Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Dantas Barreto > Dantas Barreto

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Carlos de Laet

RESPOSTA DO SR. CARLOS DE LAET

Senhor General Dantas Barreto.

Não há para nós, os membros da Academia, senão fundado orgulho no júbilo que manifestais pela vossa eleição, objeto, como dissestes, de uma aspiração longamente premeditada e prosseguida com laborioso empenho.

Por um impulso de modéstia, que é a polidez dos que do seu próprio mérito têm nítida consciência, começastes ponderando que os sufrágios concedidos à vossa candidatura, antes do que a vós, o foram ao Exército brasileiro, fidalgamente ora acolhido nas fileiras acadêmicas, como valioso colaborador que já iria entrando no concerto da civilização universal. Vossa eleição teria, assim, a nota de uma distinção impessoal, não deferida a um escritor, mas ao soldado brasileiro. Ora, escusai-me, General e confrade, se nesse atalho da vossa modéstia ouso antepor-vos as resistências da verdade. O triunfo agora é vosso, e todo vosso, porque entre nós, os homens de letras, a vitória do exército já desde muito se pronunciara, e com alguns eventos célebres, sem as rudezas sangrentas de um combate, e muito mais filosoficamente por um concerto de adesões.

Se, como lá disse o quinhentista Ferreira, não fazem mal as Musas aos doutores, bem certo é que sorriem aos militares; nem precisamos sair da península donde nos veio o sangue e a civilização, para lembrar que militaram Camões e Cervantes, isto é, a poesia portuguesa e a prosa espanhola; que foi um oficial do exército aquele Francisco Manuel de Melo, historiador das guerras da Catalunha, inimitável dizedor de vernaculidades em dois idiomas; e que, em quadra mais moderna, galhardo, comandou Latino Coelho o batalhão de estilistas portugueses. Mas por que, Sr. General, atravessarmos o Atlântico em busca de exemplares onde se tenham aliado armas e letras, se mesmo entre nós, nesta nossa Academia, ainda ontem nascida, vários já se contam os militares que nela têm tido assento?

Mesmo antes de envergarem a farda acadêmica, alguns de nossos confrades poderiam garbosos ostentar a das milícias pátrias; e não porque o ignoreis ou o tenhais esquecido, mas pelo prazer que sinto em falar-vos deles, permiti que vo-los mencione.

Sem já vos dizer do nosso ex-Secretário-geral, Medeiros e Albuquerque, cuja ausência deploro e que é coronel de uma artilharia cidadã, eu vos cito Urbano Duarte, oficial como vós, do Exército, e nem por isto menos laureado como foi nas lides do jornalismo; Alfredo d’Escragnolle Taunay, que vos precedeu imitando a Xenofonte e narrando proezas da expedição em que tomou parte conspícua; e esse Euclides da Cunha, que também foi soldado, que também foi general das letras, e cuja trágica sombra como que entre nós ainda vagueia, semivelada em um nimbo de saudade.

Pertenceis, portanto, ilustre confrade, a uma classe que nada tem de antinômica às letras; e, se mesmo aqui fizésseis questão das vossas bordaduras de general, nós vos sentaríamos de par com Jaceguai, o glorioso Barão da Frente, hoje o mais lendário vulto da nossa Marinha de outrora, e que, nos intervalos de uns debates onde apurássemos questões lexicográficas, poderia contar-vos feitos de outros tempos, quando os nossos navios, pujantes anfíbios, se entranhavam rios a dentro, espedaçavam cadeias, e no âmago do continente plantavam a nossa bandeira e firmavam a nossa hegemonia.

Não são, pois, os vossos títulos militares que vos dão entrada neste recinto, mas as valiosas contribuições com que tendes aumentado o cabedal da nossa literatura histórica.
Há quem prefira neste gênero as ponderadas sentenças de escritores que de muitos anos, se não séculos, foram posteriores aos sucessos. A História (dizem esses tais) por semelhante modo manterá a fria e imparcial compostura do juiz, cujo espírito queda isento de toda paixão conturbadora. Talvez assim seja para a correta judicatura dos fatos; mas não em assuntos literários da história, tanto mais sentida e vivida quanto mais próxima dos eventos que relata. E por que, eu vou-lo pergunto, por que é que entre todas as histórias européias é a francesa a mais interessante, a que mais na memória se nos grava, a que em relevo mais nos deixa as suas personagens, aquela, enfim, de que mais duradouras nos permanecem as impressões? Simplesmente por ser a mais opulenta em memórias.

Quase todos os homens notáveis da França têm querido por si mesmos falar à posteridade e dizer-lhe de si e das coisas da sua época; e assim como, na região amazônica, tantas vezes magistralmente descrita pelo nosso José Veríssimo, paralelos ao curso do rio gigante se deslizam, cruzam e anastomosam infinitos furos, igarapés e braços secundários, complicadíssima trança que permite seguir a direção do Amazonas sem propriamente navegar no Amazonas, assim também na vasta biblioteca das memórias, epanáforas e monografias históricas francesas, uma inteligente escolha desses escritos, metódica e cronologicamente coordenados, bem poderia, como alguém já disse, suprir a verdadeira e clássica História tal qual a entendem os tratadistas.

Vossos trabalhos, Sr. General e confrade, não são exatamente memórias; mas destas se aproximam pelo cunho da presença individual que em quase todas imprimistes. Os casos de guerra que recontais, vós neles houvestes grado quinhão, quorum pars magna fuisti. Vós as vistes sibilar, as balas que perpassam em vossas narrativas. Vós as padecestes, as angústias de intérminas jornadas. Vós os vistes malferidos e agonizantes, os camaradas cujo trânsito comemorais... E, sob a calculada placidez do vosso frasear, ainda quando de vós mesmo, more Caesaris, apenas falais em terceira pessoa, sente-se que no escritor está o combatente e que, desoprimido da farda nos lugares literários, ainda sob a impressão da campanha vos palpita o coração de soldado.

Assinalando destarte as qualidades e excelências de vossa obra histórica, tenho implicitamente desenhado o reverso das medalhas que burilastes: quero dizer que vossos livros, e aliás todos os congêneres, cumpre que sejam tomados como prestantes e probidosos depoimentos para o definitivo juízo da posteridade, e não como sentenças finais de graves pleitos. Homem da vossa época, participais das paixões e preconceitos da ocasião e nem sempre vos isentais do influxo político.

Tal sucede, por exemplo, ilustre general e confrade, quando, ao narrardes o abandono de Corumbá, na vossa obra Impressões militares, achastes ensejo para profligar o descalabro do nosso Exército, dolorosamente surpreendido pelas brutalidades da agressão paraguaia, e então dizeis que neste continente vivíamos – “apenas confiados na muito apregoada sabedoria de um rei inimigo do Exército”.
Relevai, general, que vo-lo diga, não há nisto a imparcialidade de que em outros lugares destes provas.

O desprezo dos nossos elementos bélicos, quando inopinado nos atacou o segundo López, era antes o resultado não da hostilidade ou desarmonia do soberano para com o Exército de Caxias e a Marinha de Tamandaré, mas o consectário de uma política que, tendo criado a organização militar do Paraguai, e esperando que em boa e leal amizade frutificasse a sementeira de tal política, absolutamente não curava de agressões externas, e de corpo e alma se entregava aos labores do seu desenvolvimento nas indústrias e no comércio, nas letras, nas artes, nas onímodas manifestações de uma labuta fecunda.

Felizmente, Sr. General, para a causa e final apuração da verdade, pertenceis ao número daquelas honradas testemunhas que, citadas ou para a acusação ou para a defesa, em nada alteram a legítima exposição dos fatos; e assim já em outro lugar desse mesmo livro eu vos encontro a bosquejar as ruínas do Exército em t894, cinco anos após a decretação do exílio do último Imperador, e quando os revoltosos ameaçavam o Paraná. Aí citais palavras de um cabo-de-guerra, o General Argolo, em longo despacho ao governo da República. Lícito me seja relembrá-las:

“É indescritível – escreveu Argolo – a balbúrdia e o estado de desorganização em que tudo encontrei, quase nada existindo. Não há infantaria e a insignificante que existe esta desprovida de fardamento, absolutamente sem instrução; a cavalaria sem pessoal e sem cavalos; armada agora de carabinas que o Governador emprestou; a artilharia não tem arreamento ao menos para puxar uma peça, porque o existente foi dado em consumo há quatro anos; pelo que mandei aprontar rapidamente, no comércio deste lugar, o necessário para quatro canhões. Não há munição alguma e só a custo consegui saber o material e o pessoal de cada corpo...”

Outro qualquer, Sr. General e confrade, cuidadoso ocultaria esta grave e deprimente revelação: vós corajosamente a exarastes. Na primeira página de cada um de vossos livros poderíeis ter escrito aquilo do Montaigne: – C’est icy un livre de bonne foi... Mas, por outro lado, deixai que disto, em prol da justiça, eu tire proveito e concedei-me, ao menos, que no descalabro de 1894 nenhuma culpa teve o Soberano que pintais como infenso ao Exército.

Em uma de vossas narrativas, a que se intitula Acidentes da Guerra, entremeastes de um episódio romântico o triste capítulo das operações de Canudos. Ainda vibrante dos recontros, procurastes elevar o vôo acima do solo ensopado em sangue, e alar-vos aos páramos da ficção; porém, mesmo aí, permaneceis historiador, Trahit sua quemque voluptas. Se Coelho Neto, o fantasista infatigável, tentasse escrever uma história, acredito que sairia um romance: vós tentastes esboçar um romance, e as vossas personagens, fictícias ou romantizadas, diluem-se e desaparecem no severo quadro da história. São páginas verdadeiramente históricas as dos Acidentes da Guerra; e quem quiser conhecer o que foi a derrota de Canudos, consecutiva à morte de Moreira César, tem de ler e meditar as sinceridades do vosso livro.

Não reproduzirei aqui os pungentes lances dessa obra por não lançar na vossa festa a nota melancólica de tamanho morticínio; mas dever meu é assinalar a pujança pitoresca, a faculdade de pintar escrevendo que em vossos livros se depara – faculdade que sem dúvida tinha em vista o velho Horácio quando no mesmo verso, ampliando licenças para duas classes de artistas – pictoribus atque poetis, – assim equiparava os poetas da pintura e os pintores da palavra.
Abrimos, por exemplo, os citados Acidentes da Guerra, e aí, por sobre a agonia de Moreira César, encontramos:

“a madrugada cariciosa e pura, que ao fulgor das estrelas rebrilhantes no engaste azul do céu, dava umas tonalidades vivas à terra, e esta, nos focos da grande vida universal, começando a despertar para o eterno concerta do trabalho e movimento” (p. 140).

Os intrépidos cavaleiros dos pampas nós os vemos, na Invasão do Paraná,

“em cavalgadas emocionantes, através de campinas intermináveis e verdes coxilhões serenos, de sombrero ladeado, com sua fita larga em torno da copa afunilada, lenço de vivas cores ao pescoço, cujas pontas esvoaçavam ao vento rijo, às vezes morno pelo contacto da terra abrasada, outras vezes frio como os gelos das regiões antárticas por onde passavam.”

Aí, nesse mesmo volume, está a pintura de uma cidade donde se foge por temor do inimigo. Era Curitiba, e dai-me vênia para vos transcrever:

“As ruas povoadas da cidade, cujo movimento nos tempos normais dava a nota alegre de uma vida intensa, achavam-se desde o dia 18 quase totalmente desertas no desolamento de um abandono precipitado; em todas as direções viam-se grupos sem destino, ao acaso, olhando fixamente para quem encontravam, dominados do mesmo terror, com gestos de interrogação, quase desvairados. Homens e meninos, trepados pelos telhados dos mais altos edifícios, afirmavam que viam, para as bandas do sul, fortes colunas federalistas descendo das colinas, com as suas baionetas reluzentes, ao sol chispante de janeiro; outros, aplicando o ouvido, numa atitude de atenção concentrada, garantiam que estavam ou¬vindo o troar da grossa artilharia implacável, e, nessa desordem dos sentidos abalados, já pressentiam a cidade arrasada pelas balas de Gumercindo... Carroças grandes, coloniais, abarrotadas do que mais facilmente podiam transportar, em cuja confusão de objetos necessários se viam camas de todos os feitios, colchões velhos ou novos, travesseiros de fronhas rendadas ou nus, e, se é possível avivar um pouco este desenho a que faltam tintas vigorosas, – viam-se ainda ao colo de mães robustas, quase loucas de medo, gentis crianças sonolentas, dormindo despreocupa¬das, com os labiozinhos semi-abertos, por onde, de quando em quando, se escapavam sorrisos cândidos e puros.” (p. 134 e seg.)

Algum receio, general e confrade, vos acomete de não possuirdes tintas assaz vigorosas, – e não sem motivo, pois que a certo grupo há de o vosso estilo parecer menos colorido, e talvez o vosso léxico menos opulento, nesta quadra de exagerados cromatismos e de orgias vocabulares. Quando nas literaturas em crise reina o abuso do esquipático, incorre em desdém a sobriedade dos termos e o singelo da construção. Literatos há, aliás de provados méritos, que andam sempre à cata do vocábulo estrambótico, como esses desocupados que por grotas e barrancos se atiram caçando parasitas, certamente menos belas do que as rosas, mas com o requinte da esquisitice.

Não assim, quando escreveis. Límpida vos sai a frase. Evitais o artifício. Falais como toda gente fala, – o que já constitui bom predicado para o primeiro escopo do escritor, isto é, ser compreendido.

“Nunca foi historiador estilista, – diz de César um moderno crítico, o Sr. René Pichon, na sua Histoire de la littérature latine. Posta de parte a pureza do vocabulário e a nitidez da sintaxe, nada absolutamente há que notar em seu estilo, porque ele assim o quis. O grande mérito do estilo de César é não existir, porque tem uma transparência absoluta.

Isto, entretanto, não impede que, no entender de Cícero, correção e limpidez sejam as qualidades dominantes do autor dos comentários, nem que do seu vigor e vivacidade fale com admiração Quintiliano. Contentai-vos com isto, general: tomai para vós as rosas fragrantes e deixai a outros as parasitas rebuscadas.

No meio de tudo não vos descuidais de emitir opinião sobre as insuficiências práticas do nosso ensino militar e sobre a ação dissolvente do filosofismo que propende a emasculá-lo; nem a ervadas alusões vos escapam esses oficiais – “cientistas apreciáveis, (palavras vossas), conhecedores de todo movimento filosófico da França e da Alemanha, de Descartes a Emmanuel Kant, de Gottlieb Fichte a Augusto Comte, mas em grande parte adversários do Exército, a que deviam educação e tudo.” (p. 161)

Percebe-se que, quando assim opináveis, se de chofre vos houveram dado o poder, prontamente acudiríeis com o remédio. Perderiam talvez com isto a filosofia, a pedagogia, a matemática transcendental e a catequese... mas ganhariam os altos interesses da defesa nacional.

Onde mais transparece em vossa obra a observação do homem político, é nessa Expedição a Mato Grosso, em que referis o malogrado tentame da restauração de um governador exautorado. Longe de mim, neste lugar e nesta ocasião, embrenhar-me em melindrosas ponderações. Assaz conheço as conveniências para tal fazer. Em salões de baile não se entra com armas de guerra. Eu por isso deixei lá fora a minha escopeta de livre-atirador. Basta-me aqui dizer que na vossa epanáfora assistimos a um dos muitos atos em que se tem desdobrado a peça federativa; compreendemos o estado da alma das populações ignaras, trabalhadas por paixões violentas; e nos lúgubres disparos que ali terminaram o pleito, reconhecemos, entristecidos, quanto ainda nos falta para o tranqüilo gozo da liberdade.

Representante, em todos estes sucessos, da força que solícita acorre para salvar o direito, certa razão vos assiste, general e confrade, para, talvez, propenderdes a esses terríveis meios de convicção cujos dizeres se pontuam com a fuzilaria e o canhoneio. A antinomia, contudo, entre vós e os partidistas da paz universal é antes logomaquia do que formal contradição.
Não há, com efeito, nenhum espírito generoso e de alto descortino (e entre eles o vosso) ao qual não sorria a perspectiva da universal concórdia humana.

A idéia de um vasto convênio em que se estabelecesse a polícia mundial, para impedir e dirimir conflitos internacionais, não é aliás tamanha utopia quanto em geral se pensa.
Transportemo-nos, pela imaginação, aos tempos em que num desfiladeiro da antiga Hélade se encontraram, de ferro em punho, e disputando-se o passo, Laio, o inditoso rei de Tebas, e seu filho Édipo, ainda mais inditoso. Se, naquelas angústias, e quando mais se encruava o duelo, alguém, um de nós, estivesse presente e fizesse ouvir o trilo de um apito, nenhum dos combatentes nos percebera o intento. Seriam precisas muitas palavras para lhes explicar que éramos utopistas e que antevíamos o mecanismo de uma polícia, isto é, de uma criação social para evitar que homens se degolem à vontade. Pois bem, general, o que eu e outros esperamos é que chegue um dia em que se crie a polícia internacional; e nesse dia não mais se mancharão os desfiladeiros com o sangue dos irascíveis.

Já na visão de Isaías, filho de Amós, se nos prenunciam pacificadas as nações, que das suas lanças terão forjado foices, e das suas espadas relhas de arado.

“Não levantará (diz o Vidente), não levantara uma nação a sua espada contra outra nação, nem mais se adestrarão para a guerra.” (Isaías, II, 4)
Nós os católicos, Sr. General, temos um livro, a Bíblia, onde está quase tudo: e, como vedes, aí também se acha a questão dos desarmamentos e a paz universal. Queira a mão misteriosa, que para uns é a evolução ou fatalidade, mas em que nós adoramos o Deus criador e providente, aproximar de nossos dias o implemento da profecia!

Mas, por outro lado, quando nos próprios congressos de paz a importância dos grupos humanos ainda se calcula pela das suas forças de terra e mar, pelas florestas de baionetas e pela possança dos monstros marinhos, não há quem, com verdadeiro patriotismo, não hipoteque suas simpatias àquela fração nacional que, armada e disposta ao sacrifício da vida, é o maior penhor da segurança interna contra os botes da anarquia e, no exterior, contra as injustas e trêfegas cobiças do estrangeiro.

Não se trata de apurar o que haja de ser; mas discretamente indagamos, qual é agora o estado desse problema humano. E, infelizmente, nos não sai cor-de-rosa a inquirição.

Conheceis todos sem dúvida esse moderno livro, The Valor of Ignorance, em que um distinto oficial da União Americana, Homer Lea, consecutivamente ao tratado de Portsmouth, tocou a rebate, denunciando a defeituosa organização militar de sua terra em frente da progressiva pujança japonesa. Pois bem, dessa obra, que não é só de patriota, mas de pensador, tiremos a conclusão do nosso inquérito:

“Uma análise da História (diz ele) demonstra que desde o décimo quinto século antes de Cristo até hoje, isto é, em um decurso de três mil e quatrocentos anos. não têm havido mais de duzentos e trinta anos de paz. Umas às outras se têm sucedido as nações com monótona semelhança em sua origem, seu declínio e sua grandeza. Todas elas têm sido construídas por arquitetos que foram generais, alvanéis que foram soldados, trolhas que foram espadas, e com pedras que foram as ruínas dos Estados decadentes. Seus períodos de grandeza inteiramente coincidem com as suas proezas militares e com as expansões que destas resultaram.”

Diante disto, senhores, não creio haja brasileiro que das ruínas da sua pátria deseje se tirem as pedras para as fundações do estrangeiro. Assim, os sentimentalistas que declamam contra a guerra em todo e qualquer caso, andam errados; perseguindo a sua mosca azul, dão tombos desastrosos; e, finalmente, chegam a um termo bem diferente do que se propunham. Um exemplo que me parece gracioso pode talvez ilustrar o assunto.

No saguão do Jornal do Brasil tereis todos visto um grande quadro preto onde a simpática Sociedade Protetora dos Animais exibiu, como reprováveis instrumentos de tortura, – o freio, as esporas e o chicote. Ora, aconteceu que, quando eu contemplava aquilo, havia ao meu lado um homem que não se cansava de dar mostras da mais viva indignação contra os objetos abomináveis.

– Mas, timidamente lhe ponderei, se eu montar sem esporas, e numa cavalgadura sem freio, não há dúvida que me arrisco a vir ao chão.
– E que desgraça haveria nisso? perguntou-me o sujeito.
– A desgraça, respondi-lhe, é que eu também sou animal, e assim sempre ficaria trilhado um elo da cadeia zoológica...

O mesmo se dá com os insaciáveis ideólogos que, descurando o mundo concreto, pretendem imitar aqueles cidadãos de Atenas eternizados pela veia cômica de Aristófanes, que em aladas montarias se remontavam à Cidade das Nuvens e dos Cucos – imaginária construção, que de tantos anos precedeu as novidades do Chantecler. Tais sonhadores acreditam, por exemplo, que os povos são massas plásticas e que, inertes, se conformam às filosofias por decreto; suprimem a religião sem se lembrarem de que assim bem no âmago vulneram as consciências; e, quando ainda mal desponta o primeiro e indeciso clarão da paz universal, já intimam que nos desarmemos em frente do mundo armado. O melhor de tudo – quem o contesta? – seria que nunca brigássemos; mas na hipótese desagradável de uma luta, ou pela vida ou pela honra, eu prefiro que os derrubados não sejamos nós.

Muito longe, porém, nos levaria esta digressão – e já me corre outro dever, qual o de responder às considerações tão nobremente sentidas que adiantastes sobre o vosso antecessor na cátedra acadêmica.

Foi ele, efetivamente, uma distinta e agigantada figura no nosso meio literário e social. A diversidade dos nossos temperamentos era-nos antes um incentivo à mútua simpatia; e pelo seu esplêndido talento, pelos teus triunfos na tribuna parlamentar e popular, pela bondade do seu trato cavalheiroso, pela identidade dos nossos ideais, eu o amava como se ama tudo que é moralmente grande e belo.

Eloqüência parlamentar, crítica literária, filosofia, história, jornalismo, poesia, ele os perlustrou, esses diversos gêneros, e em nenhum decaiu da sua fama, posto que fosse principalmente um orador. A forma política então vigente lhe deparava na Câmara dos Deputados arena admirável e condigna da sua estatura. A imprensa, que no dizer de Jules Janin, desempenha no mundo moderno função análoga à daqueles vasos de bronze que no teatro antigo reforçavam a voz dos atores e lhes prestavam valentes sonoridades, a imprensa também foi para Nabuco um instrumento de glórias. Com a intuição da popularidade, Nabuco escolhia sempre as causas simpáticas, generosas, adiantadas. Aristocrata de índole, fez-se democrata, abolicionista, federalista; e foi preciso que da abolição saísse a República, que ele não amava nem queria, para que durante dez anos se retraísse ocupando-se em reconstruir a fama paterna e deixar de si mesmo um padrão da autopsicologia.

Um dia, em 1889, na última sessão da Câmara dos Deputados da Monarquia, quando ali se apresentou o Gabinete de 7 de junho, eu ouvi de Nabuco um daqueles períodos em que luminosas se desenhavam imagens indeléveis...

Sentia-se no ambiente a aproximação da tremenda procela que estalou cinco meses depois; tinha ecoado no parlamento o primeiro viva a República, por boca de um padre católico, João Manuel; impetuosa e firme como a réplica de um mestre esgrimista havia lampejado a palavra do Visconde de Ouro Preto; e então Joaquim Nabuco proferiu aquela sua comparação: – ele assemelhou-se, na defesa de seus compromissos, ao imóvel rochedo que debalde açoitam as vagas na preamar, e quedo permanece, assinalando as raias de verdadeiro litoral... E, desde ali, general e confrade, eu prestei àquele vulto a maior homenagem das minhas energias, e a mim mesmo prometi ficar com ele, e com ele aguardar o refluxo dos acontecimentos...

Sabeis o que depois houve. Quando Nabuco, sempre vitorioso pelo donaire e fidalguia, sempre festejado como o exigiam seus elevados méritos e incomparáveis dotes pessoais, quando Nabuco em torno de si via estrondar os aplausos de seus antigos adversários, claro é que meu coração já não podia estar com o dele, porque o meu ficara no penhasco onde ele me assinalara o posto de honra...

Para o encargo de que ora tão desjeitosamente me estou desempenhando, eu fui designado pelo então presidente ad interim, o prezado Sr. 2.o Secretário, que nesta Casa dignamente continua o nome de Alencar. O feitio moral desse Ilustre companheiro é antes modelado pelo de Machado de Assis, com quem conviveu, e que parece ter-lhe deixado a herança de suas finas malícias que aliás benévolas paravam às portas do sarcasmo.

O honrado presidente ad interim, nomeando-me, quis, talvez, delicadamente, fornecer-se o gozo de duas antíteses, dando-me a palavra, a mim, o mais bronco dos paisanos, para receber um brilhante general, a mim, o mais teimoso dos impenitentes, para dizer sobre uma das valiosas aquisições da República. Mas não há, como estais vendo, dificuldade alguma em minha posição, nem outro receio agora nutro senão o de vos estar enfadando.

Poder-se-á conjeturar que, tendo eu atacado a Joaquim Nabuco na última fase da sua carreira pública, seria o menos próprio para dele agora falar; ou que nestas minhas palavras se envolve remorso ou retratação.
Nada menos exato.

Senhores, eu falo em uma assembléia de filósofos que, para os casos difíceis, conhecem admiráveis saídas, alçapões silogistas, pontes de argúcias sobre abismos de fatos; em um cenáculo de literatos que, fascinados pela forma, para a segunda plana relegam impertinências da moral; estou rodeado de jornalistas, cuja obra-prima é esse palanque de neutralidade sobre todas as opiniões; mas também aqui haverá soldados e por eles quero ser julgado.

Imaginai, general e confrade, que apenas sois uma praça de pré, sentinela postada nas linhas extremas de um acampamento, após temeroso desastre que vos impõe dobrada vigilância... A noite é escura – e bem escura aquela em que ainda nos achamos, pois anoiteceram os princípios e bruxuleia a fidelidade aos ideais... Súbito, um vulto transfoge. Fitais a escuridão por lobrigar quem seja... Não, não se trata de um simples subalterno. Discernis as insígnias de alto posto. É um chefe, um chefe querido, que vai levar aos adversários o contingente do seu mérito e talvez o segredo da vitória... Levais arma à cara e fazeis fogo... Francamente, general, vós teríeis feito o mesmo – e foi o que eu fiz.

Os aplausos, porém, com que a República aceitou a Nabuco, longe de me contristarem, pelo contrário me envaideciam. Suas láureas, mesmo no campo adverso, eram até certo ponto nossas. Ele era o documento vivo do que podia dar a antiga cultura, em um meio fartamente oxigenado pela liberdade. O terreno donde subia uma seiva tão vigorosa que de pais a filhos garantia a vivacidade intelectual, e sem descansar produzia dois Nabucos, dois Afonso Celsos, dois Rio Brancos, – esse terreno pode havê-lo fulminado o céu, podem tê-lo assolado os homens, mas não o digais infecundo, não lhe lanceis o anátema da esterilidade!

Nabuco voltou vivo à pátria, mas eu não mais o procurei, não mais me comprazi na sua palavra, que na tribuna era um clangor de combate e na intimidade um suavíssimo arpejo. Depois voltou... morto. De uma das eminências a cavaleiro da cidade, vi alongar-se o navio que levava o féretro de Nabuco. Lentamente o acompanhei com a vista até sumir-se nas fimbrias do horizonte; mas antes que de todo, e para sempre, ali se perdesse, não vos oculto que outras brumas, que não as do mar, me embaçavam os olhos turvados de emoção...

Aludistes, general e confrade, a uma opinião de Nabuco alvidrando pela superioridade da epopéia camoniana sobre a Comédia dantesca que os pósteros condecoraram com o epíteto Divina. Permiti que nisto aceite respeitoso a vossa decisão. Em outros tempos, quando ainda estudante, formei parte de um grêmio literário chamado Amor ao Estudo. Aí fazíamos paralelos entre os grandes homens. Certa vez discutimos qual seria maior, se Alexandre, se Napoleão. As sentenças dividiram-se e foram calorosamente sustentadas. Afinal votou-se e, se bem me lembra, Napoleão ganhou por dois votos. Eu, que tinha de cor o meu Quinto Cúrcio e ainda não lera Thiers, era partidista de Alexandre. Sua derrota muito me foi sensível, e desde então perdi o gosto para trabalhos de tal gênero.

Creio mesmo que dificilmente eles se operam dentro da verdade. No tempo de Dante faziam-se catedrais. O espírito medievo cantava entre as naves as matinas do romantismo, povoava de estátuas as fachadas, enastrava com flores de pedra as criptas, os altares, as janelas ogivais, e subindo, subindo sempre, rendilhava as torres esbeltas e só parava no azul da imensidade, onde cravava as flechas pontiagudas. Na época de Camões, o Português tinha dois credos: o do Cristo e o da Pátria. No peito heróico, como lá diz o Sá de Miranda, ele trazia entalhadas as suas quinas. Cada poeta reproduziu a feição característica das suas crenças e do seu patriotismo. Um olhava para o céu; outro para o mar. Ide fazer o confronto entre a catedral e a caravela!

Nabuco negou à obra capital de Alighieri o caráter de epopéia. Formais palavras suas:

“A Divina Comédia não é propriamente um poema épico; é um poema fantástico, é o sonho de uma imaginação tão grande quanto melancólica. Nada há aí de real; são espectros que fogem e se evaporam...”

Não vejo nisto razão maior. Camões nunca foi mais épico do que quando engendrou o Adamastor, colosso fantasma que suscitou a admiração mesmo do tantas vezes leviano Voltaire; e bem me custaria, se em julgado passara tal opinião, riscar da lista das epopéias a Messíada de Klopstock, a Assunção do nosso São Carlos, e o Paraíso perdido de Milton.

O fato é que, em toda a criação épica, ao lado da realidade fria e palpável há de haver lugar para a natureza moral com as suas indefinidas aspirações e surtos incoercíveis. Não amesquinhemos, portanto, como fantástico, o que talvez não exista, mas, repentinamente gerado pelo fiat do gênio, logo acode a uma das indeclináveis necessidades do nosso espírito. Na obra de Dante essa Francesca de Rimini, apenas lobrigada na história, eu a vejo tão viva e tão bela como a Lindóia do nosso Uraguai, cuja realidade ainda é mais problemática, e ambas como a Inês de Castro, que certamente viveu, e mesmo antes de Camões já se idealizara nas estâncias de Garcia de Resende. O fantástico, pois, não exclui o épico; e, se me disserdes que as figuras dantescas não passam de espectros, eu vos responderei que antes são visões luminosas, e que com elas, na Itália medieva, se guardou o clarão intelectual da Antiguidade e à tradição virgiliana se ligou o florejar da Renascença.

Assaz, porém, me tenho demorado neste ponto; e já me tarda rematar com alguma coisa no tocante àqueloutra dificuldade em que me colocou a designação para ocupar esta tribuna.
Qualquer que fosse a divergência que entre nós existira, Sr. General, e que me dificultasse a tarefa de receber-vos, cederia o passo a uma consideração de ordem superior: – e é que, por compensar as dissidências, que tanto se refletem no que escrevemos, entre nós existe um liame duplo, de natureza filosófica e literária.

Para mim representais, Sr. General, o princípio da autoridade que paira acima das formas de governo. O que ora está verdadeiramente em questão, não é se o supremo magistrado tem de ser vitalício ou quadrienal, se por investidura hereditária ou se mediante o que chamais eleição: o que se agita na profundeza das consciências em revolta é a supressão de toda fé, de todo culto, de todo governo. Os que se alegram quando uma realeza vem abaixo, mal reparam na grande semelhança entre as cátedras chamadas tronos e os tronos em que se assentam as magistraturas democráticas. O dia de amanhã, para todos os povos, denuncia-se cheio de borrascas. Encostai ao chão o ouvido, como fazem os nossos indígenas, e aprendereis que não longe vem a turba desvairada e destruidora.

Nestas condições, em meio das tendências anarquizantes da atualidade, eu vos considero, a vós e aos vossos companheiros de armas, como o último baluarte de uma ordem de coisas periclitante nas sociedades modernas, e cuja queda marcaria o mais fragoroso desabe social.

E o vosso papel nesta Academia, folgo em dizê-lo, é ainda um prolongamento da vossa missão no mundo político.
Esta Academia, como todas as suas congêneres, é um corpo de prontidão em defesa das letras nacionais.
Não devaneio.

“Nosso desejo (foi Machado de Assis quem o disse no seu discurso da sessão de abertura em 20 de julho de 1897), nosso desejo é conservar no meio da federação política a unidade literária.”
Eis aí: – a unidade nacional que com a espada prometestes defender lá fora, aqui com a pena esforçado a propugnareis.

Não vos assuste o temperamento revolucionário de alguns dos nossos confrades. Suas tendências demolidoras não passam de aparentes. Fundamentalmente todos somos conservadores.
Eles mudaram, por exemplo, a ortografia, contra o meu voto tradicionalista. Vestiram de kaki o dicionário; mas isto é apenas uma questão de uniforme. Na tática e estratégia eles dispensam missões estrangeiras. Todos os dias escrevem formosas páginas, versos adoráveis, venustas prosas, em castiça linguagem, e sempre zelando as gloriosas tradições do vernaculismo.

Havia antigamente um remédio que se chamava triaga, – electuário em cuja composição entravam inúmeras substâncias heterogêneas. Destas algumas eram tóxicas, mas logo na mistura perdiam a peçonha. O efeito final tornava-se magnífico. A triaga curava, diz-se, mordeduras de cobras e uma infinidade de mazelas. Quer-me parecer que com as academias se dá o mesmo. Entram nelas ingredientes formidáveis; mas, finalmente, o resultado é benéfico. Esta Academia é uma corporação conservadora.

E vede como por isto álacremente ela vos recebe! Está formada a guarnição da nossa acrópole. Perfilam-se corretos seus ilustres batalhadores. Ressoa, em honra vossa, uma fanfarra de aplausos. Estais no meio dos vossos camaradas. Sede bem-vindo, general!