Senhor Carlos Chagas Filho,
Aos numerosos títulos e honrarias universitárias e acadêmicas que transpõem já a casa da primeira centena, conferidas no Brasil e no exterior, acrescentais hoje a de sócio efetivo da Academia Brasileira de Letras, como titular da Cadeira 9, sucessor de Marques Rebelo, grande romancista e inesquecível companheiro. Cadeira cativa de cariocas, insinuastes em vosso belo discurso de posse, que acabais de proferir. De fato, patrono, fundador e segundo ocupante foram todos cariocas, nascidos na corte imperial ou na capital federal da Velha República, como vós, carioca da gema, que vindes receber as insígnias acadêmicas, por coincidência, no dia de São Jorge, cavaleiro andante e vencedor de dragões, um dos santos mais queridos da cidade.
Carlos Magalhães de Azeredo, o fundador, que escolheu para seu patrono o Visconde de Araguaia, Domingos José Gonçalves de Magalhães, permaneceu durante 66 anos nessa Poltrona azul, em que sentais. Presença algo invisível, sobretudo em tempos mais recentes, pois o embaixador e poeta, amigo de Machado de Assis na mocidade, viveu em Roma a maior parte da sua existência de nonagenário. Sucedeu-lhe Marques Rebelo, presença de todos os dias, atuante, como acadêmico e secretário-geral, vivo, bem vivo, como escritor e como amigo.
Entre Magalhães de Azeredo e Marques Rebelo há como que um abismo de duas gerações, uma de homens de letras contemplativos e a outra de escritores militantes, que surgiram no Brasil depois do Modernismo. Na sua aparência frágil e na sua atitude brincalhona, escondia-se em Marques Rebelo um temperamento forte que impôs a si mesmo uma severa disciplina de trabalho. De vida privada modesta e limpa, dedicado inteiramente ao seu oficio, soube dignificar como poucos a profissão de escritor, e em tudo e por tudo incorruptível, um homem e um artista em plenitude total. Era dos que se entregavam de corpo e alma a tudo que fazia, nas crônicas, nos contos, nos romances, nas histórias de Literatura infantil. Mestre da arte de ficção, descreveu o Rio de Janeiro do século XX com a mesma fidelidade e a mesma verve com que o fizeram Manuel Antônio de Almeida no século XIX, no tempo do rei. Era, em suma, como dissestes, um dos maiores intérpretes da vida carioca, ao lado de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto.
Desde que adquiriu status de cidade, nasceu o romance urbano no Rio de Janeiro, com o fluminense Joaquim Manuel de Macedo e o cearense José de Alencar. Vieram depois Aluísio Azevedo, maranhense, que denunciou a miséria do submundo dos cortiços; Raul Pompeia, fluminense, com um testemunho pungente, libelo não só contra o ensino arcaico, a palmatória, como contra a própria discriminação social. O Rio de Janeiro era o centro vital do País. Daqui tudo repercutia para os Estados. Alfredo de Taunay, que fora um dos precursores da novela sertaneja, deixou-nos um romance-depoimento sobre a crise financeira dos primeiros anos da República. Do mesmo período são os romances de Coelho Neto, que focalizam a crise política e a boêmia literária. O derradeiro romance carioca da República Velha é de outro maranhense, Graça Aranha. A ambiência das pensões de estudantes, a pobre vida noturna, o Catete e a Lapa dos anos 30 impregnaram os contos e novelas de dois paulistas: Ribeiro Couto e Eneias Ferraz, como do pernambucano Théo Filho.
Da Cidade de São Sebastião e de todos os brasileiros, inquieta, trepidante, no seu anárquico crescimento, há toda uma gama de autores e tendências, do mundanismo de Afrânio Peixoto ao populismo de Adelino Magalhães, que vai desaguar no processo da decadência da burguesia, que Gastão Cruls começou e tem o seu ponto culminante na saga de Otávio de Faria, intitulada aliás Tragédia Burguesa. São estes apenas alguns exemplos, representativos, mas sem a intenção de traçar um panorama, e sim para mostrar que a Literatura, sensível às mundanças sociais, acompanha a vida citadina, sem solução de continuidade, na obra dos romancistas que vieram depois: Miécio Tati, Carlos Heitor Cony, Rubem Fonseca.
Desse Rio de Janeiro em constante transformação, que Marques Rebelo fixou em seus livros, sois personagem de primeira grandeza, Sr. Carlos Chagas Filho, como professor pesquisador e cientista. Nascido a 12 de setembro de 1910, em Botafogo, criado entre Voluntários da Pátria e Paissandu, ruas que evocam datas guerreiras, tão em desacordo com a pacatez da cidade dos últimos anos da belle époque, vossa formação teve como modelo o civilismo paterno, ruibarbosiano, que era o da intelligentsia da época, sentimento que se estratificou nos bancos do colégio das irmãs Resende, na Rua Bambina, professoras experientes e atualizadas em novos métodos pedagógicos. A única sombra da vossa infância foi talvez a da gripe espanhola, no final da guerra de 1914-1918, as ruas desertas, os comentários ouvidos em casa, os enterros em massa, os telegramas da Europa, o impacto da revolução russa, uma fixação que se projetaria mais tarde: o sacrifício de Péguy, mal começara a guerra, Péguy que é ainda hoje para vós um símbolo de patriotismo, desprendimento e coragem.
Das grandes influências que recebestes avulta sem dúvida a de vosso pai, Carlos Ribeiro Justiniano Chagas, famoso aos 29 anos, pela descoberta e identificação do Trypanossoma cruzi. Ficou na família a legenda do jovem sábio, isolado num vagão de estrada de ferro, onde havia improvisado um laboratório de campanha, no fim da linha da Central do Brasil, na boca do Sertão Mineiro, para o combate e o extermínio da doença que teve depois o seu nome glorioso, doença de Chagas. Essa legenda era forte demais, e iria conduzir ao campo da medicina experimental, tanto a vosso irmão Evandro, cinco anos mais velho, como a vós, apesar de seduzido por leituras propiciadas por vosso tio Hélio Lobo, esperançoso de desviar o vosso caminho para o campo das Letras.
Já éreis estudante de Medicina, e vosso tio não parecia desistir de espicaçar os pendores literários do sobrinho, sempre atento à Poesia e ao Romance. Vossa aproximação com Ribeiro Couto figura entre os episódios mais curiosos dessas investidas. Chamou-vos o tio para conhecer o poeta de O Jardim das Confidências. Foi um desastre. Acorrestes sem demora, e, ainda no calor do entusiasmo e da corrida, uma sensação estranha vos invadiu. Recorro às vossas próprias anotações autobiográficas.
Gelado, encontro um rapaz alto, forte, lentes de miopia, cabelo raspado e um olhar ao mesmo tempo irônico e bom. Hélio me diz: este é o Ribeiro Couto de que você tanto fala e a quem tanto admira. Durante meia hora tentei dialogar com Ribeiro Conto, mas a vergonha que sentia ao seu lado era de tal ordem, que nada me fez tomar a palavra.
Fiquei mudo, estatelado!
A casa da Rua Paissandu não era de ricos, mas à hora do almoço ou do jantar a mesa estava sempre cheia de amigos dos pais e dos filhos. O lar do Dr. Chagas e D. Íris, mineiros de pura cepa, continuava velha tradição dos troncos familiares, de que provindes. Aos 10 anos, menino metropolitano, iríeis surpreendê-la, deslumbrado, na primeira vez que deixastes a cidade grande, durante as férias de fim de ano, e fostes conhecer a vida de uma fazenda, em Tartária, na casa de vossos tios Henrique e Maria José Ribeiro de Castro. Lá, todos sentavam à mesa, os fazendeiros e os empregados. Juntos repartiam o mesmo pão e saboreavam o mesmo feijão de tropeiro.
É ainda de vossos apontamentos autobiográficos que vou tirando essas lembranças do leitor fiel de Proust, que sois, na reconquista do vosso tempo perdido, com a confissão do que representaram para vosso destino essas férias em Tartária: a revelação da fé. “Foi ali certamente que adquiri, no rezar noturno do terço, a fé espiritual ancorada no meu coração, que, resistindo às agressões do racionalismo científico, há de me conduzir à noite da grande esperança.”
Desse período de formação, católica, liberal e pequeno-burguesa, na encruzilhada que se vos deparou, na adolescência, seguir a carreira paterna era uma decisão lógica, quase imperativa. Num tempo em que não existiam Faculdades de Letras, além do mais, a opção tinha que ser Medicina, Direito ou Engenharia. Para vós, nos primeiros anos de preparatórios, foram decisivos os sucessos de Evandro, estudante excepcional e o exemplo de vosso pai, que se tornou ainda mais edificante, no ano terrível de 1918, à frente da luta contra a gripe espanhola. Já agora pensáveis no casarão cor-de-rosa da Praia Vermelha, que se tornaria, durante perto de 50 anos, prolongamento de vosso lar, desde o primeiro ano do curso médico (1926) até a transferência definitiva (1974) do Instituto de Biofísica para o novo edifício da Ilha do Fundão, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A vida de vosso pai, objeto de um de vossos livros em elaboração, será, decerto, um dos pontos altos de vossa opulenta bibliografia médica e científica, na qual se incorporam até agora dois substanciosos volumes de ensaios: Homens e Coisas da Ciência (1956) e O Minuto que Vem (1972).
Com a ciência “dentro da pele” – como escrevestes numa das páginas mais densas de vosso livro O Minuto que Vem –, nem por isso, ao longo dos anos, arrefeceu o vosso entusiasmo pela Literatura, quer nos entreveros juvenis do Café Lamas, em seu período de esplendor, quer nos centros de intercâmbio universitário. Eram estudantes de Medicina de vosso convívio Valter Oswaldo Cruz, Emanuel Dias, Almir de Castro, Tito Leme Lopes... Tito Eneias Leme Lopes, que conheci nos verdes anos em Guaratinguetá, companheiro de todas as horas, sempre alegre, riso fácil, prestativo, lia tudo e sabia de tudo. Morreu aos 43 anos, quando alçava o grande voo no magistério. Foi ele o primeiro traço de união, quem primeiro me falou em Carlos Chagas Filho, Carlinhos, – Tito, que relembro neste instante, como um arcanjo a velar por nossas vidas.
Mas voltemos ao burburinho das mesas do Café Lamas, assembleia em sessão permanente de dia e de noite, as portas não se fechavam. Os temas variavam do futebol ao Cinema, futebol amador e Cinema em preto e branco, os jogos sensacionais entre paulistas e cariocas e os filmes de Greta Garbo e Marlene Dietrich, deusas inacessíveis, que se confundiam com as beldades locais, com chamegos platônicos e profanos, domingueiras no Fluminense, namoros de bairro, coristas do Recreio, divas de escolas de dança e arredores. No Lamas, ao tempo do café sentado, ah! aqueles tempos que não voltam mais!, arquitetavam-se soluções extraordinárias para salvar o País. Por 600 réis a média com torrada canoa, a noite estava ganha, com evocações cívicas e eróticas.
Estudantes de Medicina e de Direito discutiam ainda Literatura, Freud, Modernismo, Romance do Nordeste, Fascismo e Comunismo. Estudantes de Direito, vossos amigos, mostravam-se preocupados com a tão falada ‘realidade brasileira’, defendiam fórmulas maquiavélicas e ditatoriais: Otávio de Faria e Américo Jacobina Lacombe, que hoje pertencem à nossa grei; San Tiago Dantas e Thiers Martins Moreira, que desejaram a Academia, e teriam sido dos nossos, mas agora, como no poema de Bandeira,
– Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente...
O fascínio da vida literária é, sem dúvida, um dos traços definidores da vossa inquieta personalidade. É que sois a antítese do “homem tranquilo”, entrevisto num dos vossos ensaios: “[...] aquele que perdeu a consciência do que é a vida, aquele que é a expressão de um egoísmo inadmissível ou simplesmente alguém que não se comunica com o mundo em que vive.”
Não resisto à tentação de continuar o período, na reflexão que fazeis em torno das responsabilidades da ciência na hora presente, quando considerais as angústias, desconfianças e incertezas do nosso tempo, num diálogo com Aldous Huxley, com T.S. Eliot ou com Georges Bernanos.
Muitos de nossos contemporâneos, intelectuais ou não, receiam que ciência e técnica passem a ser elementos de defesa de privilégios de certos grupos sociais, econômicos e políticos, de um “sistema”, de um “estabelecimento”, e que serão utilizados pelo poder contra o livre desdobramento da personalidade humana, como o haviam previsto há quase meio século vários pensadores, entre os quais Aldous Huxley. O homem de hoje, consciente ou subconscientemente, repete, como um refrão aterrador, o pensamento maldito expresso no verso de T. S. Eliot – “onde está a vida que perdemos?!” –, no qual o poeta reproduz a angústia que focaliza Bernanos, quando o pároco de Torcy diz ao jovem que o procura: “– De que servirá fabricar a própria vida, se perdeste o sentido?!”.
O sentido da vida – eis a razão de vosso porfiado combate pelo humanismo científico. Nada mais eloquente para caracterizar o trabalho em que vos empenhais com tenacidade e destemor, que outro diálogo, desta feita entre vós e uma das maiores expressões da Poesia contemporânea, Giuseppe Ungaretti. O trabalho de um cientista é o mesmo de um artista, de um pintor, de um crítico, poeta ou dramaturgo. Foi o que ouvistes de Ungaretti, depois de uma longa visita ao vosso laboratório de Biofísica. Pouco impressionado com a riqueza e complexidade do equipamento, interessando-se apenas pelo mecanismo da criação científica, ao terminar a visita, a conclusão do poeta foi a seguinte: criava ele a poesia do mesmo modo que um cientista realizava as suas experiências.
* * *
Vosso caminho seguiu assim um rumo natural, sob a orientação não apenas de vosso pai, mas dos remanescentes da grande geração de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, que João Batista de Lacerda batizou de “nobres proletários” da ciência. Eram homens extraordinários, desses que se entregam a um ideal “dando a vida até morrer”, desprendidos, indiferentes ao desconforto, desprestígio e permanente falta de verbas, males crônicos de que ainda não nos libertamos, além dos vencimentos irrisórios, outro mal não de todo sanado, nem mesmo com o advento do benefício da dedicação integral. A partir do segundo ano médico, a conselho de vosso pai, começastes a trabalhar em Manguinhos. Ao fim do curso, uma indicação final e irrecusável: um ano de estágio no interior do Brasil, em Lassance, cidadezinha perdida nos confins de Minas Gerais, imortalizada pela descoberta do inseto transmissor da doença de Chagas. Cumpristes esse noviciado com humildade e inexcedível devotamento.
Vossa formação profissional em Manguinhos fora das mais completas: em Bacteriologia, com Costa Cruz; em Fisiologia, com Miguel Osório de Almeida; em Química com José Carneiro Filipe. Mais tarde, o encontro com Roquette-Pinto, um dos maiores cientistas da nossa época, e também homem de extrema simplicidade, ensinou-vos, como a todos os moços que dele se aproximavam, a razão do lema da sua vida: “Crer e agir; não agir sem crer; crendo, não deixar de agir.” Assimilastes a lição e jamais a abandonastes em vosso labor, convicto, como Roquette, de que, em meio à conturbação do mundo contemporâneo, só uma força é capaz de assegurar a ordem pública: “É garantir a mais ampla, absoluta e definitiva liberdade espiritual.”
O retrato do grande brasileiro que se chamou Edgar Roquette-Pinto é uma das páginas mais vigorosas de vosso livro, Homens e Coisas da Ciência.
Fostes o melhor aluno da turma de 1931 – pela média mais alta em todos os anos detentor do Prêmio Berchon D’Essarts – e, depois do estágio em Lassance (1932), assistente de Patologia em 1933, Doutor em Medicina em 1934, Livre-docente de Biofísica em 1934, Catedrático dessa mesma Disciplina em 1937, Doutor em Ciências pela Universidade de Paris em 1946 e Doutor Honoris Causa pela mesma Universidade em 1954. Em tão breve espaço de tempo, apurastes vosso tirocínio de professor e pesquisador. Revelou-se então o mestre, que assumia posição de vanguarda, na transfiguração do acanhado e obsoleto laboratório de Física Biológica da antiga Faculdade Nacional de Medicina no moderno Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de reputação internacional. Honra do ensino universitário brasileiro, se não recebeu, de início, todo o favor que merecia do poder público, esse instituto foi impulsionado com a ajuda eficaz e silenciosa de Guilherme Guinle, grande filantropo, avesso à publicidade, a quem o Brasil tanto ficou a dever.
Vosso segredo como professor, Sr. Carlos Chagas Filho, no depoimento unânime de vossos pares, consiste na vossa capacidade de selecionar os melhores alunos, preparando-os para o futuro, estimulando o trabalho de equipe, encaminhando bolsas de estudos para o aperfeiçoamento no exterior. Foi o que apontou Pedro Nava, ao receber-vos na Academia Nacional de Medicina, em 1959. Àquele tempo, dos vossos 25 assistentes, oito eram professores titulares de várias escolas superiores; onze, membros efetivos da Academia Brasileira de Ciências. Nava falou então ex-cathedra, luminar da Ciência Médica e luminar da Arte Literária, ao assinalar o espírito pioneiro do Instituto de Biofísica, com o introduzir no Brasil as principais técnicas modernas aplicadas aos estudos biológicos: as técnicas da eletroforese, da cromatografia, da super- centrifugação analítica, da microscopia eletrônica, da autorradiografia, da microrradiografia, as técnicas de utilização de isótopos radioativos e as de registro elétrico da atividade celular.
Os experimentos que vos deram renome internacional – como o da eletrogênese no órgão elétrico do Electrophorus electricus ou o trabalho memorável sobre os mecanismos de fixação do curare – nasceram e se desenvolveram no Instituto de Biofísica, pioneiro não só pela introdução de técnicas eletrofisiológicas, como de sua complementação histológica, bioquímica e farmacológica. Daí a sua projeção dentro e fora do Brasil, atraindo pesquisadores dos Estados e cientistas de todo o mundo, e fazendo prosseguir em universidades europeias e norte-americanas, estudos que tiveram em vós o seu principal iniciador.
A participação em conferências, simpósios e cursos internacionais foi consequência natural de vosso magistério, coexistindo assim o homem de ciência e o homem de ação. Por de todo inviável um resumo aproximativo dessa atividade multiforme, é de justiça ressaltar pelo menos a importância que representou para o desenvolvimento da ciência no Brasil a vossa missão como embaixador na Unesco, nos anos de 1964 a 1969. Os números falam mais do que as palavras. Com um orçamento anual de 37 milhões de dólares, aumentastes de modo substancial a aplicação dos recursos distribuídos por essa organização ao nosso País. De 236 mil em 1966 as dotações pularam para 442 mil em 1967, para um milhão em 1968, para um milhão e 90 mil dólares (números redondos) em 1969.
Essas cifras são de fato impressionantes na escala estatística, mas representam sobretudo o resultado de uma das mais renhidas batalhas diplomáticas a serviço da ciência, no sentido de impedir que os recursos para as pesquisas não se confinem nos países desenvolvidos, tal como dissestes na Conferência de Estocolmo, em palavras de larga repercussão.
A necessidade de estimular a pesquisa em países em desenvolvimento não pode ser subestimada, mesmo quando consideramos as dificuldades financeiras a serem vencidas. É a pesquisa a alavanca principal do desenvolvimento social e econômico dos países subdesenvolvidos. A ideia superada de que a pesquisa básica deve ser um privilégio dos países desenvolvidos traz como resultado o aprofundamento cada vez maior do fosso que separa os países desenvolvidos dos países subdesenvolvidos.
Entre os problemas do presente, que estão a desafiar a humanidade, pondo em xeque até mesmo a sobrevivência do homem – a poluição, o desflorestamento, a utilização irracional dos recursos naturais, o esgotamento das reservas de água, a perturbação do ciclo de oxigênio –, o mais grave de todos, porque de ordem estritamente política, foi denunciado por vós naquele conclave. É o que se coloca, como na fábula de La Fontaine, na supremacia dos grandes, no poder hegemônico das superpotências. Numa palavra, a solução desses problemas muitas vezes contraria os interesses dos países desenvolvidos, no que toca à sua expansão econômica.
Já o disse René Maheu, citado por vós, num dos ensaios de O Minuto que Vem: “O desenvolvimento só poderá ser alcançado quando a ciência, ao invés de magia importada, tornar-se o costume de um povo.”
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Senhores acadêmicos,
Carlos Chagas Filho é recebido nesta noite de gala como uma das “superioridades” ou “notabilidades”, propostas por Joaquim Nabuco, no sentido de coroar o quadro dos acadêmicos com expoentes de vários setores públicos e profissionais: Marinha, Exército, Clero, Artes. É bem verdade que Nabuco, em sua teoria, jamais empregou o termo expoente, sendo sintomático que, num tempo em que predominava a cultura da ilustração, para não dizer cultura puramente acadêmica, não tivesse incluído os homens de ciência entre as “notabilidades” ou “superioridades”. Talvez nem houvesse ocorrido ao grande escritor o exemplo de Pascal, geômetra, físico, filósofo e escritor admirável.
Nabuco era um ilustrado, nada tinha de científico, mas a sua intuição do papel da Academia foi luminosa e fecunda.
A separação entre a cultura humanística e a cultura científica, um de vossos temas prediletos, representa para vós, Sr. Carlos Chagas Filho, equívoco dos mais funestos do entreguerras, separação que perdeu completamente o significado, se é que significado havia, depois de Hiroshima e Nagasaki. Em livro famoso, analisado em O Minuto que Vem, Lord Snow mostrou a identidade das duas Culturas, ao advertir que, sem a compreensão desse fenômeno, o progresso científico estaria irremediavelmente comprometido. Condenada ao isolamento, grande parte da humanidade deixaria de usufruir dos inventos e realizações que de fato assegurem ao mundo subdesenvolvido um progresso social autenticamente humano.
Nossa Academia, malgrado sua posição fundamentalmente apolítica tanto no plano interno como no internacional, não pode permanecer indiferente a um tipo de debate como esse, da mais alta transcendência. É um debate que vem de longe, foi iniciado por Joaquim Nabuco, com a sua teoria dos expoentes, e retomado por vós, três quartos de século mais tarde, ao demonstrardes que não pode haver separação entre as duas culturas.
A verdade é que não mais existem beletristas, mas escritores voltados todos eles para os problemas culturais e humanos, que não são apenas brasileiros, e sim universais. Sílvio Romero, espadachim da Cultura, que olhava mais para o futuro que para o passado, emprestava à palavra Literatura um sentido bem amplo: Política, Economia, Arte, criações populares, ciências, além das intituladas Belas-Letras, tudo isto ela engloba. E acrescentava: como uma “grande artéria”, como o “pulso da sociedade”, todas as ânsias e agitações do meio na Literatura devem repercutir.
Na fundação da Academia prevaleceu contudo a ideia do beletrismo, vencida a corrente que pretendia chamá-la Academia do Brasil, como está no primitivo projeto de estatutos da autoria de Inglês de Sousa. Foi um literato quase desconhecido, Pedro Rabelo, por sinal um dos fundadores desta Casa, quem propôs a emenda, vitoriosa, dando-lhe a denominação restritiva de Academia Brasileira de Letras. A história da Academia, que se aproxima do primeiro centenário, com tantos avanços e recuos, próprios aliás de quaisquer instituições, guarda, como precioso ensinamento, o de que é necessário renovar-se, tornando o critério da escolha de seus sócios menos inflexível e mais abrangente. Temos eleito, como queria Nabuco, militares, políticos, juristas, médicos e eclesiásticos, entre as “notabilidades” ou “superioridades” do País. Elegeram-se cientistas, como Oswaldo Cruz, Clementino Fraga e Deolindo Couto, inventores como Santos Dumont. Resta porém a dívida a ser resgatada com os artistas, que um dia, ainda como queria Nabuco, terão a sua vez.
Na vossa eleição, Sr. Carlos Chagas Filho, a Academia dividiu-se ao meio, entre os partidários das duas correntes, a tradicionalista e a renovadora. Nos dois primeiros escrutínios, o pleito não se decidiu. Houve empate. Dezenove acadêmicos sufragaram o vosso nome. Outros dezenove se inclinaram para José Cândido de Carvalho, derrotado por vós no terceiro escrutínio. Candidato único à vaga de Cassiano Ricardo, o admirável romancista de O Coronel e o Lobisomem mostrou que sabe esperar, tal como vós, que não vos sentistes diminuído ante o primeiro insucesso e voltastes a pleitear a vossa acolhida no regaço acadêmico.
Em matéria de eleições acadêmicas, que têm os seus mistérios, como de resto todas as eleições, quem melhor lhe entendeu o mecanismo caprichoso foi Graça Aranha, no prefácio da Correspondência entre Machado de Assis e Joaquim Nabuco, livro posterior à Semana de Arte Moderna mas anterior ao rompimento ruidoso de 1924, no discurso que pronunciou nesta mesma sala, deste mesmo canto, um pouco adiante, na tribuna então colocada de costas para a mesa. É o discurso que contém o grito de rebelião: “Se a Academia não se renova, morra a Academia.”
Vale a pena recordar, pela oportunidade e pelo chiste, o pequeno trecho de prosa coloquial do velho modernista, em estilo não de todo castiço.
Cito as palavras de Graça Aranha:
Nada interessa tanto à vida acadêmica como uma eleição. Parece que aqueles homens, escapos da Política, mas guardando fielmente o espírito eleitoral brasileiro, desforram-se em eleger confrades, exercendo uma função considerada um privilégio, quando raramente votam fora da Academia, mesmo para escolher o presidente da República. Na Academia, o sentimento eleitoral é o mais ativo de todos, e a Academia Brasileira, graças ao seu quociente de mortos, jamais foi uma academia morta. Os abençoados mortos deram-lhe a mais preciosa das vidas, a vida eleitoral.
Atentai bem, Sr. Carlos Chagas Filho, que nisso reside de certo modo o alento democrático que tonifica e revigora nossa falaz e discutível imortalidade.
* * *
Somos, bem o sabeis, uma Associação que prima pela civilidade. Não poderíamos receber-vos sem louvar, além do professor do cientista e do ensaísta, o companheiro ilustre que tem honrado com o seu convívio tantas outras sociedades sábias no Brasil e no exterior. Vossas veneras, desde a Legião de Honra da França à Ordem do Mérito da Itália, da Ordem de Cristo de Portugal à Ordem da Estrela Polar da Suécia, dariam para cobrir de cima abaixo o vosso fardão, esse fardão em que Jean Cocteau viu resplandecer e cantar quarenta sereias de cauda verde e voz melodiosa. De todos os vossos títulos, inclusive o de Presidente da Pontifícia Academia de Ciências, por delegação expressa de Sua Santidade, Paulo VI, o mais alto e o mais nobre é porém aquele imponderável da vossa personalidade. Sois essencialmente bom e caroável, qualidades humanas sintetizadas por um dos nossos, Odylo Costa, filho, numa frase lapidar:
“Ele é um dos melhores homens do Brasil.”
Metropolitano e cosmopolita, mas ao mesmo tempo profundamente brasileiro, pertenceis à estirpe de Eduardo Prado e dos dois primeiros Afonso Arinos, tio e sobrinho. Defensor de Veneza e de Ouro Preto, cidadão honorário de Uberaba e Carlos Chagas, eis o que sois, em suma, brasileiro e universal.
Na Academia, estais em vossa casa, Sr. Carlos Chagas Filho. É a casa de vosso tio Hélio Lobo, de vossos antigos mestres Miguel Osório de Almeida e Roquette-Pinto, de vosso cunhado Afonso Arinos de Melo Franco, de vossos compadres Manuel Bandeira e Odylo Costa, filho. Manuel Bandeira teria hoje um dos seus grandes dias, vendo ingressar nesta nossa – e agora também vossa – Casa o amigo a quem louvou num poema, além do amigo, esposo e pai exemplar. Porque é preciso que se diga, no final de tudo: um dos melhores prêmios que recebemos com a vossa “imortalidade” foi o da nova “Acadêmica”, Ana Leopoldina de Melo Franco Chagas, Anah Chagas, uma das senhoras mais representativas do Brasil, pela bondade, pela educação, pela inteligência, e, permitam que proclame, com respeitosa admiração, pela graça e pela beleza.
Mas deixai por um minuto mais que Odylo Costa, filho, a quem de fato caberia receber-vos, termine este meu desalinhavado discurso de boas-vindas com um punhado de versos do seu “A.B.C. salteado dos Chagas de Paris”:
Neste meu A.B.C. canto
Ana Leopoldina – Anah
Chagas (pelo casamento),
perfeição como não há.
Sendo Anah assim perfeita,
que belas filhas que tem!
mas a paz que as une e anima
é das almas que ela vem.
Ponho entre as coisas supremas
que glórias do Brasil são,
entre a cozinha baiana
e as frutas do Maranhão,
entre a prosa de Gilberto,
a de Rosa e a de Rachel,
a poesia de Drummond,
de Cabral e de Manuel,
o saber de Carlos Chagas
e a beleza de Cristina,
mais das donas brasileiras,
filhas de Ana Leopoldina.
DEDICATÓRIA:
Mas o que anima os Chagas
e junto a eles nos traz
não é a ciência ou beleza:
é uma infinita paz.
Paz transparente e profunda
que fiquem sabendo bem:
não vem da ciência ou da beleza,
mas é das almas que vêm.
23/4/1974