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Castro Alves

MOCIDADE E MORTE

                             E perto avisto o porto
                    Imenso, nebuloso, e sempre noite
                          Chamado – Eternidade!

                                                    Laurindo.

                  Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate.

                                                               Dante.

Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh’alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n’amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.

Mas uma vez responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.

Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher - camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh’alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...

E a mesma vez repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: - impossível!

Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! - brada-me o talento n’alma
E o eco ao longe me repete - avante! -
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glória!
Após - um nome do universo n’alma,
Um nome escrito no Panteon da história.

E a mesma voz repete funerária: -
Teu Panteon - a pedra mortuária!

Morrer - é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nas guia na tormenta:
Condenado - escutar dobres de sino,
- Voz da morte, que a morte lhe lamenta -
Ai! morrer - é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher - no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.

Ver tudo findo... só na lousa um nome,
Que o viandante a perpassar consome.

E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu’inda mesmo flórido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo - que vaga sobre o chão da morte,
Morto - entre os vivos a vagar na terra.

Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: maldito! –

E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida - novo Tântalo -
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O ’stilete de Deus quebra-me a taça.

É que até minha sombra é inexorável,
Morrer! morrer! soluça-me implacável.

Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro - a terra,
Por glória - nada, por amor - a campa.

Adeus! arrasta-me uma voz sombria
Já me foge a razão na noite fria!

                                                                 (Espumas flutuantes)

 

O FANTASMA E A CANÇÃO

Orgulho! desce os olhos dos céus
sobre ti mesmo, e vê como os nomes
mais poderosos vão-se refugiar numa
canção.

                                                           BYRON.

- Quem bate? - “A noite é sombria!”
- Quem bate? - “É rijo o tufão!...
Não ouvis? a ventania
Ladra à lua como um cão.
“ - Quem bate? - “O nome qu’importa?
Chamo-me dor... abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me fome!
Necessidade é o meu nome!”
- Mendigo! podes passar!

“Mulher, se eu falar, prometes
A porta abrir-me?” - Talvez.
- “Olha... Nas cãs deste velho
Verás fanados lauréis
Há no meu crânio enrugado
O fundo sulco traçado
Pela c’roa imperial.
Foragido, errante espectro,
Meu cajado - já foi cetro!
Meus trapos - manto real!”

- Senhor, minha casa é pobre...
Ide bater a um solar!
- “De lá venho... O Rei-fantasma
Baniram do próprio lar.
Nas largas escadarias,
Nas vetustas galerias,
Os pajens e as cortesãs
Cantavam!... Reinava a orgia!...
Festa! Festa! E ninguém via
O Rei coberto de cãs!”

- Fantasma! Aos grandes, que tombam,
É palácio o mausoléu!
- “Silêncio! De longe eu venho...
Também meu túm’lo morreu.
O século - traça que medra
Nos livros feitos de pedra -
Rói o mármore, cruel.
O tempo - Átila terrível
Quebra co’a pata invisível
Sarcófago e capitel.

“Desgraça então para o espectro,
Quer seja Homero ou Solon,
Se, medindo a treva imensa
Vai bater ao Panteon...
O motim - Nero profano -
No ventre da cova insano
Mergulha os dedos cruéis.
Da guerra nos paroxismos
Se abismam mesmo os abismos
E o morto morre outra vez!

’Então, nas sombras infindas,
S’esbarram em confusão
Os fantasmas sem abrigo
Nem no espaço, nem no chão...
As almas angustiadas,
Como águias desaninhadas,
Gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos
As vagas negras dos ventos,
Os ventos do negro mar!

“Bati a todas as portas
Nem uma só me acolheu!...
- “Entra! - : Uma voz argentina
Dentro do lar respondeu.
- “Entra, pois! Sombra exilada,
Entra! O verso - é uma pousada
Aos reis que perdidos vão.
A estrofe - é a púrpura extrema,
Último trono - é o poema!
Último asilo - a Canção!...”

                                                       Bahia, 13 de dezembro de 1869

                                                                (Espumas flutuantes)

 

                 ODE AO DOIS DE JULHO
             (Recitada no teatro de São Paulo)

Era no Dois de Julho. A pugna imensa
Travara-se nos serros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
Neste lençol tão largo, tão extenso,
Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
“Qual dos gigantes morto rolará?!...

Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia!
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dois povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!

Não! Não eram dois povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensangüentado...
Era o porvir — em frente do passado,
A liberdade — em frente à escravidão.
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão!...

No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis!...

..............................................................
..............................................................

Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu — liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...

Eras tu que com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n’amplidão!...

                                                  São Paulo, julho de 1868

                                                       (Espumas flutuantes)

 

          OS ANJOS DA MEIA-NOITE
                       Fotografias

                                I

Quando a insônia, qual lívido vampiro,
Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,
Vela à noite por nós,
E banha-se em suor o travesseiro,
E além geme nas franças do pinheiro
Da brisa a longa voz...

Quando sangrenta a luz no alampadário
Estala, cresce, expira, após ressurge,
Como uma alma a penar;
E canta aos guizos rubros da loucura
A febre — a meretriz da sepultura —
A rir e a soluçar...

Quando tudo vacila e se evapora,
Muda e se anima, vive e se transforma,
Cambaleia e se esvai...
E da sala na mágica penumbra...
Um mundo em trevas rápido se obumbra...
E outro das trevas sai...

......................................................................

Então... nos brancos mantos, que arregaçam
Da meia-noite os Anjos alvos passam
Em longa procissão!
E eu murmuro ao fitá-los assombrado:
São os Anjos de amor de meu passado
Que desfilando vão...

Almas, que um dia no meu peito ardente
Derramastes dos sonhos a semente,
Mulheres, que eu amei!
Anjos louros do céu! virgens serenas!
Madonas, Querubins, ou Madalenas!
Surgi! aparecei!

Vinde, fantasmas! Eu vos amo ainda;
Acorde-se a harmonia à noite infinda
Ao roto bandolim...
................................................................
E no éter, que em notas se perfuma,
As visões s’alteando uma por uma...
Vão desfilando assim!...

 

                  1ª SOMBRA

                      Marieta

Como o gênio da noite, que desata
O véu de rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos... Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata...

O seio virginal, que a mão recata,
Embalde o prende a mão... cresce, flutua...
Sonha a moça ao relento... Além na rua
Preludia um violão na serenata!...

... Furtivos passos morrem no lajedo...
Resvala a escada do balcão discreta...
Matam lábios os beijos em segredo...

Afoga-me os suspiros, Marieta!
Oh surpresa! oh palor! oh pranto! oh medo!
Ai! noites de Romeu e Julieta!...

                    2ª SOMBRA

                       Bárbora

Erguendo o cálix, que o Xerez perfuma,
Loura a trança alastrando-lhe os joelhos,
Dentes níveos em lábios tão vermelhos,
Como boiando em purpurina escuma;

Um dorso de Valquíria... alvo de bruma,
Pequenos pés sob infantis artelhos,
Olhos vivos, tão vivos, como espelhos,
Mas como eles também sem chama alguma;

Garganta de um palor alabastrino,
Que harmonias e músicas respira...
No lábio — um beijo... no beijar — um hino;

Harpa eólia a esperar que o vento a fira,
— Um pedaço de mármore divino...
É o retrato de Bárbora — a Hetaíra.—

                3ª SOMBRA

                      Ester

Vem! no teu peito cálido e brilhante
O nardo oriental melhor transpira!...
Enrola-te na longa caxemira,
Como as Judias moles do Levante, 

Alva a clâmide aos ventos — roçagante...,
Túmido o lábio, onde o saltério gira...
Ó musa de Israel! pega da lira...
Canta os martírios de teu povo errante!

Mas não... brisa da pátria além revoa,
E ao delamber-lhe o braço alabastro,
Falou-lhe de partir... e parte... e voa...

Qual nas algas marinhas desce um astro...
Linda Ester! teu perfil se esvai... s’escoa...
Só me resta um perfume... um canto... um rastro...

                    4ª SOMBRA

                        Fabíola

Como teu riso dói... como na treva
Os lêmures respondem no infinito:
Tens o aspecto do pássaro maldito,
Que em sânie de cadáveres se ceva!

Filha da noite! A ventania leva
Um soluço de amor pungente, aflito...
Fabíola! É teu nome!... Escuta... é um grito,
Que lacerante para os céus s’eleva!...

E tu folgas, Bacante dos amores,
E a orgia, que a mantilha te arregaça,
Enche a noite de horror, de mais horrores...

É sangue, que referve-te na taça!
É sangue, que borrifa-te estas flores!
E este sangue é meu sangue... é meu... Desgraça!

                5ª e 6ª SOMBRAS

                 Cândida e Laura

Como no tanque de um palácio mago,
Dois alvos cisnes na bacia lisa,
Como nas águas, que o barqueiro frisa,
Dois nenúfares sobre o azul do lago,

Como nas hastes em balouço vago
Dois lírios roxos, que acalenta a brisa,
Como um casal de juritis, que pisa
O mesmo ramo no amoroso afago...

Quais dois planetas na cerúlea esfera,
Como os primeiros pâmpanos das vinhas,
Como os renovos nos ramais da hera,

Eu vos vejo passar nas noites minhas,
Crianças, que trazeis-me a primavera...
Crianças, que lembrais-me as andorinhas!...

                   7ª SOMBRA

                        Dulce
Se houvesse ainda talismã bendito,
Que desse ao pântano — a corrente pura,
Musgo — ao rochedo, festa — à sepultura,
Das águias negras — harmonia ao grito...

Se alguém pudesse ao infeliz precito
Dar lugar no banquete da ventura...
E trocar-lhe o velar da insônia escura
No poema dos beijos — infinito...

Certo... serias tu, donzela casta,
Quem me tomasse em meio do Calvário
A cruz de angústias, que o meu ser arrasta!...

Mas se tudo recusa-me o fadário,
Na hora de expirar, ó Dulce, basta
Morrer beijando a cruz de teu rosário!...

                    8ª SOMBRA

                Último Fantasma

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te libras vaporoso...

Baixas do céu num vôo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!...

Onde nos vimos nós?... És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?...

Quem és tu? Quem és tu? — És minha sorte!
És talvez o ideal que est’alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!...

                                                   Santa Isabel, agosto de 1870

                                                        (Espumas flutuantes)

 

          COUP D’ÉTRIER

É preciso partir! Já na calçada
Retinem as esporas do arrieiro;
Da mula a ferradura tacheada
Impaciente chama o cavaleiro;
A espaços ensaiando uma toada
Sincha as bestas o lépido tropeiro...
Soa a celeuma alegre da partida,
O pajem firma o loro e empunha a brida.

Já do largo deserto o sopro quente
Mergulha perfumado em meus cabelos.
Ouço das selvas a canção candente
Segredando-me incógnitos anelos.
A voz dos servos pitoresca, ardente
Fala de amores férvidos, singelos...
Adeus! Na folha rota de meu fado
Traço ainda um — adeus — ao meu passado.

Um adeus! E depois morra no olvido
Minha história de luto e de martírio,
As horas que eu vaguei louco, perdido
Das cidades no tétrico delírio;
Onde em pântano turvo, apodrecido
D’íntimas flores não rebenta um lírio...
E no drama das noites do prostíbulo
É mártir — a alma... a saturnal — patíbulo!

Onde o gênio sucumbe na asfixia
Em meio à turba alvar e zombadora;
Onde Musset suicida-se na orgia,
E Chatterton na fome aterradora!
Onde, à luz de uma lâmpada sombria,
O Anjo da Guarda ajoelhado chora,
Enquanto a cortesã lhe apanha os prantos
P’ra realce dos lúbricos encantos!...

Abre-me o seio, ó Madre Natureza!
Regaços da floresta americana,
Acalenta-me a mádida tristeza
Que da vaga das turbas espadana.
Troca dest’alma a fria morbideza
Nessa ubérrima seiva soberana!...
O Pródigo... do lar procura o trilho...
Natureza! Eu voltei... e eu sou teu filho!

Novo alento selvagem, grandioso
Trema nas cordas desta frouxa lira.
Dá-me um plectro bizarro e majestoso,
Alto como os ramais da sicupira.
Cante meu gênio o dédalo assombroso
Da floresta que ruge e que suspira,
Onde a víbora lambe a parasita...
E a onça fula o dorso pardo agita!

Onde em cálix de flor imaginária
A cobra de coral rola no orvalho,
E o vento leva a um tempo o canto vário
D’araponga e da serpe de chocalho...
Onde a soidão é o magno estradivário...
Onde há músc’los em fúria em cada galho,
E as raízes se torcem quais serpentes...
E os monstros jazem no ervaçal dormentes.

E se eu devo expirar... se a fibra morta
Reviver já não pode a tanto alento...
Companheiro! Uma cruz na selva corta
E planta-a no meu tosco monumento!...
Da chapada nos ermos... (o qu’importa?)
Melhor o inverno chora... e geme o vento.
E Deus para o poeta o céu desata
Semeado de lágrimas de prata!...

                                         Curralinho, 1 de junho de 1870

                                               (Espumas flutuantes)

 

          A CRUZ NA ESTRADA

                                             Invideo quia quiescunt.

                                                   Lutero, Worms.

                                    Tu que passas, descobre-te! Ali dorme
                                                O forte que morreu.

                                                                            A. Herculano (trad.)

Caminheiro que passas pela estrada,
Seguindo pelo rumo do sertão,
Quando vires a cruz abandonada,
Deixa-a em paz dormir na solidão.

Que vale o ramo do alecrim cheiroso
Que lhe atiras nos braços ao passar?
Vais espantar o bando buliçoso
Das borboletas, que lá vão pousar.

É de um escravo humilde sepultura,
Foi-lhe a vida o velar de insônia atroz.
Deixa-o dormir no leito de verdura,
Que o Senhor dentre as selvas lhe compôs.

Não precisa de ti. O gaturamo
Geme, por ele, à tarde, no sertão.
E a juriti, do taquaral no ramo,
Povoa, soluçando, a solidão.

Dentre os braços da cruz, a parasita,
Num braço de flores, se prendeu.
Chora orvalhos a grama, que palpita;
Lhe acende o vaga-lume o facho seu.

Quando, à noite, o silêncio habita as matas,
A sepultura fala a sós com Deus.
Prende-se a voz na boca das cascatas,
E as asas de ouro aos astros lá nos céus.

Caminheiro! do escravo desgraçado
O sono agora mesmo começou!
Não lhe toques no leito de noivado,
Há pouco a liberdade o desposou

                                       Recife, 25 de junho de 1865

                                                (Os escravos)

 

                 O NAVIO NEGREIRO

                    Tragédia no mar

                               I

’Stamos em pleno mar... Doido no espaço 
Brinca o luar — dourada borboleta; 
E as vagas após ele correm... cansam 
Como turba de infantes inquieta. 

’Stamos em pleno mar... Do firmamento 
Os astros saltam como espumas de ouro... 
O mar em troca acende as ardentias, 
— Constelações do líquido tesouro... 

’Stamos em pleno mar... Dois infinitos 
Ali se estreitam num abraço insano, 
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... 
Qual dos dois é o céu? qual o oceano?... 

’Stamos em pleno mar... Abrindo as velas 
Ao quente arfar das virações marinhas, 
Veleiro brigue corre à flor dos mares, 
Como roçam na vaga as andorinhas... 

Donde vem? onde vai?  Das naus errantes 
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? 
Neste saara os corcéis o pó levantam,  
Galopam, voam, mas não deixam traço. 

Bem feliz quem ali pode nest’hora 
Sentir deste painel a majestade! 
Embaixo — o mar em cima — o firmamento... 
E no mar e no céu — a imensidade! 

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! 
Que música suave ao longe soa! 
Meu Deus! como é sublime um canto ardente 
Pelas vagas sem fim boiando à toa! 

Homens do mar! ó rudes marinheiros, 
Tostados pelo sol dos quatro mundos! 
Crianças que a procela acalentara 
No berço destes pélagos profundos! 

Esperai! esperai! deixai que eu beba 
Esta selvagem, livre poesia 
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, 
E o vento, que nas cordas assobia... 
.......................................................... 

Por que foges assim, barco ligeiro? 
Por que foges do pávido poeta? 
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira 
Que semelha no mar — doido cometa! 

Albatroz!  Albatroz! águia do oceano, 
Tu que dormes das nuvens entre as gazas, 
Sacode as penas, Leviatã do espaço, 
Albatroz!  Albatroz! dá-me estas asas. 

                           II

Que importa do nauta o berço, 
Donde é filho, qual seu lar? 
Ama a cadência do verso 
Que lhe ensina o velho mar! 
Cantai! que a morte é divina! 
Resvala o brigue à bolina 
Como golfinho veloz. 
Presa ao mastro da mezena 
Saudosa bandeira acena 
Às vagas que deixa após. 

Do Espanhol as cantilenas 
Requebradas de langor, 
Lembram as moças morenas, 
As andaluzas em flor! 
Da Itália o filho indolente 
Canta Veneza dormente, 
— Terra de amor e traição, 
Ou do golfo no regaço 
Relembra os versos de Tasso, 
Junto às lavas do vulcão! 

O Inglês — marinheiro frio, 
Que ao nascer no mar se achou, 
(Porque a Inglaterra é um navio, 
Que Deus na Mancha ancorou), 
Rijo entoa pátrias glórias, 
Lembrando, orgulhoso, histórias 
De Nelson e de Aboukir...
O Francês — predestinado — 
Canta os louros do passado 
E os loureiros do porvir! 

Os marinheiros Helenos, 
Que a vaga iônia criou, 
Belos piratas morenos 
Do mar que Ulisses cortou, 
Homens que Fídias talhara, 
Vão cantando em noite clara 
Versos que Homero gemeu ... 
Nautas de todas as plagas, 
Vós sabeis achar nas vagas 
As melodias do céu!...

                               III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! 
Desce mais... inda mais... não pode olhar humano 
Como o teu mergulhar no brigue voador! 
Mas que vejo eu aí... Que quadro d’amarguras! 
Que canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... 
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror! 

                            IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho  
Que das luzernas avermelha o brilho. 
       Em sangue a se banhar. 
Tinir de ferros... estalar de açoite...  
Legiões de homens negros como a noite, 
       Horrendos a dançar... 

Negras mulheres, suspendendo às tetas  
Magras crianças, cujas bocas pretas  
       Rega o sangue das mães:  
Outras moças, mas nuas e espantadas,  
No turbilhão de espectros arrastadas, 
       Em ânsia e mágoa vãs! 

E ri-se a orquestra irônica, estridente... 
E da ronda fantástica a serpente  
       Faz doidas espirais ... 
Se o velho arqueja, se no chão resvala,  
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
       E voam mais e mais... 

Presa nos elos de uma só cadeia,  
A multidão faminta cambaleia, 
      E chora e dança ali! 
Um de raiva delira, outro enlouquece,  
Outro, que de martírios embrutece, 
      Cantando, geme e ri! 

No entanto o capitão manda a manobra, 
E após fitando o céu que se desdobra, 
       Tão puro sobre o mar, 
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
“Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
       Fazei-os mais dançar!...”

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . 
E da ronda fantástica a serpente 
          Faz doidas espirais... 
Qual um sonho dantesco as sombras voam!... 
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! 
           E ri-se Satanás!...  

                     V

Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus! 
Se é loucura... se é verdade 
Tanto horror perante os céus?! 
Ó mar, por que não apagas 
Co’a esponja de tuas vagas 
De teu manto este borrão?... 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! 

Quem são estes desgraçados 
Que não encontram em vós 
Mais que o rir calmo da turba 
Que excita a fúria do algoz? 
Quem são?   Se a estrela se cala, 
Se a vaga à pressa resvala 
Como um cúmplice fugaz, 
Perante a noite confusa... 
Dize-o tu, severa Musa, 
Musa libérrima, audaz!... 

São os filhos do deserto, 
Onde a terra esposa a luz. 
Onde vive em campo aberto 
A tribo dos homens nus... 
São os guerreiros ousados 
Que com os tigres mosqueados 
Combatem na solidão. 
Ontem simples, fortes, bravos. 
Hoje míseros escravos, 
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas, 
Como Agar o foi também. 
Que sedentas, alquebradas, 
De longe... bem longe vêm... 
Trazendo com tíbios passos, 
Filhos e algemas nos braços, 
N’alma — lágrimas e fel... 
Como Agar sofrendo tanto, 
Que nem o leite de pranto 
Têm que dar para Ismael. 

Lá nas areias infindas, 
Das palmeiras no país, 
Nasceram crianças lindas, 
Viveram moças gentis... 
Passa um dia a caravana, 
Quando a virgem na cabana 
Cisma da noite nos véus ... 
... Adeus, ó choça do monte, 
... Adeus, palmeiras da fonte!... 
... Adeus, amores... adeus!... 

Depois, o areal extenso... 
Depois, o oceano de pó. 
Depois no horizonte imenso 
Desertos... desertos só... 
E a fome, o cansaço, a sede... 
Ai! quanto infeliz que cede, 
E cai p’ra não mais s’erguer!... 
Vaga um lugar na cadeia, 
Mas o chacal sobre a areia 
Acha um corpo que roer. 

Ontem a Serra Leoa, 
A guerra, a caça ao leão, 
O sono dormido à toa 
Sob as tendas d’amplidão! 
Hoje... o porão negro, fundo, 
Infecto, apertado, imundo, 
Tendo a peste por jaguar... 
E o sono sempre cortado 
Pelo arranco de um finado, 
E o baque de um corpo ao mar... 

Ontem plena liberdade, 
A vontade por poder... 
Hoje... cúm’lo de maldade, 
Nem são livres p’ra morrer. . 
Prende-os a mesma corrente 
— Férrea, lúgubre serpente — 
Nas roscas da escravidão. 
E assim zombando da morte, 
Dança a lúgubre coorte 
Ao som do açoite... Irrisão!... 

Senhor Deus dos desgraçados! 
Dizei-me vós, Senhor Deus, 
Se eu deliro... ou se é verdade 
Tanto horror perante os céus?!... 
Ó mar, por que não apagas 
Co’a esponja de tuas vagas 
Do teu manto este borrão? 
Astros! noites! tempestades! 
Rolai das imensidades! 
Varrei os mares, tufão! ... 

                    VI

E existe um povo que a bandeira empresta 
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!... 
E deixa-a transformar-se nessa festa 
Em manto impuro de bacante fria!... 
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, 
Que impudente na gávea tripudia? 
Silêncio.  Musa... chora, e chora tanto 
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ... 

Auriverde pendão de minha terra, 
Que a brisa do Brasil beija e balança, 
Estandarte que a luz do sol encerra 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu que, da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem roto na batalha, 
Que servires a um povo de mortalha!... 

Fatalidade atroz que a mente esmaga! 
Extingue nesta hora o brigue imundo 
O trilho que Colombo abriu na vaga, 
Como um íris no pélago profundo! 
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga 
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! 
Andrada! arranca esse pendão dos ares! 
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

                                                São Paulo, 18 de abril de 1868

                                                           (Os escravos)

 

                VOZES D’ÁFRICA

Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...

Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé! ...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...

O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.

Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.

Por tenda tem os cimos do Himalaia...
O Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...

A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã!...

Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c’roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doido amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.

..................................................

Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias desgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...

E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!...”

Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco Albornoz...”

Nem veem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.

De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim

.......................................................

Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!

.....................................................

Foi depois do dilúvio... um viandante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cã!... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá...”

Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o nômade faminto corta as plagas
No rápido corcel.

Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...

Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...

Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.

Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p’ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
Escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!...

                                                  São Paulo, 11 de junho de 1868

                                                            (Os escravos)

 

         SAUDAÇÃO A PALAMARES

Nos altos cerros erguido 
Ninho d’águias atrevido, 
Salve! - País do bandido! 
Salve! - Pátria do jaguar! 
Verde serra onde os palmares 
- Como indianos cocares - 
No azul dos colúmbios ares 
Desfraldam-se em mole arfar! ...

Salve! Região dos valentes 
Onde os ecos estridentes 
Mandam aos plainos trementes 
Os gritos do caçador! 
E ao longe os latidos soam... 
E as trompas da caça atroam... 
E os corvos negros revoam 
Sobre o campo abrasador! ...

Palmares! a ti meu grito! 
A ti, barca de granito, 
Que no soçobro infinito 
Abriste a vela ao trovão. 
E provocaste a rajada, 
Solta a flâmula agitada 
Aos uivos da marujada 
Nas ondas da escravidão!

De bravos soberbo estádio, 
Das liberdades paládio, 
Pegaste o punho do gládio, 
E olhaste rindo p’ra o val: 
Descei de cada horizonte... 
Senhores! Eis-me de fronte! 
E riste... O riso de um monte! 
E a ironia... de um chacal!...

Cantem Eunucos devassos 
Dos reis os marmóreos paços; 
E beijem os férreos laços, 
Que não ousam sacudir... 
Eu canto a beleza tua, 
Caçadora seminua!... 
Em cuja perna flutua 
Ruiva a pele de um tapir.

Crioula! o teu seio escuro 
Nunca deste ao beijo impuro! 
Luzidio, firme, duro, 
Guardaste p’ra um nobre amor. 
Negra Diana selvagem, 
Que escutas sob a ramagem 
As vozes - que traz a aragem 
Do teu rijo caçador! ...

Salve, Amazona guerreira! 
Que nas rochas da clareira, 
- Aos urros da cachoeira - 
Sabes bater e lutar... 
Salve! - nos cerros erguido - 
Ninho, onde em sono atrevido, 
Dorme o condor... e o bandido!... 
A liberdade... e o jaguar! 
                                              Fazenda Santa Isabel, agosto de 1870

                                                            (Os escravos)

 

A QUEIMADA

Meu nobre perdigueiro! vem comigo.
Vamos a sós, meu corajoso amigo,
     Pelos ermos vagar!
Vamos lá dos gerais, que o vento açoita,
Dos verdes capinais n’agreste moita
     A perdiz levantar!... 

Mas não!... Pousa a cabeça em meus joelhos...
Aqui, meu cão!... Já de listrões vermelhos
     O céu se iluminou.
Eis súbito da barra do ocidente,
Doido, rubro, veloz, incandescente,
     O incêndio que acordou! 

A floresta rugindo as comas curva...
As asas foscas o gavião recurva,
     Espantado a gritar.
O estampido estupendo das queimadas
Se enrola de quebradas em quebradas,
     Galopando no ar. 

E a chama lavra qual jibóia informe,
Que, no espaço vibrando a cauda enorme,
     Ferra os dentes no chão...
Nas rubras roscas estortega as matas...,
Que espadanam o sangue das cascatas
     Do roto coração!... 

O incêndio — leão ruivo, ensangüentado,
A juba, a crina atira desgrenhado
     Aos pampeiros dos céus!...
Travou-se o pugilato... e o cedro tomba...
Queimado..., retorcendo na hecatomba
     Os braços para Deus. 

A queimada! A queimada é uma fornalha!
A irara — pula; o cascavel — chocalha...
     Raiva, espuma o tapir!
...E às vezes sobre o cume de um rochedo
A corça e o tigre — náufragos do medo —
     Vão trêmulos se unir!

Então passa-se ali um drama augusto...
N’último ramo do pau-d’arco adusto
     O jaguar se abrigou...
Mas rubro é o céu... Recresce o fogo em mares...
E após... tombam as selvas seculares...
     E tudo se acabou!... 

                                                   (A Cachoeira de Paulo Afonso)