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Discurso de recepção

Discurso de recepção por

RESPOSTA DO SR. LÚCIO DE MENDONÇA

Meus Senhores:

Há cinco anos passados, neste mesmo tempo de inverno, por um dia esplêndido de sol e de vida, três camaradas acompanhavam ao cemitério o corpo de um amigo comum. O morto fora um claro espírito e nobre coração, perdido na turba que enche as ruas da cidade e não chega a compreender nem o talento de eleição quando se esconde, como aquele, numa esquerda e esquiva figura de vencido e de desenganado. Chamava-se Almeida Sarinho: raros são, aqui mesmo, os que o conheceram; em poucas memórias repercutirá este gemido de saudade... Os três que o levaram a enterrar eram – o recebido de hoje, o titular de sua cadeira acadêmica e o próprio que ora está a dar-lhe as boas-vindas. Assim, é a amargura de tal recordação o vínculo entre nós três, e eu sinto ter de declarar, num momento de festa, uma afinidade tão sombria; mas ninguém escolhe a íntima trama de suas afeições, que, parece, já vem feita da misteriosa oficina do acaso.

Com Raul Pompéia e Domício da Gama tenho ainda outro ponto de contato mais feliz: somos os três da bela terra fluminense, que, em nossa pátria, como um abençoado vale de encontro e de convergência entre as correntes do Sul e as do Norte, à semelhança da nossa encantadora baía de Guanabara, onde ancoram as naus de tão vária procedência.

A nossa formosa terra natal é também opulenta de glórias literárias: Fagundes Varela, meu imortal patrono, Álvares de Azevedo, Francisco Otaviano, Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo, Casimiro de Abreu e, para citar apenas um dentre os vivos, o chefe atual de nossa literatura, o nosso preclaro presidente.

Domício da Gama, que acabais de ouvir em sóbrio e conceituoso discurso, elegeu para tutelar a sua cadeira em nossa Academia um dos mais vivos nomes da geração que ainda é a nossa, pois pertenceu a um companheiro de ontem, que todos nós conhecemos e amamos, e que eu, ai de mim! contava no escasso número de meus íntimos amigos...

Perdoe-me a ilustre companhia mais uma evocação triste, nesta hora que só devera ser de júbilos; perdoe-me principalmente o que há de pessoal ou indiscreto no que vou recordar diante dela; mas aqui me sinto verdadeiramente em família, de tal sorte e em tanta maneira que nem se me constrange com isso o recato do sentimento.

Corriam os últimos dias do ano de 1893, e para mim as horas idílicas da lua-de-mel, que quase todos vós por experiência própria sabeis de que inefável doçura são repassadas e embebidas; não o sabe do mesmo modo o nosso recebido de hoje, celibatário contumaz; fio, porém (já vê o meu amigo que não o quero intrigar excessivamente com as damas do auditório), fio de sua delicada sensibilidade que avaliará essa ventura tão bem como os mais experimentados de nós.

Era uma casinha poética, afogada entre o arvoredo; pleno meio-dia de verão, tépido e luminoso, entre o aroma dos jasmineiros e o estrídulo cantar das cigarras; dia de Natal, dia tão rico de tradições amáveis em nossa religião e em nossa família... Pois foi no claro céu desse dia que estalou para mim o raio! entrou-me pelo jardim e pela sala, inesperado horrível, um mensageiro fúnebre, um belo rapaz, todo de negro, com lágrimas na face e a voz estrangulada de soluços; era o irmão de Raul Pompéia; vinha dizer-me, a mandado da família, que o meu querido amigo acabava de suicidar-se, com uma bala de revólver metida no coração! Parti sem demora para o lugar da catástrofe; encontrei ainda intacto o cenário do trágico momento e Raul Pompéia estendido morto, com uma flor de sangue ao lado esquerdo do peito. A sua bela fisionomia guardava ainda toda a nobreza das feições; afigurava-se-me que a todo o instante ia lhe ver cintilar ainda o olhar inteligente e agitar-lhe os lábios o sorriso irônico, tão deles! mísera ilusão, que a realidade brutal contradizia e dissipava: pela primeira vez, aquele peito bom e generoso ficava inerte e impassível ao calor do meu abraço!

Escusado é dizer-vos que rica messe dourada foi de uma vez destruída por aquele sacrifício monstruoso; que seiva exuberante se perdeu; que fecundo manancial se esterilizou para sempre!

É incalculável, Senhores, desconsoladoramente incalculável, o que haveria de produzir o admirável espírito de Raul Pompéia, que, em poucos anos de vida e de trabalho, dotou a nossa literatura de algumas de suas páginas mais vigorosas e mais vibrantes. Escritor original e profundo, de observação penetrante e sutil, era entre nós, em meio tão hostil a tais processos, um psicólogo requintado, um como irmão mais moço dos irmãos Goncourt, seus autores prediletos.  É que Raul Pompéia se inspirava mais da própria alma que da natureza ambiente; esta, quando muito, refletia-se na magnificência e no colorido tropical do seu estilo.

O pouco que nos deixou – pouco relativamente ao muitíssimo que tinha para dar – atesta a imensidade da perda que com sua morte sofremos.

Outra vez, perdoai-me, Senhores! mas, há quase cinco anos que esta dor incomparável me crucia, e eu precisava, egoísta como todos os que sofrem, dar-lhe o amargo lenitivo de a recontar entre amigos; queria “saciar de mágoa a minha mágoa”, como diz o belo verso de Filinto Elísio.

Aí tendes: em vez da glorificação que lhe devia, rendo apenas ao meu grande amigo esta consagração dolorosa de sua memória pessoal. Não é, sou o primeiro a sabê-lo, um elogio acadêmico; mas o túmulo de Raul Pompéia carece mais de saudades que de louros.

O ilustre companheiro que hoje recebemos, chamado a nós por eleição unânime, tem o melhor de sua bagagem literária, já avultada, prodigamente dispersa na imprensa periódica; até hoje, publicou apenas um livro de prosa, Contos a meia-tinta, que são primores de observação psicológica; mas sobeja-lhe matéria para meia dúzia de volumes de igual ou maior tomo.

O que ele vale, os vossos votos sem discrepância o apregoaram mais alto do que poderia dizê-lo qualquer elogio que eu tentasse. Que boa fortuna esta minha, de o ter de receber e cumprimentar perante vós! é fácil como falar bem, em família, de um parente amado: cada palavra diz mais do que soa, porque é a expressão do sentimento de todos.

Este parente visita-nos entre duas ausências no estrangeiro, onde sua capacidade na diplomacia está prestando à nossa pátria os mais úteis serviços, ao lado de outro nosso eminente consócio. O meu desejo, como o vosso, estou bem certo, é que a política internacional nos restitua em breve, não só o território que sem direito nem razão nos cobiçam as novas tendências de expansão da França colonizadora, como também o nosso secretário da missão especial, que outra e talvez mais fecunda missão tem de desempenhar no domínio tranqüilo de nossa atividade literária.

Agradeço-vos, Senhores, a bondade de vossa atenção, e a vós, Sr. Presidente, o ensejo, que me oferecestes, de dar público testemunho de minha velha simpatia a Domício da Gama e de minha admiração ardente e de minha entranhável saudade ao gênio de Raul Pompéia.
Bem-vindo seja o novo acadêmico ao lugar protegido e iluminado pelo nome de Raul Pompéia na Academia Brasileira!