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Discurso de posse

O dia e o mês não posso precisar, nem creio que isso importe. Sei que era primavera, apesar de tudo. O ano, 1971, ano 7 depois do desastre. O País mergulhado na mais negra repressão, e mesmo assim houve primavera, as árvores floriram, e os pássaros aprimoraram seu canto. Como, não sei. A natureza alheia à tragédia que se abatia sobre a Nação. Naquele dia, eu me preparava para comparecer perante o oficial encarregado de um inquérito policial militar. Era o primeiro dos sete a que iria responder, por isso estava apreensivo. Tinha motivos: ia conhecer o famigerado ENIMAR. Podia ser torturado, como tantos. Podia não voltar, como muitos. Estava preparado para tudo. A família de sobreaviso, os amigos. O telefone tocou. Era Adonias Filho. Nosso conhecimento era apenas superficial. Havíamos cruzado um pelo outro duas ou três vezes, trocado meia dúzia de palavras cordiais, mas uma barreira ideológica nos separava. Eu um militante de esquerda, ele, dizia-se, um espécimen raro: um intelectual de direita. Havia apoiado o golpe militar, amigo dos generais. Eu entre os perseguidos, ele com os perseguidores. Um  homem afável, de fala mansa, de jeito interiorano, grapiúna. Mas um inimigo. Eu caça, ele caçador, naquele momento. Por que me telefonaria? Estava a par de tudo, disse, amigos comuns haviam informado. E eu me tranquilizasse, nada de mal iria me acontecer. De qualquer modo, tomasse nota do seu telefone e contasse com ele, a qualquer hora, em qualquer situação. Agradeci, surpreso. Horas mais tarde, após responder a um interrogatório exaustivo e kafkiano, vi os olhos do capitão encarregado do inquérito se fixarem nos meus com dureza. Agora vou lhe fazer só mais uma pergunta. Se disser a verdade, poderá ir em paz. Se não... As reticências deixaram no ar uma ameaça de tortura. Senti a descarga de adrenalina e me preparei para o pior. Quem matou Nívea? Nívea era a heroína assassinada de uma telenovela que no momento eu estava escrevendo, Assim na Terra como no Céu... O ser humano é imprevisível. Mesmo fardado...

O que fez por mim fez por outros companheiros, eu sei. Mais até. Saltando o largo fosso das ideologias, não distinguindo amigos ou inimigos, usou seu prestígio para reparar injustiças, defender perseguidos, evitar crueldades. Ele, Adonias Filho, um homem de direita. Ou um homem direito. Ou apenas um Homem? Buscando entender, aproximei-me dele através de seus livros. Aí deveria estar a solução do mistério. A verdade é a totalidade. O homem é o seu todo e não a sua circunstância. E mergulhei num caldeirão de sentimentos primitivos, penetrei num mundo mágico de seres marcados por um destino trágico e irrecorrível. Pelas mãos ásperas de Jerônimo, conheci o Vale do Ouro, seguindo a estrada de barro vermelho que ele assim descreveu, em seu estilo impecável:
   
Onde começa, ninguém sabe. Onde termina, ninguém sabe também. Tão íntima quanto os rudes objetos das habitações primitivas, para nós que a conhecemos desde crianças, existe quase como uma criatura humana. Insensível, acolhe-nos com desprezo, sem bondade. Ficássemos cegos e localizaríamos com facilidade todos os cactos que a tornam agressiva, perdêssemos o tato e diríamos sem esforço qual das suas pedras é a mais áspera. Para os outros, os viajantes que por milagre a atravessassem sem conseguir violar os seus segredos, seria apenas uma estrada.
   
Não para mim, que ia em busca do segredo e do mistério. No Vale do Ouro, onde “os homens são piores que as feras. Humanos, no vale, são os cavalos selvagens”, afirma Jerônimo. Um mundo do qual Deus foi expulso, porque nele somente o ódio e a violência são onipresentes. Um mundo onde se nasce para matar e onde “os  homens não perdoam os inocentes”. Difícil é entender esse mundo de seres condenados à danação, onde, como diz Fausto Cunha, “o ódio sopra no doido vento, que açula os cavalos selvagens, sacode o pó da estrada e apodrece o canal”.

Difícil para nós, que pouco sabemos da alma humana, palatar o ódio que vem de Abílio, que está em Alexandre, que alimenta Rosália, que varre todo o Vale do Ouro. Só nos resta a perplexidade e o espanto ante a recomendação de Jerônimo a Alexandre: “Você precisa tornar-se forte como uma besta, agressivo como uma cobra batida, para sobreviver.” E vale a pena sobreviver? Vale a vida onde só se vive a morte? Adonias nos faz pensar no destino do homem em sua visão trágica do mundo. Seus personagens são condenados a caminhar inexoravelmente para a tragédia, como que guiados por uma força cósmica. São todos isentos de culpa, o autor os inocenta a todos. E para isso é preciso penetrar sua desgraça e ser solidário com ela. Aí descubro eu a dimensão de sua generosidade, de seu extraordinário amor ao próximo. Adonias reduz o homem a seus impulsos mais primitivos para, aí, em estado de inocência e solidão, irmanar-se a ele e buscar entendê-lo. Ele mesmo o declarou certa vez em entrevista: “O que me interessa acima de tudo é sempre o homem, o ser humano com seu destino e seu mistério, com seus sofrimentos e alegrias. Sinto-me unido a esse ser, porque o amo.”

Declarou isso, ele, Adonias, intelectual de direita, eu a caça ele o caçador. Declarou-se unido ao homem esmagado pela fatalidade, em sua sina de autodestruição, em sua miséria. Cajango criado pelo índio Inuri para vingar a morte dos pais e dos irmãos, Cajango matando, cortando cabeças, em sua faina de vingar a chacina de sua família, pois “não pode viver quem não vive para vingar o pai e a mãe”. Cajango marcado para morrer e caçado por mil jagunços, não podendo fugir ao seu destino. “Quem sustenta Cajango são os seus mortos. É a mão de seu pai que puxa o gatilho”, diz Adonias pela voz de João Caio. Hebe, a bruxa louca e centenária, vagando pelas estradas, gritando sua maldição “mataram os passarinhos de Deus!”, Hebe, a bruxa, que viu o passado e antevê o futuro, sabe disso. Cajango não tem saída, como não tinha Alexandre nem Rosália. Personagens de tragédia grega redivivos nas terras ásperas do Sul baiano, levam consigo a culpa e absolvição, em seu destino traçado. Daí o horror e a piedade que despertam. Isso no entanto não nos impede de alimentar o sonho de libertar-se. São criaturas sem opção, enclausuradas em sua sorte marcada, mas não sem esperança. Em Corpo Vivo, Cajango encontra Malva, a mulher, e com ela sobe a serra, na tentativa de mudar seu destino. Em Memórias de Lázaro, Alexandre retorna sobre os passos do pai, fugindo da morte decretada no vale. Em Luanda Beira Bahia, Caúla faz-se ao mar na busca de suas origens e de sua sina. Em Simoa, saga heroica da raça negra, Naro conduz seu povo perseguido através da floresta, no êxodo bíblico pela sobrevivência. Mas, em nenhum desses casos, Adonias nos deixa tranquilos quanto a suas possibilidades de libertação e conquista da felicidade almejada. Embora embarque com eles de corpo inteiro em seu sonho. Só mesmo em O Forte, romance em que momentaneamente foge das brenhas cacaueiras encharcadas de sangue e sobe as lendárias ladeiras de Salvador da Bahia, por onde escorrem o misticismo e a sensualidade, momento em que sua obra respira lirismo e se abre para a contagiante poesia da cidade de todos os santos e todos os orixás. Em O Forte, Adonias se rende à esperança. Tibiti nasceu marcada pela tragédia e o destino trágico do forte a ser destruído parece ser o destino de seu amor por Jairo. Mas Tibiti e Jairo vencem o destino, e seu filho nascerá com o bosque que vai crescer no lugar do forte, que foi “trincheira, hospital e prisão, que conheceu as guerras, as pestes e as galés”. Seu filho conhecerá a liberdade. Como bem disse o mestre Afrânio Coutinho:
   
Adonias Filho é o criador de um mundo trágico e bárbaro, de mistério, de violência, varrido por um sopro de poesia. [...] Seu ágil pincel, ora na zona cacaueira, ora em Salvador, está sempre em busca do mundo íntimo da gente na maioria rude que povoa a terra. E a terra é, para ele, o personagem movido sempre por um sentimento trágico. A tragicidade é o eixo de sua visão do mundo, um mundo de solidão e destino fatal, que ele descreve com uma linguagem típica e bem pessoal, além de muito entrosada com a técnica e a estrutura sobremodo modernas.
   
Na opinião de Cassiano Ricardo, esses “personagens são trazidos em carne viva à nossa presença e quase nos agridem. Adonias consegue elevar o ‘real natural’ ao plano do ‘real absoluto’, mais contundente que a realidade mesma”.

E Rachel de Queiroz estabelece a diferença quanto à alegada filiação de Adonias à linhagem ficcional de Dostoievski.
   
[...] enquanto as criaturas dostoievskianas mergulham permanentemente no conflito religioso ético e, na verdade, só existem em função da sua alma imortal e dos abismos a que os pecados e tentações do mundo possam levar à danação essa alma imortal, nas criações de Adonias a alma é muito mais primitiva e ligada à terra, obediente aos códigos do instinto, muito mais dependentes da substância física do ser do que de sua essência metafísica.
   
Não, Adonias não é um autor agradável. Nem é confortável a descida aos infernos dessa Divina Comédia sem céu e sem purgatório. Ao emergirmos de seu mundo demoníaco, saímos dele atordoados, contundidos, massacrados. E transformados. Transformados no sentido da catarse, da purgação e da descoberta. Ninguém mergulha nesse microcosmo de almas danadas – seus romances maiores – e sai incólume. Adonias fustiga não somente a nossa sensibilidade como também a nossa consciência. E ninguém pode permanecer indiferente ao seu clamor de justiça e humanidade. Menos indiferente ainda se pode ficar diante da maestria desse escritor – cujo estilo, por não ser crítico e nem pretender sê-lo, não me atrevo a analisar em profundidade, em respeito a ele mesmo que o foi e dos maiores. Permitam-me por isso que me socorra de Eduardo Portella:
   
Há uma preocupação artística permanente na obra de Adonias Filho. Os elementos de sua estruturação novelística estão sempre dispostos esteticamente. Por isso ele não será cerceado pelas obrigações de correspondência à realidade cotidiana. Sua palavra não é um signo, não é um envelope previamente endereçado; é antes a imagem totalizante do real no seu dinamismo. E é assim, pelo desdobramento natural da própria experiência artística, que ele configura a sua dramática verdade humana. Porque as suas novelas, atendendo a compromissos antes de tudo artísticos, são também a denúncia trágica da apatridade do homem. Daquele homem condenado a ser estrangeiro na sua própria terra, a empreender a viagem ilusória palmilhando caminhos sem destino e procurando trabalho, aquele homem diferente, sofredor de grande sofrimento. Adonias Filho é ao mesmo tempo um narrador e um cenógrafo, que estabelece e funda cuidadoso a técnica do distanciamento. Manipulador eficaz da organização cênica, ele parece trabalhar com uma câmara cinematográfica instauradora de uma nova distância entre os homens e os objetos. [...] E todo esse empenho de globalização do real, animado e assistido por uma rigorosa seleção estética, adquire constantemente o sentido de uma visão apocalíptica da existência, porque traduz um código cifrado de agressões ao homem.
    
Colocado por alguns, muito justamente, no nível de Machado, de Graciliano e de Guimarães Rosa, Adonias ainda não teve a sua obra devidamente dimensionada. Talvez por nunca ter-se deixado seduzir pela popularidade, mantendo-se fiel a seu projeto artístico, sem concessões. Como seus personagens, seguiu sempre seu áspero caminho, que parece previamente traçado, em linha reta, indiferente aos atalhos, prisioneiro da maravilhosa maldição de não poder se deixar cair em tentações. Essa postura estoica pode levar a uma rotulação equivocada de elitismo. Tão equivocada quanto aquela que nos anos sessenta lhe fazíamos, levando em conta apenas o seu equívoco histórico. Um intelectual de direita. Busquei desesperadamente, na minha descida ao inferno adoniano, esse ser antagônico. Não encontrei. O que descobri foi um irmão de sangue. Permitam-me que lembre aqui um filósofo de esquerda muito caro a minha geração, George Lukács:
   
O estudo apaixonado da natureza humana do homem faz parte da essência de toda literatura e toda arte autênticas; daí que toda boa arte e toda boa literatura sejam humanistas, não só por estudarem apaixonadamente o homem e a verdadeira essência da natureza humana, mas, também, por defenderem apaixonadamente a integridade humana do homem contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e adulteram.
   
Ninguém fez isso melhor que Adonias, de maneira consequente, consciente e declarada. Adonias Filho, dono da Cadeira 21, que, com muito orgulho, agora vou ocupar. Estranha Cadeira essa que, qual símbolo humanizado e esfingético, ao estilo de seu último detentor, parece exigir de seus ocupantes dois compromissos essenciais: o Humanismo e a luta pela liberdade. Compromissos que todos que nela se sentaram até hoje cumpriram com paixão. Desde seu Patrono, Joaquim Serra, passando por José do Patrocínio e Álvaro Moreyra, até seu último ocupante, Adonias Filho. E foi ele mesmo quem o disse, em seu emblemático discurso de posse:
   
Os escritores deste reduto, e porque nela acreditaram é que escritores foram, acreditaram na liberdade [...]. Esta a minha Cadeira. Os escritores que a ocuparam, de Joaquim Serra a Álvaro Moreyra, firmando a liberdade como sua tradição, não me impuseram um compromisso. Quis o destino que também a ocupasse um romancista, um romancista e um crítico literário, que, jurando respeito à liberdade, sabe que na liberdade se contém a própria inteligência como função intelectual. Obrigam-me, todos os meus antecessores, a esta definição.

E Adonias se define como escritor e como homem:
   
[...] já como escritor do meu tempo, não posso evitar o que exigem no fundo do mesmo da sua obra. Exigem a luta contra a censura ideológica, contra o comando do partido único nas Artes e nas Ciências, contra o bloqueio cultural – que tentei estudar em um dos meus livros – ainda hoje oprimindo povos e humilhando o homem. Fossem eles a falar, Joaquim Serra ou José do Patrocínio, e o protesto seria o mesmo.
   
Fosse eu, Dias Gomes, a falar e não falaria de outro modo. Mais eloquente que a minha fala, seria a minha vida, toda ela pautada por uma luta constante contra todas as formas de cerceamento da liberdade, vítima que fui, desde a minha primeira peça teatral, dessa mesma censura ideológica que Adonias abominava. Essa censura que, por ironia do destino, poucas semanas após o seu belo discurso de posse, em 1965, proibia O Berço do Herói e dava início a uma caça às bruxas no Teatro Brasileiro que iria impedir a encenação de mais de trezentas peças. Adonias era então Diretor da Biblioteca Nacional, e eu posso avaliar os conflitos e angústias em que se debateu.

Falamos todos a mesma Língua, nós da Cadeira 21. Joaquim Serra, nosso Patrono, em sua luta pela abolição da escravatura, José do Patrocínio, voz inspirada e candente dessa mesma luta. Quer no ensaísmo crítico de Mário de Alencar, quer no lirismo poético de Olegário Mariano, ambos ocupantes da Cadeira 21, perpassa o mesmo compromisso com a liberdade que em Álvaro Moreyra se torna exemplar. Sua vida, em si, um exemplo e um conceito de liberdade, no seu pensar e no seu fazer. Cronista admirável, adversário intransigente do lado sombrio da vida. Álvaro Moreyra, como Joaquim Serra, descobriu o Teatro como o reduto mesmo da liberdade, onde ela se exerce como condição básica, onde ela brota como a própria vida, onde o homem afirma a sua vocação para o sublime.

Sem usar o palco como arma panfletária de sua campanha abolicionista – pois o Teatro não é um meio, mas um fim em si mesmo, como escreveu no prefácio de sua sofisticada comédia, Coisas da Moda – Joaquim Serra encontrou nele o espaço ideal para fustigar com extraordinário bom humor a sociedade fútil, alienada e preconceituosa de seu tempo. Não por acaso, Machado de Assis foi seu parceiro no drama O Remorso Vivo, talvez sua obra teatral de maior repercussão, embora seu nome esteja ligado, juntamente com os de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, à introdução de um novo gênero teatral no Brasil, a Revista – gênero hoje em extinção, lamentavelmente. O mesmo Machado, tão avaro em elogios, a ele se referiu nestes termos: “[...] Joaquim Serra era principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade pela razão de amar, também, a arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social.”

Álvaro Moreyra foi um pouco mais além. Aportou ao continente teatral com sua caravela de otimismo e aí armou sua barraca e fincou sua bandeira. Chamou de “Teatro de Brinquedo”, talvez por timidez, talvez por ironia, ou quem sabe por não avaliar a importância histórica de seu empreendimento. O Teatro fora a única Arte a não participar da revolução cultural deflagrada pela Semana de Arte Moderna. Era preciso integrá-lo nesse movimento, ainda que tardiamente, fazê-lo recuperar o tempo perdido. Com seu despretensioso Teatro de Brinquedo, Álvaro Moreyra alertou para a defasagem em que nos encontrávamos e deu, ainda que timidamente, o primeiro passo no sentido da renovação. Com ele e seu grupo, o nosso Teatro começou a tatibitatear o idioma brasileiro, fator importante para a revolução cênica e dramatúrgica que ocorreria mais tarde, nos anos 1950 e 1960. Isso lhe devemos nós, isso lhe deve o moderno Teatro Brasileiro.
 
Estranha Cadeira essa, a 21. Tendo por Patrono um teatrólogo, vai ocupá-la agora um dramaturgo, alguém que outra coisa não é, nunca foi, nem nunca desejou ser senão um homem de teatro. Sucedendo a outro que, embora só tendo escrito uma peça, O Auto dos Ilhéus, ocupou o cargo de diretor do Serviço Nacional do Teatro, demonstrando pelo palco indisfarçável fascínio. Pena que O Auto dos Ilhéus não tenha recebido o batismo cênico, indispensável à comprovação de suas qualidades, já que seu autor era, no fundo, um grande trágico. Tornou-se lugar-comum sublinhar a força inarredável do destino como motor de toda a trama novelística de Adonias, o que o aproxima inevitavelmente dos grandes trágicos gregos. Acrescente-se a isso a construção das personagens e sua força dramática como elementos condutores do enredo, como notou um dos maiores críticos que nosso Teatro já conheceu, Anatol Rosenfeld: “O enredo existe através das personagens, as personagens vivem o enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão de vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.”

Nada disso se dá por acaso. Escrevi há tempos:
   
O Teatro é a única Arte que usa a criatura humana como meio de expressão. No cinema e na televisão, a imagem da criatura humana é utilizada, não a criatura viva, sensível e mortal. Esse meio de expressão, mais poderoso que qualquer outro, o homem-ator, torna o Teatro a mais comunicativa e a mais social de todas as Artes, aquela que, de maneira mais íntima e reconhecível, pode apresentar o homem em sua luta contra o destino – em última análise, a razão de ser da Arte Dramática, dos gregos aos nossos dias. Pois o que temos no palco são seres humanos, que nos tocam duplamente: pela interpretação de um destino alheio, sem que isso os liberte de seu próprio destino. Esta carga trágica de que é portador é que dá ao Teatro inexcedível autoridade para transmitir o sentido trágico de nossa existência. Se, como queria Lukács, o estudo apaixonado da natureza humana e do homem faz parte de toda arte autêntica, nenhuma arte pode ser mais eloquente no cumprimento dessa finalidade que o Teatro, no qual o homem não é só objeto, mas também sujeito, na medida em que dele se serve o autor, como meio de expressão, para declarar algo a respeito dele mesmo. O Teatro é a arte por excelência da luta, do amor e da paixão do homem.

 Não é de estranhar, portanto, que esteja o Teatro, de uma forma ou de outra, ligado aos escritores da Cadeira 21 – que Adonias chamou “a Cadeira da liberdade” – todos eles, principalmente seu último ocupante, voltados para a defesa da integridade do homem e para o mistério da natureza humana. Em bem-humorada crônica publicada logo após a minha eleição para esta Ilustre Companhia, um dos seus mais brilhantes membros, Josué Montello, fez notar o que chamou de uma “diferença essencial: Adonias pendia para a direita, no plano político, e Dias Gomes pende para a esquerda, no mesmo plano. [...] Mas não devemos esquecer que assim como a direita de Adonias era à brasileira, é também à brasileira a esquerda de Dias Gomes”.

Por estranha coincidência – e coincidências estranhas são inerentes à Cadeira 21 – o mesmo acadêmico que ora me recebe nesta Casa, Jorge Amado, recebia, há 26 anos, Adonias Filho. E a mesma irônica contradição era então notada. Jorge, meu caríssimo amigo, conterrâneo como Adonias, companheiro de lutas e de ideais, refutou-a brilhantemente em seu discurso:
   
[...] creio possuirmos em comum, mais além das nossas fronteiras ideológicas, algo da maior importância, Sr. Adonias Filho. E nosso horror, nossa total desestima por todo e qualquer sectarismo, por essa estreiteza de visão e de ação que é a negação da inteligência, e que é o único e mísero capital de certos homens políticos – homens de qualquer tendência – sua única maneira de fazer Política. Para esses, a Política é apenas o ódio, a injustiça, a perseguição, a negação da Cultura e do Humanismo.
   
A alguns parecerá, talvez, até anacrônica essa rotulação de esquerda ou direita, nos dias de hoje, quando a bipolarização política do mundo caiu por terra, como caíram o muro de Berlim e outros muros ideológicos. Até já se proclama o fim do Socialismo – e todos os idiotas do mundo ostentam um sorriso de vitória. Como se um erro histórico significasse o definitivo fim de um sonho generoso que a humanidade alimenta há séculos – o sonho de um mundo mais justo, uma sociedade igualitária, onde o homem possa exercer a sua vocação de liberdade. Ao contrário do que pensam, o sonho não morreu, porque é ele que impulsiona a História. Nem morrerá nunca, porque é inerente ao que de melhor existe na natureza humana do homem. Porque com ele comungam os homens de bem.

E os escritores da Cadeira 21 foram todos homens de bem, voltados para as grandes causas. Divergências circunstanciais, posicionamentos históricos equivocados de um ou de outro – e erros todos cometemos – não eliminam a visão comum diante do essencial. Por isso, senhores acadêmicos, é com muito orgulho que hoje ocupo esta Cadeira, para a qual me elegestes em vossa generosidade. A mim, modesto escritor de ofício, cujos caminhos nunca me pareceram poder trazer-me a esta Casa. Confesso que me sinto ainda constrangido e perplexo em me ver dentro deste fardão, nunca supus que isso um dia pudesse acontecer. Olhando-me de fora, pergunto-me: O que teria mudado, eu ou a Academia? Pois, muito embora todas essas afinidades que encontro com os antigos ocupantes desta Cadeira, sempre me imaginei numa postura artística e filosófica que me vedava as portas desta ilustre Casa, onde tenho, aliás, grandes amigos. Foram eles, sem dúvida, que me trouxeram para cá. Mas, neste momento, é bom, é justo, é importante reconhecer: nem eu mudei, nem a Academia. Ela me aceita tal como sou, inconformado escritor do meu povo, engajado no sonho de vê-lo livre e feliz. Tal como já acolheu a outros, que a honraram e a honram, ecumenicamente, generosamente. Destina-me uma Cadeira na qual me sinto confortável. Não fosse esta, a Cadeira 21, como a batizou Adonias, a Cadeira da Liberdade.

16/7/1991.