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Discurso de posse

Senhores acadêmicos,
   
sejam as minhas primeiras palavras de agradecimento pela prova de apreço com que me cumulastes ao trazer-me para o vosso sábio convívio.

Recebo-a com humildade, não como uma consagração pela obra produzida, mas como um estímulo para realizar tarefas mais ambiciosas no campo do saber filológico.

Minhas relações com esta Casa são antigas. Mal saído dos bancos da Faculdade Nacional de Filosofia, aqui trabalhei três anos na preparação do Dicionário da Língua Portuguesa, projetado e coordenado por meu inesquecível Mestre Antenor Nascentes. Em 1956, fui galardoado com o Prêmio José Veríssimo, de ensaio e erudição, pela monografia “O Cancioneiro de Martin Codax”. E, depois, durante anos, participei ativamente dos trabalhos da Comissão Machado de Assis, que foi desativada em má hora, justamente quando os seus membros haviam adquirido uma experiência – difícil de ser renovada – na editoração crítica de textos modernos. Poderíamos ter-nos antecipado em suas finalidades ao Institut des Textes et Manuscrits Modernes, criado pelo saber e clarividência do Professor Louis Hay e que, com o desenvolvimento da Crítica Genética, revolucionou a própria noção de texto.

Agora, senhores acadêmicos, me recebeis como um dos vossos e numa Cadeira que me é particularmente cara.

Filho de um liberal sem fissuras, que nunca sacrificou suas ideias aos interesses menores da Política, nascido, como ele, na cidade que conserva a tradição e o nome glorioso de Teófilo Otoni, cedo aprendi a admirar esse exemplo paradigmático do Liberalismo, que foi Tavares Bastos, Patrono da Cadeira 35, escolhido pelo Fundador Rodrigo Octavio, por ter sido o maior amigo do seu pai.

Rodrigo Octavio Filho, que lhe sucedeu, foi colega de turma de meu pai na Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais e, enquanto viveu, coordenou sempre uma reunião anual dos colegas, rememorativa da data da formatura em 1914. Lamento, hoje, que uma insuperada timidez não me tenha permitido frequentá-lo como devia. Dele, no entanto, recebi sempre palavras amigas de estímulo na carreira que abracei.

José Honório Rodrigues, conheci-o na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, numa época de ardentes debates políticos, que estremavam uma esquerda de ideias um tanto difusas de uma direita integralista mais organizada nos seus propósitos.

Formava ele entre os estudantes de esquerda, por influência, mais tarde confessada, da doutrinação de linha marxista do professor Edgardo de Castro Rebello, real e merecidamente o mestre mais prestigioso da Faculdade, que só vim a conhecer, a admirar, e de cuja intimidade participei, a partir de 1953, quando assisti a uma conferência sua na Faculdade de Direito de Paris, conferência magistral, coroada pelo vivo e alto debate com o sábio professor Rippert. Quando devia ser seu aluno de Direito Comercial no terceiro ano, estava ele preso a bordo do navio Pedro

I.
 
Na Faculdade de Direito, tive, porém, o privilégio de ser colega, desde o pré-jurídico, de Leda Boechat.
 
Foi ela a primeira classificada no vestibular e assim continuou por todo o curso, razão do alto apreço que lhe tinham os professores. A sua devotada colaboração à pesquisa histórica de José Honório Rodrigues, mesmo antes do casamento, fazia-me lembrar o exemplo admirável de D. María Goyri, que, depois de produzir alguns estudos eruditos de rara agudeza crítica, resolveu dedicar-se exclusivamente à obra do seu esposo, D. Ramón Menéndez Pidal, tendo chegado à perfeição de ler todas as revistas relacionadas com o vasto campo dos seus interesses, marcando os pontos de que, pela contribuição inovadora, ele deveria tomar conhecimento.
 
A longevidade de D. Ramón (que por quatro meses não chegou aos cem anos) impediu que D. María Goyri lhe sobrevivesse e se encarregasse da publicação póstuma de suas obras, o que Leda começa a fazer com renovada dedicação relativamente às do marido. Teremos, assim, brevemente, em dois volumes, a segunda parte da História da História do Brasil. Pela Editora Ática, sairão duas obras há muito esperadas: Capítulos da História do Açúcar no Brasil e Capítulos das Relações Internacionais do Brasil. Finalmente, a Companhia Editora Nacional publicará os seus Ensaios Livres.

Senhores acadêmicos, esta Cadeira viveu sempre sob a égide do Liberalismo Político. O patrono era também convicto liberal na área econômica, o que sabia harmonizar com a ampla visão dos graves problemas sociais com que se debatia o País.
 
É realmente admirável que em tão curta vida se tenha distinguido pela firmeza no desenvolver de tantas ideias, algumas consubstanciadas em lei no seu tempo; outras, depois da sua morte.

Rui Barbosa, tão comedido no elogiar, considerou-o “alma de gigante”, “cabeça que comensurava todas as questões do nosso futuro”. E Evaristo de Moraes Filho na breve, mas penetrante, análise do seu ideário, escreve:
   
Espírito livre, adversário dos preconceitos e do atraso, viveu e consumiu-se Tavares Bastos num só ideal: tirar o Brasil do subdesenvolvimento em que se encontrava, trazendo-lhe uma ideologia de renovação e de esperança [...].

Queria uma sociedade mais justa, com a fortuna pública mais bem dividida entre todas as camadas sociais, com iguais oportunidades para todos, no pleno gozo das liberdades e das franquias constitucionais, livres do medo, da violência e das necessidades.
 
Publicista do nosso tempo, de todos os tempos, talvez tenha sido o maior pensador político do Império, pelo conjunto de sua mensagem, pelos métodos realistas de análise, pela sua brasilidade universalista.
    

José Honório Rodrigues vai além, ao reputá-lo “o mais orgânico, o mais sistemático e o mais lúcido pensador político que o Brasil já produziu”.

Tavares Bastos atribuía quase todos os males do Brasil do seu tempo à colonização portuguesa e ao modelo econômico nela adotado. José Honório Rodrigues também critica a antiga metrópole por seu processo colonizador de base extrativista, de exploração comercial, complementar e não-concorrencial de produtos.

Eu mesmo, em estudos sobre o Português do Brasil, tenho enumerado certos aspectos deficientes do domínio português, em particular na área cultural.

Estender, porém, as restrições ao modelo de colonização (e a História nos mostra que para o colonizado não há, nem nunca houve, bom colonizador), estender essas restrições, como faz Tavares Bastos, ao estágio sociocultural português na época do Descobrimento do Brasil é cometer grave injustiça histórica.

O Portugal que descobriu ao mundo novos mundos não o fez por acaso, mas porque estava realmente na vanguarda da Ciência Experimental do tempo. Basta lembrarmos alguns nomes cimeiros da Cultura Universal de Quinhentos, como o do matemático Pedro Nunes, o do cosmógrafo D. João de Castro, o do cartógrafo Fernando Álvares Seco e o dos botânicos Garcia de Orta e Cristóvão da Costa.

Foi esse “saber de experiências feito”, que para si reivindicava o próprio Camões e que tanta importância teve no progresso ulterior da Ciência, que permitiu o domínio paulatino do “mar tenebroso” e deu à façanha de Vasco da Gama não o caráter de aventura da de Colombo, mas o de uma “viagem de cabotagem de alto estilo”, como já se escreveu.

E, do ponto de vista humanístico, a criação por D. João II do sistema de bolsas para especialização no exterior permitiu que os beneficiados, “os bolseiros d’el-Rei”, ingressassem nas grandes universidades da Europa, onde chegaram aos mais altos postos do Ensino e da Administração, como Diogo de Gouveia e André de Gouveia, reitores dos Colégios de Santa Bárbara e de Bordéus e mestres de Rabelais, de Montaigne, de Calvino e de Inácio de Loyola. Mais de cem professores portugueses lecionaram, no século XVI, nas mais prestigiosas universidades europeias do tempo: de Paris a Salamanca, de Oxford a Praga, de Louvam a Bolonha. E, nessa época, em que se vivia “em signo de Latim”, a Língua das Artes e das Ciências era ensinada – e o foi durante duzentos anos, do extremo da Europa ao extremo da Ásia – pela gramática de um modesto jesuíta madeirense, o Padre Manuel Alvares. Ainda em 1869 saía em Xangai uma edição desse livro afortunado.
 
A Literatura Portuguesa – disse-o o insuspeito Aubrey Bell – é a mais importante literatura elaborada por um pequeno povo, depois da Grega. E, quanto à atividade comercial, não nos devemos esquecer de que a Lisboa dos séculos XVI e XVII era cognominada “empório do mundo e princesa do mar oceano”.

Não faz honra, portanto, a um pensador político e social dos mais eminentes que possuiu o Brasil, em qualquer época, afirmar que “Portugal brilhou um dia, no século XV, e morreu para sempre”.

De Rodrigo Octavio, o preclaro brasileiro que foi o Fundador da Cadeira e que tanto serviu à Academia nos seus primeiros e difíceis momentos, muito haveria de dizer pelos relevantes serviços que prestou ao País, particularmente nas áreas do Direito e da Diplomacia, e pela alta qualificação de sua obra poligráfica. O seu elogio, no entanto, já foi feito, e por quem tinha credenciais especialíssimas para fazê-lo: o ilustre filho, que levou o seu nome, que lhe sucedeu na Cadeira e que desde a infância lhe acompanhou, orgulhoso, a modelar existência.

Rodrigo Octavio Filho foi também um vitorioso no campo de batalha da vida e conseguiu-o sem deixar de ser bom. Essa qualidade, ligada à sua cortesia, à devoção, à amizade, ao seu porte elegante e a outros dotes que lhe ornavam o físico e o espírito, por numerosos e raros, lançaram a segundo plano a obra seleta que realizou nas áreas da História e da Literatura, como criador e como crítico. Ainda hoje não foi superada a sua monografia sobre o “Penumbrismo na Literatura Brasileira”, nem, tampouco, o foi o seu estudo sobre Mario Pederneiras, onde reclama da Crítica o tratamento menor dado ao grande poeta carioca, para o qual reivindica o lugar que verdadeiramente lhe compete em nossa Literatura como inovador no verso, na rima e no ternário poético.

Rodrigo Octavio Filho esteve sempre de bem com a vida e legou-nos um autorretrato espiritual na página “Confissão”, que inicia o seu livro Simbolismo e Penumbrismo, onde se lê:
   
O que eu gosto é de falar do que me agrada. Procuro, apenas, o lado bonito, o lado bom da vida. Não falo mal dos outros, nem dos livros que escreveram, nem do mal que me fizeram. Só leio o que me interessa, ensina ou consola. Costumo dizer que para não se ver uma mulher feia basta não olhar... As outras passam, em revoada, por nossa lembrança... Assim aconteceu com os livros que li e com as criaturas do meu convívio. A verdade é que grande parte de minha modesta obra literária é de evocações. Síntese das emoções da minha memória.

   
A ninguém poderiam aplicar-se, com mais propriedade, os versos de “Una rosa blanca” de José Martí:
   
Cultivo una rosa blanca
En junio como en enero
Para el amigo sincero
Que me dá su mano franca.

Y, para el cruel que me arranca
El corazón con que vivo,
Cardos ni urtiga cultivo:
Cultivo una rosa blanca! 

   
Ao contrário dos dois Rodrigo Octavio, que acreditavam não ser a ternura coisa inútil neste mundo, antes procuravam com ela envolver todos os seus atos e os seus gestos, Tavares Bastos e José Honório Rodrigues não cultivaram com a mesma devoção a rosa branca de que fala o grande Martí. Por vezes, o ardor na defesa das suas teses levava-os às raias da agressividade.

Algumas das características mais salientes da personalidade de José Honório Rodrigues, que naturalmente se refletem em sua obra, devem ser creditadas à sua sofrida geração, que é também a minha.

Pertencemos a uma geração que acreditou ver auroras de mundos novos, e cujos remanescentes não raro ainda se agitam por viver à miragem dos ideais inatingidos. Uma geração que começou a amoldar o seu pensamento nos generosos conceitos de liberdade, de igualdade, de justiça, bordões de propaganda de uma revolução vitoriosa que prometia a reforma radical dos viciosos costumes políticos e administrativos que nos atrasavam um século dos países civilizados; que viu o nascimento, a luta, o florescimento e o declínio de grandes e antagônicas ideologias e por elas, devotadamente, se distribuiu nos arroubos de sua sinceridade. Geração educada no espírito de reforma, sequiosa de igualdade e de justiça na vida, de verdade na Ciência, de autenticidade na Arte e que esbarrou, nas primeiras horas da idade adulta, quando ia pôr em prática o que aprendera, com um regime exatamente contrário ao que idealizara. Preparada para libertar e emparedada; dominada, mas inconformada, demonstrou esse inconformismo principalmente depois que a restauração da ordem legal em 1945 permitiu que ele aflorasse à larga. Os temperamentos ardentes, os que tinham vocação de líderes e talento para o serem, como um Carlos Lacerda, saíram a cobrar, numa linguagem insuspeitada dos colecionadores de disfemismos e agravos, os anos de participação efetiva nos destinos do País, que lhes negaram.

Savonarolas, a exigirem reformas dos costumes, a reorganização do Estado, a renovação dos valores e, como o frade de San Marco, a enfrentarem toda oposição a suas ideias, oposição de adversários e de partidários, do poder civil e do religioso e, até, do orgulho humano.

Drama particular viveram os que se endereçaram para as ciências do espírito e da Cultura. Restringindo o campo de observação às que me são menos estranhas, não temo afirmar que a esse inconformismo com a opressiva realidade, a um impulso de fuga no tempo e no espaço, se deve o fervoroso cultivo de especialidades até então quase desconhecidas no País e, sobretudo, o emprego de métodos mais rigorosos na comprovação dos fatos.

A criação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras veio propiciar aos que se interessavam pelas humanidades em geral a aquisição dos novos métodos de trabalho, de uma seriedade que faltava a esses estudos, onde, com poucas e honrosas exceções de alguns pioneiros sem seguidores, o que havia era dogmatismo, verbosidade e vaguidão. Cultuava-se nessas áreas do Saber aquela impostura de que fala Lecomte de Noüy em L’Homme devant la Science: 
    
O sábio sincero, em seu laboratório, trabalhava dia e noite com o exclusivo desejo de compreender a Natureza. Mas havia também o sábio filósofo, que fazia poucas pesquisas; e delas tirava conclusões tanto mais impressionantes quanto mais fantasistas e largamente desenvolvidas. E havia também o filósofo puro, sempre imbuído da importância da Ciência, que ele não conhecia, mas sobre a qual dissertava copiosamente.
    
José Honório Rodrigues não seguiu regularmente nossos cursos superiores de História, mas pôde fazê-lo durante um semestre intensivo na Universidade de Colúmbia, sob a direção do Professor Frank Tannenbaun, que, ao fim desse período, lhe assegurou ser manifesta a sua vocação de historiador e que, daí por diante, o que tinha de fazer era pesquisar e publicar.

Faculdade nenhuma, certamente, por mais qualificada que seja, pode criar um verdadeiro especialista, que é produto do próprio esforço, o que vale dizer – um autodidata.
 
No particular, José Honório deveria ter presente o exemplo dos seus ilustres contemporâneos Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Pedro Calmon, que, como ele, não se licenciaram em História. E mais. Lembrar-se-ia, sem dúvida, da célebre afirmação, de Mommsen, de que o historiador nasce feito. E, provavelmente, do seu tão admirado Benedetto Croce, de quem se dizia que “nenhum mestre o formou e nenhuma escola o deformou”.

A permanência nos Estados Unidos no ano letivo de 1943/1944 foi decisiva na formação do historiador, que se volta inteiramente para a alta erudição histórica e planeja o tríptico monumental que iria consagrá-lo:

    a) Teoria da História do Brasil (introdução metodológica);
    b) A Pesquisa Histórica do Brasil;
    c) História da História do Brasil.

Essa fase da obra de José Honório Rodrigues, de sólida preparação para a seguinte, mais interpretativa, caracteriza-se pelo trabalho paciente, austero, fundado na dura realidade dos textos. Poderíamos denominá-la fase beneditina e contrapô-la à fase dominicana, representada pelas obras de História viva, combatente.

Com a Teoria da História do Brasil surge, em verdade, o José Honório renovador, aquele que iria causar a admiração dos colegas nacionais e estrangeiros pelo tratamento erudito, pelo domínio atualizado da Bibliografia, da Metodologia e das ciências auxiliares da História.

Foi enorme e benéfica a influência dessa obra desde a primeira edição de 1949, e não somente na área dos estudos históricos.

É por isso estranho que tenha passado quase despercebida aos filólogos brasileiros, que até hoje não costumam citá-la. E, no entanto, ela deve ser considerada o guia imprescindível de quem se dedique, no Brasil e em Portugal, à diplomática, à autenticidade e forjicação de documentos, à crítica de atribuição, à crítica interna, à crítica de textos e à editoração – tudo com indicações bibliográficas precisas e análises dos exemplos mais importantes e complexos de textos básicos da nossa História. É aí também que se encontra o primeiro esboço de um estudo evolutivo da Crítica Textual no Brasil, com ênfase naturalmente nos textos históricos.
 
Aliás, no particular, os historiadores anteciparam-se de muito aos filólogos. Cabe a Varnhagen, de inteira justiça, o pioneirismo nessa área com suas Reflexões Críticas, de 1839, muito anteriores à renovação lachmanniana, e nas quais revela o conhecimento do método utilizado pelos editores dos Monumenta Germaniae Historica e do que se praticava na École de Chartes.

José Honório Rodrigues faz, como sempre, justiça a Varnhagen, não só pelas Reflexões Críticas, mas também pelas edições do Tratado Descritivo do Brasil, em 1587, de Gabriel Soares de Sousa; do Diário de Navegação, de Pero Lopes de Sousa, posteriormente objeto de uma das melhores edições críticas elaboradas no Brasil, a do Comandante Eugênio de Castro.

Ressalta, ainda, a importância da edição da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, preparada por Capistrano de Abreu, segundo ele “o exemplo mais alto de edição crítica no Brasil dificilmente superado”.
 
De Varnhagen, caberia relembrar a extensão de sua pioneira atividade critica à Literatura Medieval Galego-Portuguesa, que lhe deve, entre outras contribuições relevantes, a edição de Trovas e Cantares, de 1849, o texto do Cancioneiro da Ajuda, que durante cinquenta e cinco anos – ou seja, até o aparecimento da admirável edição crítica de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos –, serviu os romanistas de todo o mundo, também o Cancioneirinho de Trovas Antigas, de 1870, foi a primeira antologia do Cancioneiro da Vaticana e precedeu de cinco anos a edição diplomática de Ernesto Monaci.
 
José Honório reconhecia a importância, para os estudos históricos, não só da Filologia, mas também da Linguística, tendo chegado a afirmar que “só a Linguística Histórica pode libertar a História do uso das imprecisões vocabulares”.
 
Em seu discurso de posse na Academia, inseriu pertinentes considerações sobre a origem da palavra “liberal” e o seu desenvolvimento semântico e em outra oportunidade declarou que “gostaria de fazer considerações similares sobre o uso das palavras ‘pátria’ e ‘patriota’, ‘social’, ‘nacionalismo’, ‘liberalismo’, ‘democracia’, todas nascidas durante e após a Revolução Francesa”.

Em verdade, com a Revolução Francesa, algumas palavras, até então neutras, coloriram-se de sentidos novos, mágicos, que se propagaram às línguas cultas do mundo. “Pátria”, “Nação”, “Liberdade”, “Igualdade”, “Fraternidade”, “Revolução”, “Glória” e seus derivados passaram, em sua polissemia, a expressar ideias nem sempre claras, mas cujo fascínio raiava pela religiosidade. Falou-se, então, muito dos “altares da Pátria”, do “templo da Liberdade”, da “santa causa da Revolução”, do “direito sagrado das Nações”.
 
Angel Rosenblat observa que, na América recém-libertada, essas palavras-temas eram não só escritas, mas também pronunciadas com maiúsculas. Se excluirmos Belgrano, cuja voz aflautada lhe trouxe não poucos dissabores, os próceres da emancipação americana tinham todos voz de baixo-profundo e, segundo nos diz Mansilla em suas Memórias, demoravam em regra o dobro do que se gastaria depois na emissão de uma frase.
 
A preocupação de José Honório com a história das palavras e suas relações com as coisas designadas, objeto da Escola Linguística das Wörter und Sachen, é, hoje, um tanto geral entre os filósofos e historiadores, que, sob esse aspecto, poderiam ser considerados cratilistas.

Ortega y Gasset reconhece que “as etimologias não são de interesse meramente linguístico, antes nos permitem descobrir situações ‘vividas’ efetivamente pelo homem”.

Situações por vezes insuspeitadas, como nos mostra a história da palavra “povo”, na qual Ortega descobre este paradoxo: “O verdadeiro sentido de populus foi originariamente o de corpo armado [...] a palavra mais mansa e civil de todas, “povo”, aquela a que recorrem os pacifistas, tem uma inquietante origem bélica.
 
Contribuição linguística de José Honório Rodrigues, fundamental para o conhecimento das condições sociopolíticas e socioculturais em que se desenvolveu a Língua Portuguesa na América, é a sua comunicação A Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial, escrita em 1980 para a conferência sobre “O Mundo Português no Tempo de Camões”, realizada na Universidade da Flórida, em Gainsville.
 
Estuda aí os idiomas nativos: o Tupi e as línguas “travadas”; a criação da Língua Geral e sua difusão no Brasil; o longo predomínio do Tupi sobre o Português em São Paulo e, principalmente, no Maranhão, Pará e Amazonas; a multiplicidade das línguas africanas introduzidas com os escravos como política para facilitar o domínio dos senhores; a situação de polilinguismo ainda no século XVIII e a coercitiva legislação pombalina; finalmente, as condições que propiciaram a vitória da Língua Portuguesa.

Esse ensaio é típico da segunda fase do historiador, em que procura mostrar o caráter cruento da História do Brasil. Partindo do pressuposto de que não podia haver paz cultural, nem paz linguística, durante os três séculos de combate das várias línguas indígenas e negras contra uma branca, José Honório conclui que o processo que levou à imposição da Língua finalmente vitoriosa “não foi assim tão pacífico, nem tão fácil. Custou esforços inauditos, custou sangue de rebelados, custou suicídios, custou vidas”.

E argumenta, com razão, que os índios e negros eram compelidos a aprender a Língua Portuguesa para sobreviver. “O vitorioso tinha superioridade total das armas militares, políticas, econômicas. Não se tratava de discutir o valor e a excelência da cultura e da Língua branca ocidental, que era imposta, mas de se ver degradado a romper com seus laços de continuidade cultural”.
 
Esse ensaio de José Honório Rodrigues é não só altamente revelador da sua derradeira visão da História do Brasil, mas vem ao encontro de uma das preocupações da sociolinguística atual: a de estudar as relações glóssicas entre colonizador e colonizado, o invariável menosprezo pela língua deste, estigmatizada, como todas as suas outras formas socioculturais.

Infelizmente temos de convir em que a Linguística foi, durante largo tempo, uma fonte de argumentos pseudocientíficos para negar as virtualidades das línguas de outros povos. Essa negação constituiu sempre parte do fundamento ideológico da superioridade europeia sobre os povos exóticos. “O discurso do linguista sobre as línguas preparou assim a dos políticos anexionistas, dos teóricos do colonialismo”.
 
É também este o pensamento subjacente à doutrina da língua companheira do Império, enunciada por Antonio Nebrija, em 1492, defendida por João de Barros em 1540, e que vamos encontrar claramente expressa na criação dos diretórios pelo Marquês de Pombal, golpe de morte dado na “Língua Geral” em nosso País.
 
Com razão, escreve Roland Barthes, a propósito dos malefícios do Colonialismo glotofágico na África e na América: “Voler son langage à un homme au nom même du langage, tous les meurtres légaux commencent par-lá.”

O amor de José Honório Rodrigues pelo Brasil era crítico e exigente. Repugnava-lhe viver num país de conformistas, abdicatários e adesistas. Dizia ter ódio à conciliação, para ele “arte política finória da minoria”, “sempre personalista”, que impediu as reformas de base necessárias ao nosso progresso e sufocou no nascedouro as legítimas aspirações nacionais. Esse ódio, no entanto, abrandava-se a ponto de nele reconhecer o papel fundamental no evitar as soluções extremadas e violentas e no resguardo dos superiores interesses da União.
 
Dentro desse pensamento, via, naturalmente, na mestiçagem valores negativos e positivos. Considerava-a “o fator mais importante de abrandamento das relações raciais e sociais”, que tornou menos cruenta a nossa História, mas, por outro lado, acentuava os seus efeitos amolentadores das qualidades viris, de resistência e rebeldia, causas de serem demoradas e ao cabo mais sofridas as vitórias do povo.

À mestiçagem atribuía também o aparecimento do “complexo de caiação”, que vai colocar “setores mestiços a serviço de interesses dominantes”. Lembraria apenas que o fenômeno não é peculiar ao Brasil. Os romances de Castro Soromenho retratam igual procedimento dos mestiços em Angola.

O “complexo de caiação” assume importância capital na historiografia sociopolítica de José Honório Rodrigues, o que foi muito bem realçado por Raquel Glezer em sua tese, que vê nos livros dessa fase participante um certo ecletismo, uma atitude por vezes dúbia.

Tal acusação foi repelida pelo historiador com argumentos veementes, em que procurou mostrar que a sua obra obedece a um fio condutor coerente e lógico, em perfeita consonância com um pensamento político e social que já se havia corporificado nos bancos acadêmicos e que sempre foi, segundo suas palavras, “de uma esquerda moderada, e nunca de uma esquerda extremada”.

No Marxismo, via apenas uma hipótese de trabalho. Nunca o aceitaria em sua totalidade e, muito menos, como um dogma. E, para justificar tal posição ideológica, reitera a sua filiação a certas correntes filosóficas alemãs e ressalta sua dívida para com Dilthey, Rickert e Weber.

É certo que, a partir de 1955, quando ingressa na Escola Superior de Guerra, o historiador passa a sofrer clara influência das doutrinas aí difundidas e, praticamente, arrefece o seu elã de concluir o monumento de obras de alta erudição sobre a História do Brasil, que havia planejado. Continua a atualizar a Teoria até a quarta edição de 1977 e a Pesquisa Histórica até a terceira edição de 1978. Publica a primeira parte, relativa à época colonial, da História da História do Brasil e deixa em provas a segunda parte, que o zelo de Leda Boechat Rodrigues está levando a bom termo. Não chegou, porém, a preparar os três volumes que completariam a obra: um, referente à Historiografia Liberal; Outro, dedicado à Historiografia CatólicaRepublicana e Positivista; e, finalmente, um quinto volume, que se intitularia Do Realismo ao Socialismo.

Com as Aspirações Nacionais, saídas em 1963, transmudam-se os interesses do historiador, que se volve para o tempo presente, para uma história mais crítica da realidade nacional.

Pretendia ele que tão violenta mudança de área temática fosse apenas o efeito de uma atitude mais prática que teórica, interpretação da qual discorda a maioria de seus críticos, que têm apontado uma alteração substancial nos postulados teóricos que informavam os livros anteriormente publicados.

Sustenta, desde então, cada vez com mais ardor, teses que constituem a parte mais atual – e também mais controvertida – do seu ideário crítico. São elas:
 
1.ª) A importância do presente e a importância dos vivos, abonando-se frequentemente na afirmação de Benedetto Croce de que toda História é sempre História contemporânea.

2.ª) O caráter bem mais cruento da História do Brasil do que nos relata a historiografia tradicional, que ele prefere chamar “oficial”.

 3.ª) O Brasil não conheceu revolução, que significa ruptura com o passado, nova estrutura econômica e nova relação social. A contrarrevolução saiu invariavelmente vitoriosa em decorrência do peso do conservadorismo no País.

4.ª) O povo brasileiro vem sendo sempre mais derrotado do que vitorioso em suas legítimas aspirações.

5.ª) A conveniência de se ver a História do Brasil na longue durée, pois que, sendo ela extremamente conservadora, o exame restrito a períodos curtos pode levar a erros capitais.

6.ª) A importância, raramente enfatizada por outros historiadores, das rebeliões negras e da revolta permanente dos povos oprimidos, negros e índios, sempre esmagadas.

7.ª) A História do Brasil tem sido escrita por mãos brancas, “com a maioria do seu povo marginalizado”.

José Honório Rodrigues procurou facilitar o conhecimento do seu ideário nas reflexões críticas de caráter dialético que faz no capítulo “Teses e Antíteses na História do Brasil” do livro Conciliação e Reforma.
 
Aí vemos o historiador preocupado não com a especialização, mas com uma sempre maior abertura de horizontes, com interesse por problemas aparentemente laterais, tudo “com a finalidade de sintonizar o próprio método às exigências não só mais contemporâneas, senão mais futuras”.

Aquelas qualidades mestras que encontrava na obra de Capistrano – claridade e crítica, sobriedade e competência, probidade e erudição – podem também servir para caracterizar o legado historiográfico que nos deixou, no qual pretendeu, segundo suas palavras, “não só interpretar de novo a História do Brasil, mas transformá-la. Para que ela seja, como deve ser, um instrumento de formação da consciência nacional, de identificação e integração nacional e social, um fator decisivo do progresso e desenvolvimento”.
 
José Honório Rodrigues conseguiu, com a sua obra e a sua pregação, colocar a Historiografia Brasileira “num plano científico mais rigoroso, eliminando numerosos lugares-comuns banalizantes, repetidos acriticamente ou, pelo menos, tornando clara a necessidade de uma mais correta impostação dos problemas”.
 
Seria fastidioso enumerar os altos elogios de que os seus livros foram objeto em resenhas críticas dos mais qualificados especialistas. A importância de sua obra costuma ser correlacionada às de Varnhagen e Capistrano de Abreu. Robert Conrad chega a considerá-la superior à desses mestres, ao escrever:
   
O intervalo entre Varnhagen e José Honório Rodrigues é amplo e foi preenchido por Capistrano de Abreu. É talvez significativo que Rodrigues, o maior dos três, embora menos crítico do que Capistrano o foi de Varnhagen, revele hoje a mesma devoção profissional a seu predecessor que Capistrano manifestava em relação a Varnhagen.
   
Realmente, José Honório Rodrigues fez-se discípulo de Capistrano e de Varnhagen, especialmente do primeiro, a cuja memória dedicou um carinho fronteiriço da adoração. E desse seu gesto podemos tirar um ensinamento exemplar.

A devoção aos mestres tem sido, topicamente, comparada à devoção transpersonal aos pais, que os latinos chamavam pietas, “piedade”. E pensavam que sem ela não poderia haver cidade, estado, convivência, o que vale dizer pátria. “Com os pais” – escreve Julián Marías
   
não se tem que estar de acordo, não se está nunca de acordo. O que se deve ter com eles é concórdia, e esta só nasce da cordialidade. Quando uma e outra faltam, sobrevém a discórdia; então, nada mais se recorda, pretende-se apagar com mão torpe e rancorosa o passado, renega-se dos pais, e tudo isso quer dizer que se perdeu a cordura. E não se esqueça de que a impiedade costuma ser a máscara cínica com que o nada encobre o seu medo ao real. 
   
Senhores acadêmicos,
   
é para mim uma grande honra ser recebido nesta Casa pelo Acadêmico Abgar Renault, esse mineiro ilustre, a quem o nosso Estado e o País devem serviços inestimáveis, especialmente na área da Educação. Poeta dos melhores do nosso tempo e linguista com domínio efetivo de idiomas – o que, paradoxalmente, é coisa rara –, os seus admiradores lamentam, no entanto, que o seu discreto culto ao deus Harpócrates venha restringindo a produção de obras de tão alta qualidade.

Sinto-me também profundamente honrado de que o colar de membro desta Academia me seja aposto por meu amigo Eduardo Portella, colega da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cuja fulgurante carreira de ensaísta pude acompanhar e aplaudir desde os seus começos.

E, agora, para finalizar:
 
Entre os costumes ingleses introduzidos em Portugal pelo casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre, generalizou-se a moda das divisas e motes simbólicos, geralmente expressos em Francês, a Língua que acompanhou o Feudalismo levado pelos normandos à Inglaterra.
 
O rei reservou para si o mote Il me plaîte e com razão, comenta Oliveira Martins, “porque raríssimos viveram mais a seu gosto”. A severa rainha escolheu o lema que foi um programa de vida: Pour bien, “para o bem”. E o filho D. Henrique, a divisa predestinada: Talent de bien faire.

Ao ingressar nesta Casa – e conhecendo as minhas limitações –, senhores acadêmicos, não me proponho proceder sempre com acerto, como o infante que descobriu “novos climas, novos ares”, mas vos prometo adotar, como comportamento, a divisa de seu irmão, o mártir de Alfarrobeira, que se resumia na simples palavra désir. Desejo de acertar – désir de bien faire –, preocupação que tem sido uma constante em minha vida.

4/12/1987