Vós perfizestes essa união estabelecendo o vosso lar harmonioso com uma doce pernambucana, D. Célia Maria de Albuquerque Portella, pós-graduada em Educação, a qual já vos propiciou, como dádiva e patrimônio maior, a carioquinha Mariana.
É dessa mistura que se tem constituído o Brasil.
A convite de nosso companheiro Mauro Mota, tivestes ao retorno uma fugaz passagem pelo Recife, como redator político e crítico literário no Diário de Pernambuco. Mas a velha capital intelectual do País vos atraiu, e aqui fostes nomeado técnico de Educação do MEC, professor assistente da antiga Faculdade Nacional de Filosofia e participastes do Gabinete Civil da Presidência Juscelino Kubitschek.
Começa, então, vossa atividade de crítico literário militante no Jornal do Commercio em 1957, a chamado do saudoso Santiago Dantas. Não éreis novo no mister. Ainda estudante no Recife, já haviam aparecido artigos críticos de vossa lavra, tanto quanto, de volta ao Brasil, em jornais de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Essa atuação firmou definitivamente o vosso conceito de notável crítico literário.
De mim, entretanto, não enxergo em vossa personalidade intelectual um crítico de exclusiva formação literária, muito embora vos considere um dos maiores que já tivemos, um crítico de Literatura, a que não falta a preocupação com os segredos da linguagem. Compreendo que não aceiteis a crítica sem um embasamento doutrinário, ao invés do que ocorria com os críticos impressionistas. Roland Barthes, a maior figura das letras francesas da geração surgida após a Segunda Guerra Mundial, em uma das admiráveis entrevistas reunidas no seu último livro – Le Grain de la Voix – afirma não compreender método crítico independente de uma filosofia mais geral e reconhece que “toda crítica declara a ideologia sobre a qual inevitavelmente ela se funda.”
É esse o vosso caso. Considero-vos um crítico de literatura envolto por um crítico de ideias, filosoficamente fundamentado e sustentado. Sois, mais do que isso, um crítico da Cultura, voltado ontologicamente para tudo o que diga respeito ao homem, o homem universal, dentro e fora da “tragédia burguesa”. Parece-me que ressoa permanentemente aos vossos ouvidos aquela máxima sábia de Terêncio: sou humano, e tudo o que é humano me concerne.
Por isso é que sois um crítico militante nos mais diferentes espaços do saber: a Literatura, a Filosofia, a Política, a Educação, a Comunicação, os diversos níveis do acontecimento brasileiro, sobre os quais se debruça constantemente a vossa rica e original meditação.
Sois um crítico de Literatura num amplo trajeto que começa com os vossos pioneiros estudos reunidos nos livros Dimensões I, Dimensões II, José de Anchieta, escritos à luz da estilologia espanhola, até chegar a Literatura e Realidade Nacional e especialmente à formulação de uma teoria ontológica da Literatura, na vossa tese de doutorado, defendida na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e aparecida em livro sob o título de Fundamento da Investigação Literária (1974).
Enquanto crítico de ideias, vós vos afirmais como pensador, numa linha de coerência dentro da filosofia ocidental, que se articula de Heráclito a Nietzsche, atingindo Heidegger e os pensadores da escola de Frankfurt, especialmente Jurgen Habermas. Os vossos ensaios sobre Ortega y Gasset, Sartre, Lukács, Heidegger, são testemunhos vivos da vossa vocação filosófica.
Como crítico da Cultura, vós reunis a compreensão aberta da Cultura, a de sempre e a que emerge em nossa sociedade de massa, tal como aparece em vossos livros Dimensões III, Teoria da Comunicação Literária e Vanguarda e Cultura de Massa.
Também aí se instaura a vossa oportuna e atilada “pedagogia da qualidade”, concepção nova a ser incorporada ao nosso ideário educacional, e aparecida em artigos e conferências esparsos, e no discurso de vossa posse na Academia Brasileira de Educação, publicado sob o título de Educação e Estado, no qual empreendeis uma análise magistral do nosso saudoso Anísio Teixeira, o Estadista da Educação, na feliz definição de Hermes Lima. Consoante vossa concepção, cultura e educação podem ser vistas unidas num jogo alternado, marcado por extrema originalidade e no qual os sistemas formais e os mecanismos informais configuram um novo e matizado espaço pedagógico.
Visto desse ângulo, vós sois um político, um pensador político, no sentido alto, mas não sois, de modo algum, um “partidarista”. Vejo-vos antes como um “inteirista”, se me for permitida a expressão de um mestre muito de vosso agrado, D. Miguel de Unamuno.
Sois um militante livre, como cabe a todo intelectual autêntico, jamais submisso ao jargão da militância.
Daí que vossa linguagem é aberta, como vosso pensamento e como a História, a Sociedade, a Cultura e a Literatura que postulais e estudais.
Vossa militância, não sendo partidarista, exerce-se nos livros, na cátedra, na imprensa, na Revista Tempo Brasileiro e em vossas publicações autônomas e também nas funções públicas que desempenhastes, inclusive no Ministério da Educação e Cultura do Governo do eminente general João Batista de Oliveira Figueiredo.
Não posso esquecer, ainda, que tendes tido uma brilhante carreira universitária: bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito do Recife, seguistes no estrangeiro cursos de especialização em Filosofia, Literatura e áreas de Ciências da Linguagem. Posteriormente, conseguistes em concursos públicos os títulos de doutor em Letras e titular de Teoria Literária pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da qual viestes a ser diretor. Os cargos públicos que ocupastes vos chegaram naturalmente, convocado graças ao conceito excelente que granjeastes, sem que corresses atrás deles, nos quais entrastes e deles saístes com a mesma dignidade e naturalidade, sem precisar usurpar para subir.
Desta maneira, poderíamos dividir, da perspectiva doutrinária, o vosso itinerário crítico e filosófico, em três momentos principais: o primeiro é o “culturalista”. É a fase da formação na Espanha, sob a égide de Ortega y Gasset e Unamuno e da estilologia de Dámaso Alonso, Carlos Bousoño, além de Amado Alonso. Não faltaram nesse período as sábias lições do grande hispanista francês Marcel Bataillon e dos alemães Leo Spitzer, Ernest Robert Curtius, Erich Auerbach e Hugo Friedrich.
A segunda fase é a da absorção progressiva da trepidação social e da crise contemporânea da civilização, quando se nota a presença de Jean-Paul Sartre, que trouxestes ao Brasil, por ocasião do I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, reunido, por vossa iniciativa e organização, na cidade do Recife, em 1961. A esse momento pertencem os vossos livros África: Colonos e Cúmplices e Literatura e Realidade Nacional. E é dentro dessa mesma atmosfera cultural que criastes, em 1962, a Revista Tempo Brasileiro, que até hoje dirigis, na qual a controvérsia intelectual de nosso tempo encontrou uma tribuna e um valioso núcleo de debates. A Editora Tempo Brasileiro, que edita a revista, e de que sois conselheiro editorial, deve o seu êxito também ao vosso irmão Franco Portella.
O terceiro momento de vossa evolução literária se caracteriza pelo exercício e elaboração de uma ontologia plantada socialmente, onde se busca, em meio às dificuldades impostas pelas seduções tecnocráticas do nosso tempo, o encontro e o intercâmbio convenientes do homem moderno com a técnica.
Sois, assim, um pensador, um crítico literário, servido por um escritor nato.
Como todo escritor de categoria, vós possuís o gosto da palavra. Tendes o prazer sensual de lidar com elas, elegantes e finas que se tornam em vossa pena. Não foi em vão que recebestes as lições dos mestres da estilística. Hoje sois dono de uma das mais belas prosas do Brasil. Sem esquecer também aquele vezo bem baiano do trocadilho, do bon mot, do epigrama, do torneio malicioso e da ironia mordaz, heranças da linguagem baiana dos Gregório de Matos, de quem gostais de dizer-vos descendente.
Vossa escritura denota um gosto voluptuoso da frase torneada, bem soante, melódica, sem concessões ao racionalismo do idioma e do estilo de Racine, efeitos esses obtidos graças a inovações inusitadas aproximações de palavras e frases de rica sonoridade em que excele a vossa alma sensitiva.
Por isso e muito mais, como escritor e crítico literário dos mais bem dotados de vossa geração, vosso lugar sempre foi nesta Casa.
Aliás, ela vos acompanha há muito. Prova-o o Prêmio Sílvio Romero de Crítica Literária que vos concedeu em 1959. Outros prêmios vos foram galardoados, revelando o apreço em que vos têm os juízes literários. Assim, o Paula Brito, da Prefeitura do antigo Distrito Federal (1959), o Fernando Chinaglia da União Brasileira de Escritores (1971), o Golfinho de Ouro de Literatura (1971).
Não posso esquecer que vossos méritos têm sido reconhecidos também através da concessão de honrarias estrangeiras e nacionais, como as condecorações de Grande-Oficial da Ordem do Mérito Militar, a de Grande-Oficial da Ordem do Mérito Aeronáutico, A Grã-Cruz da Ordem do Mérito Naval, a Grã-Cruz da Ordem do Mérito Brasília, a Grande Medalha da Inconfidência, a Gran-Cruz da Orden Civil de Alfonso El Sabio, oferecida esta última pelo Rei da Espanha, D. Juan Carlos, além da Cidadania Carioca, outorgada pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
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Sr. Eduardo Portella,
em recente conferência sobre a Missão da Universidade, o vosso mestre Julián Marias assinalava que a Universidade não é um sindicato, nem um partido político: é uma Universidade – e é assim que deve atuar na vida pública. Se agir de outro modo, torna-se estéril, acrescenta.
Aprofundando o seu pensamento, Julián Marias, por se tratar da inauguração de uma cátedra com o nome de Ortega y Gasset, relembrou palavras muito pertinentes do imortal pensador espanhol. Pregava Ortega a reforma urgente da Universidade e afirmava que o mal espanhol era então o que ele designava por “grosseria”, isto é, a complacência com a vulgaridade. O contrário da grosseria é o homem que, dotado de caráter, procura fazer as coisas, não de qualquer maneira, mas bem feitas. E aquele que tenta fazer as coisas bem. Essa é a principal obrigação do homem que exige de si mesmo.
Nenhuma reflexão mais apropriada a nosso mundo em crise, submerso em um aviltamento de valores, característico de uma época de transição. Esta é a tragédia de nosso tempo, de todos nós: vivemos no fim de uma época e começo de outra, ainda somos presos a valores arcaicos e não criamos novos, estamos destruindo um tipo de civilização e não logramos gerar outro. Não nos faltam progressos técnicos, materiais, mecânicos. Falta-nos grandeza. E nenhuma civilização digna desse nome ainda cresceu sem grandeza.
Daí a importância que dou à vossa “pedagogia da qualidade”, componente, a meu ver, de todo um acervo de importantes meditações, que desenvolveis neste momento, acerca das relações entre o intelectual e o poder.
Desde que D’Alembert, em 1753, lançou o seu famoso ensaio sobre o Intelectual e o Poder, desencadeou-se uma polêmica, ainda hoje viva, a propósito do papel que o intelectual pode desempenhar no governo das sociedades, ora posto em dúvida, ora em conflito, ora requestado como influência possível ou colaboração desejada. Não tem sido fácil a intimidade. De um lado, há às vezes a tendência ao isolamento, à torre de marfim, à recusa a sujar as mãos. Do outro, a anulação frequente da independência. E ainda, em diversas ocasiões, o chamado ao engajamento, ao enfeudamento, nesse ou naquele grupo, do homem de pensamento e do escritor de imaginação. Nunca talvez como em nossos dias essa polêmica foi tão aguda. E que nossa época é particularmente estúpida ao reduzir os homens à oposição maniqueísta de direita e esquerda. De qualquer modo, esquerda, direta, centro, partidos políticos conservadores ou revolucionários, de todos os quadrantes sociais o intelectual é bafejado ou repelido, seja como ineficiente aos tecnocratas, seja como incômodo às burocracias totalitárias, seja como buliçoso demais para os conservadores, seja envolvido em desconfiança pelos governos temerosos da força da inteligência.
Sr. Eduardo Portella, é estreita a porta dos donos da vida e das mansões do Poder.
Por isso, não temerei afirmar: para quem possui a vocação das Letras, a Literatura acima de tudo. Mesmo porque o mister literário só depende de nós. Jamais se logrou impedir o ato de escrever a quem possui esse dom. Nem tribunais, nem censuras, nem inquisições.
Não recearei asseverar ainda: no Brasil, a Literatura é a mais importante expressão do espírito nacional. Somos um povo literário por excelência. Foi a Literatura que desenvolveu, desde Anchieta, a nossa identidade de povo e de Nação. É ela que vem empreendendo, de maneira progressiva e pertinaz, o processo brasileiro de descolonização mental. É ela que melhor reflete em nosso País as formas de sua unidade na variedade. É ela que resiste a qualquer tendência ao abastardamento, tão comum entre nós, de homens, costumes, instituições. É ela o melhor espelho do caráter brasileiro. Littérature d’abord.
Em nossos dias de crise, fomos deixados órfãos pela Política, Religião, Ciência, Educação. Nenhuma delas parece apta a propiciar ao espírito conturbado a força necessária para levarmos avante a aventura humana. Que nos aguarda?
A vida humana existe muito além do cotidiano. É um projeto, em constante desenvolvimento, no qual há muito de mistério. Pois a Literatura é a viagem ao desconhecido, é a busca de solução para o destino ignoto, é uma resposta à noite existencial. Ela nos torna comensais dos gênios. Integra como um só todo o homem e o mundo, a natureza e as coisas, ela aponta o sentido da vida, ensina a viver a dignidade. Só ela nos salva do naufrágio das ilusões. Ela é a própria esperança.
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Srs. acadêmicos,
a Cadeira 27, cujo Patrono é Maciel Monteiro, e na qual se sucederam Joaquim Nabuco, Dantas Barreto, Gregório Fonseca, Levi Carneiro e Otávio de Faria, atualiza a sua tradição participante, liberal, legalista, literária, crítica ao incorporar a personalidade de Eduardo Portella.
Sr. Eduardo Portella,
um privilégio que desfrutareis nesta Casa, dos mais nobres templos da Cultura Brasileira, é o ensejo que tereis de privar mais frequentemente com um mestre, que é vosso tanto quanto meu, e que é dos maiores brasileiros de todos os tempos, a figura ímpar de Alceu Amoroso Lima.
Ainda há pouco, em um programa de televisão, entre as inúmeras provas de sua grandeza intelectual, ouvimos esta lição oracular de sua velhice gloriosa: o que vale acima de tudo na vida é a sabedoria do coração.
Sr. Eduardo Portella: vós sois um homem que vive pelo coração, não obstante a refinada, lúcida e ativa inteligência que Deus vos deu.
No Brasil, duas coisas comunicam essencialidade ao nosso viver: a Natureza e o Coração.
Nada mais importante do que saber curtir a Natureza, essa Natureza generosa que a nossa incúria depreda, essa paisagem espantosa de praias, baías, montanhas, lagos, florestas e planícies, essa riqueza de flores, frutos, árvores, este céu azul de luz, que nos provariam a existência de Deus, não fôssemos amiúde assaltados pela velha dúvida do herói dostoievskiano. Não foi em vão que o gênio florentino de Botticelli fez surgir a Vênus por entre as forças da Natureza simbolizando assim o nascimento do Amor e da Beleza.
Por outro lado, Sr. Eduardo Portella, não menos fundamental é saber viver pelo coração. E isso vós o sabeis. Vós sois um autêntico homem cordial, sabeis fazer amigos, sabeis ser amigo, sabeis ser amigo dos vossos amigos, jamais vos esqueceis deles, sabeis dar-vos – e a doação de si é a suprema dádiva, tudo isso torna um prêmio a vossa convivência. Viver é conviver. E conviver com as pessoas, com os companheiros, com os irmãos da mesma fé e de idênticos ideais. Sabeis ser generoso. Sois um artista da amizade. E a aptidão para a amizade pressupõe a renúncia à inveja e aos impulsos momentâneos dos interesses e da inautenticidade. O vosso gosto da amizade traduz-se por vossa capacidade invencível de admirar.
Quando, ao final da existência, voltamos a mirada para trás, nada mais compensador do que a recordação dos amigos que fizemos na caminhada. Nada mais confortador do que ouvir de companheiros de infância o que escutei há pouco pela voz de um querido e saudoso amigo, Péricles Madureira de Pinho: “Seu Afrânio, está fazendo sessenta anos que nos encontramos nos Maristas!” E de outro não menos querido, Jones Seabra, catedrático de Medicina na Bahia: “Você é o meu mais velho amigo!”
Isso faz um bem enorme à alma, meu caro amigo. Poder sentir que fomos amigos, que não traímos nenhuma amizade, que não decepcionamos e fomos fiéis aos amigos, o que é igual a ser fiel a si mesmo.
Os moralistas e sábios sempre exaltaram a amizade. Há referências e mesmo estudos sobre a amizade em Homero, Hesíodo, Eurípides, Xenofonte, Aristóteles, Cícero, Virgílio, Ovídio, Shakespeare, Montaigne, La Rochefoucauld, Molière, La Fontaine, Boileau, La Bruyère, Voltaire, Oscar Wilde, Cocteau e inúmeros outros. A Voltaire se atribui a frase: Toutes les grandeurs de ce monde ne valent pas un bon ami. Nosso Machado de Assis também refletiu sobre o assunto e verberou a ingratidão, que é a pior forma da antiamizade. É possível mesmo admitir que a amizade é superior à paixão, à sensualidade, ao amor.
Sr. Eduardo Portella, nesta Casa da convivência amiga, encontrareis grandes oportunidades para dar expansão às excepcionais qualidades do vosso coração. Sereis aqui bom amigo de muitos amigos: alguns já são antigos, outros serão amizades novas dia a dia construídas.
Sede bem-vindo à nossa convivência, Sr. Eduardo Portella.
18/8/1981