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Candido Motta Filho

PENSAMENTO E FORMAÇÃO DA NACIONALIDADE

“Eu dei saltos desordenados, para assegurar que tinha os movimentos bem livres.”

                                                                        Rabindrahah Tagore

Depois de termos procurado apanhar variados aspectos do pensamento nacional, desde os tempos coloniais, através da literatura, afastando uma multidão infinita de detalhes, somos forçados a concluir que ele nasceu romântico e teve, até nossos dias, uma existência puramente romântica.

A crise individualista nos empolgara. Levantada principalmente pela Revolução Francesa, criara, por assim dizer, o grande movimento romântico. Este nos apanha, quando abríamos os olhos para o mundo...

A libertação romântica da civilização mediterrânea transforma-se no ambiente americano. Não é a revolta contra as opressões convencionais, a rebeldia contra um passado longínquo e tirano. É mais alguma coisa. É a expressão de uma rebeldia juvenil de um povo novo...

Assim, a formação nacional não se manifestou como um estado de consciência. Vemo-la lutando contra um artificialismo obsedante, artificialismo que surgira com a imposição de uma civilização e de uma cultura num território bárbaro.

A nossa literatura, de altos e baixos, de linhas irregulares, de feições díspares mostra, perfeitamente, o modo de nossa formação mental. Deixando de lado a visão estética, sobremaneira agradável, e procurando, somente, a expressão brasileira, o cunho brasileiro, o élan nacional, a tendência orgânica da nação, nas obras literárias, encontramos uma vida inédita, uma expressão mental inédita. Escutamos, dentro do casulo fechado, um ser que se debate para voar.

Não sabemos bem como progredimos, mas progredimos. Ganhamos forma, criamos corpo, verificamos, aos poucos, nossa identidade, sem que nisso haja uma diretriz, uma ordem preestabelecida. Destacamo-nos no espaço social das nações como se destacam as nebulosas... Um grande instinto vital guia o impulso para a fixação do caráter nacional.

E crescemos. A nossa ginástica não é a estudada nos manuais. Tem algo de bárbara, de insólita, de desregrada. É irregular como a das crianças sadias. Temos os olhos vivos e ingênuos. Às vezes, muitas vezes, a alma ensopa-se de melancolia e temos medo nas noites perdidas. Somos ainda instintivos, imaginosos, contemplativos, românticos.

Toda a abundante literatura que apresentamos ao mundo e que, infelizmente, quase todo o mundo desconhece, - na aparência europeia, na forma europeia - traz consigo o incorreto de nossa alma, o indeciso de nosso espírito, a luta obscura e dramática, para o aperfeiçoamento do contorno psíquico, aquilo que Spengler denomina tão significativamente o “estilo de uma alma”.

O que é nacionalismo? Di-lo bem o nosso processo literário, com seu mecanismo de unificação integral de pensamentos, de núcleos morais, de aspirações e tendências.

No seguimento histórico dos povos, nós encontramos inúmeras expressões de personalidades coletivas, através de processos culturais e estéticos. Manifestam-se almas com tendências e inclinações próprias, a completar o que certos filósofos chamam expressão consciente do Cosmo. Com isso, os povos embevecidos, de alma sonora, os povos que se levam pela sensualidade formal, os povos bravios, indomáveis; os povos imperialistas e dominadores. A Índia esotérica, imergida nos mistérios do infinito, ou a Roma pragmática. A Grécia ou a China. O Islã ou a Pérsia...

No caráter vital dos povos, as manifestações religiosas, místicas, científicas, econômicas, políticas, estéticas, representam um talhe expressivo de cultura e de poder vital próprios. Na massa informe dos homens, em lutas e dramas, pavores e entusiasmos, no suceder contínuo das gerações de raças e povos, vão se criando círculos sociais com caráter espiritual próprio. E os povos, dentro de tais círculos, deixam de existir, para viver. Abandonam aquele aspecto maleável e caótico, aquele aspecto passivo de subordinações a outras culturas ou ao próprio terror totêmico pela natureza indecifrável. Deixam o instinto selvagem, a inconsistência moral, o desmedido romântico, e corrigem-se a si próprios, numa espécie eloquente de autoeducação. A alma acorda. Sai do seu estado tímido e primitivo. Larga o tatibitate infantil. E do caótico, do instável, do desordenado, do efêmero, nasce, resistente e perdurável, a nacionalidade.

Direito, moral, religião, ciência e arte, todas as pontas simbólicas do pentágono de Salomão - manifestam-se como processos de adaptação e de expressão. Assim se constituíra a antiguidade helênica, com um espírito clássico de coesão e de equilíbrio: - “nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu.”

O desenvolvimento cultural brasileiro, mesmo depois da Independência, fundindo seu romantismo natural e moço com o romantismo da velha civilização europeia, não constitui uma amostra segura de nossa emancipação espiritual. Não tivemos expressão estética própria e sim tentativas de expressão. Nunca tivemos arte primitivista e grosseira. Tivemo-la vinda de fora, acabada e perfeita, doutrinária e acadêmica. Não podíamos ter pensamento próprio. Ele trazia, em si, o vício de sua própria formação.

Mas, no aparato civilizador, está a nossa nova inteligência e a nossa verdadeira sensibilidade. Basta ver como verseja um Castro Alves e como pensa um Farias Brito, como verseja um Bilac e como pensa um Alberto Torres.

Não conseguimos estilizar o nosso espírito, porque suas raízes longínquas fazem com que ele se transforme, sem força bastante para criar. Imaginação. Deslumbramentos. Rebeldias. Sensualidade. Cores fortes. Melancolias e entusiasmos. Misticismo e religiosidade, esperanças e saudades. O espírito brasileiro é assim, em linhas indecisas, fantasmais, como que envolvido pelas brumas serradas das madrugadas.

O pensamento brasileiro é preso à terra que está cheia de feridas. Tudo é violência. Oriundo de imigrados, da latinidade transfigurada na assombração do solo da América, o pensamento brasileiro vive ainda no tumultuário mundo romântico, sem civilização própria e sem cultura própria.

Nosso espírito político revela, sobre uma aparente moderação ocidental, o espírito áspero do caudilho. Não há uma correlação entre Gladstone e José Bonifácio. Não tivemos uma expressão literária que lembre a Goethe ou a Molière...

A vida brasileira ainda não perfeitamente cimentada, com uma nacionalidade ainda dispersa e amorfa, não poderia ter mentalidades literárias solidamente caracterizadas. Elas refletem essa realidade de uma nacionalidade em construção. Sobre a uniformidade de certos princípios gerais da civilização cristã, acusam a luta de raças, a luta de adaptações, a luta pela coesão, pela uniformidade de consciência; a luta contra a dissociação ideológica, pela qual se esvai o senso da realidade e se separa a ideia de seu ambiente; a luta pelo espírito tradicional e pelas disciplinas civis.

O país enorme, irregular, a terra em si, desordenada e cheia de horrores e disparates, - torna difícil a nacionalização. O sangue não circula como devia circular. Às vezes parecem mortas certas partes do organismo. Às vezes surgem quistos monstruosos. Mas, na exploração teimosa e renitente de quatro séculos, o sertão e o litoral, ou nativismo e o cosmopolitismo, vão tecendo o equilíbrio orgânico da nação.

Os transatlânticos despejam imigrantes para o trabalho. Trazem novidades estranhas, ideologias e máquinas. A terra procura naturalmente selecionar tudo isso. E o homem também procura artificialmente selecionar tudo isso. O esforço é para conquistar o conquistador e para explorar o explorado.

O descobrimento da América modificará o roteiro da civilização europeia. Com o crescimento da América a Europa definha-se. O espírito de desagregação cosmopolita que nos ameaça, desvirtua-se ao contato com a terra americana.

Porque convém notar que num país assim, como o nosso, de minguada cultura, que vivera, durante largo tempo, sobre uma orientação de senhores e escravos, povoado em sua maioria de analfabetos, - existe uma literatura que, apesar de desigual, traz a compreensão de nossas necessidades. Ela mostra o pensamento brasileiro na sua exaltação romântica, na sua generosa idealização de despertar para a vida...

Nós sabemos que a civilização é perigosa no que tem de artificial. Nós sabemos que a cultura é perigosa no que tem de inadequada. Um país pode ser civilizado e decadente. Um país pode ser culto e bárbaro.

Toda civilização que violentar nossa índole originária, será fictícia e vã. Na sua ação superficial iluminará as fachadas, mas deixará os interiores escuros. Toda cultura que não tiver um vínculo tradicional e raízes profundas, será ilusória e inquietante, Não iluminará os interiores. Deixa-los-á no lusco-fusco das horas cambiantes, povoados de fantasmas esquisitos...

A luta primitiva do homem com a terra vai produzindo seus frutos. A luta do nacional contra o cosmopolita também vai produzindo seus frutos: - De Manaus a Porto Alegre; no sertão, desde os garimpos de Araçuaí, até às regiões ricas do rio das Garças. A vida da nacionalidade parece correr, latejar, inflamar-se no corpo moço da terra americana.

Nosso programa: - Personalidade. Ânsia de viver por sobre o meio. Libertação das influências geográficas, das influências estranhas. Indisposição contra a falsa cultura, contra o apriorismo teórico.

O pensamento brasileiro, através da literatura, demonstra a construção de uma nacionalidade.

                           (Introdução ao estudo do pensamento nacional, 1926.)

 

OS SETE RELÓGIOS DO MEU AVÔ

O meu avô Fernando possuía sete relógios de pêndulo. No escritório, um; na saleta de entrada, dois; dois na sala de jantar; dois na copa. A casa era silenciosa, onde nunca se falava alto. Só os relógios, tique-taque, tique-taque. Marcando as horas com pequenas diferenças, badalavam, compassados, as horas e quartos de hora.

Meu avô era um velho educador. Seu colégio, na cidade de Nossa Senhora do Amparo, granjeara fama e por ele passaram alunos que se tornaram famosos, na política e nas profissões liberais.

Depois, por motivos que desconheço, ele se transferiu para São Paulo. Íamos então receber suas bênçãos num prédio que alugara no Largo do Arouche, com cinco janelas para o largo e um alto portão de entrada ao lado, prédio que se conserva até hoje, ao lado da Academia Paulista de Letras. Vivia com duas filhas, ambas viúvas. A mais velha, tia Cocota, que perdeu o marido, tio Cizínio, num enfarte fulminante; a mais nova, tia Nenê, perdeu o marido num desastre da Estrada de Ferro Inglesa. Ambas deixaram filhos pequenos e travessos, que foram domados, para não fazerem algazarra, numa casa que continuava a ter a fisionomia de colégio.

Meu avô dava aulas de latim, português e rudimentos de história. Além disso, recebia, como hóspedes, estudantes que vinham do interior do Estado.

As duas filhas, traumatizadas, eram mais espectadoras que auxiliares de meu avô. Ele era, afinal, quem superintendia a casa, olhando desde a sala de visitas até os problemas de limpeza. Era também viúvo. A mulher falecera quando ele tinha apenas trinta anos e ela não tinha passado da casa dos vinte.

Ainda estava, com os filhos, em Porto Feliz, onde nascera, quando aconteceu a proclamação da República. A sua alegria de republicano e liberal durou pouco, ao assistir não só ao adesismo em massa e as crises sucessivas do regime. A renúncia do Marechal Deodoro, o fechamento do Congresso, o governo Floriano Peixoto, a revolução de 1893 eram para ele consequências de um povo despreparado para a democracia republicana. Redobrou, com isso, sua dedicação ao ensino, convicto de que, ensinando, estaria concorrendo para que a República se tornasse um dia o coroamento civil de uma sociedade de homens livres e iguais.

A mudança do interior não lhe alterou os hábitos, nem sua filosofia de vida, que era uma mistura de romantismo e realismo. Era enérgico e compenetrado, apesar de não possuir boa saúde. Na mocidade sofrera certos ataques, que desapareceram na idade madura, para o que concorreu muito seu método grave de vida. Afora as horas de aula, vivia lendo, em seu escritório, os clássicos gregos e latinos, e convivendo com os seus relógios.

Além dos alunos, meu avô educava os sete relógios de pêndulo que possuía, Rodeava-os a todo instante, corrigindo-os, adiantando os ponteiros de uns ou atrasando os ponteiros de outros. Eu olhava esses relógios, perfilados junto à parede, com as cabeças enfeitadas como topetes, e tinha a impressão de que havia um diálogo constante entre eles e meu avô.

Às dez horas da noite, a casa ficava em profundo silêncio. Só os relógios continuavam; tique-taque, tique-taque. Cada relógio tinha uma história e, por isso, todos eles eram veneráveis. Um viera de Itu e estava no prédio em que se realizou a Convenção Republicana. João Tibiriçá, seu presidente, abriu a sessão memorável da instalação e mal ela começou o relógio se pôs a badalar.

O trem, que trouxera a comitiva do Imperador para a inauguração da Estrada de Ferro Ituana, entrou na estação apinhada de povo com quase meia hora de atraso, conforme denunciava o relógio. Estava instalado logo na entrada do sobradão, por onde passavam os convencionais, e todos eles, para comprovar a exatidão da hora em que compareciam, olhavam para o relógio, como se ele fosse um comandante dando ordens.

Os dois relógios da sala de entrada vieram de Porto Feliz. Um da chácara da família Mota, situada junto às barrancas do Tietê. E foi olhando muitas vezes para ele que, preocupado com o tempo, Almeida Júnior esboçou o seu quadro “A partida das monções”.

O outro pertencera à família de Venâncio Aires. Ele deixara as terras de Sorocaba e Porto Feliz para fazer sucesso no jornalismo rio-grandense.

Os da sala de jantar tinham vindo de Capivari. Um pertencera ao velho Cesário Mota, pai de Cesário Mota Júnior, relógio que vivia às turras com o relógio da matriz e que ficou por algum tempo parado, como sem conserto, protestando contra a proclamação da República.

O outro relógio viera da fazenda da família Ferraz do Amaral. Dele se contava uma história pitoresca. A de um escravo fugido que nele se ocultara, em 14 de maio, sem saber da abolição da escravatura. Como parasse, diante da presença do intruso, Nhô Augusto Ferraz do Amaral foi abri-lo e dele saiu, correndo, o negro fugido!

Os dois da copa tinham sido do colégio na cidade do Amparo. Um fora comprado de um fazendeiro que vendeu tudo o que tinha, como protesto contra a abolição da escravatura. O outro viera da cidade de Socorro, como peça histórica, por ter pertencido ao Visconde de Sapucaí. Ambos, porém, para o meu avô, tinham aderido à República, tanto que funcionavam rigorosamente.

Isto é o que nos contava o avô, com minúcias, para dizer o que na verdade representavam.

Para mim, eram os relógios apenas discípulos de meu avô, que com eles se entendia maravilhosamente, como discípulos disciplinados e compreensivos. Meu avô levava-os a sério. Quando qualquer coisa de anormal, de agradável ou desagradável, acontecia, ele inspecionava os relógios. Porque eles não batiam horas, mas contavam histórias - quedas de ministérios, reunião de conspiradores, de antiescravistas e republicanos, a deposição de Américo Brasiliense ou os últimos momentos do governo do Marechal Deodoro. Em tudo isso, o romantismo e o realismo do meu avô se entrelaçavam e ele dava aos relógios a presidência dos acontecimentos mundiais. Certa manhã chegou a dizer-me:

Você não pode alcançar, menino, o significado do relógio na história da civilização. Pense bem: sem ele não haveria consciência histórica e demarcação de valores. Kant não teria escrito a Crítica da razão pura, nem Napoleão teria perdido a batalha de Waterloo!

Era o relógio personagem real nas obras literárias. Citava a de Eduardo Prado, a propósito do relógio de Catânia; Machado do Assis, escrevendo cenas de ciúme em torno de um relógio de ouro; nas Memórias póstumas de Brás Cubas, a personagem central, depois de saborear um beijo, fala nas horas que corriam à noite quando ela ouvia o bater do pêndulo, com seu tique-taque soturno, vagaroso e seco. E se um relógio parava, meu avô dava corda, para que ele funcionasse.

Desde aí, prestei atenção a um relojoeiro instalado na Rua Jaguaribe. Todas as manhãs passava por ali e não poucas vezes parava para ver os relógios de vários tipos e a figura recurvada do relojoeiro sobre os relógios em conserto. Chamava-se Joseppi Tizzoni, bigode caído sobre a boca bem talhada, os olhos quase saindo das órbitas para demorarem na aparelhagem desregrada dos relógios. Quando estava de bom humor, contava uma porção de histórias. Seu pai fora também relojoeiro e morava num lugarejo no Vale d’Aosta conhecido como Francesco l’Orologiaio. Morrera caído sobre uma pilha de relógios.

O filho veio para São Paulo, com vinte e poucos anos. Conseguira trabalho nas oficinas da Casa Michel, famosa casa de joias em São Paulo e, depois, casado com uma patrícia que morava na Rua Santo Antônio, se instalou, para enfrentar a vida, confiado nos relógios, na Rua Jaguaribe.

Era taciturno e pouco acolhedor, talvez preocupado com os inúmeros relógios que batiam, em todos os tons e ritmos, junto a sua cabeça. Ali tudo regulava, menos ele, que confessava que, um dia, ingressaria “nel mondo della folia, la più deliziosa e festevole de la vita”.

Aliás, não demorou muito que isso acontecesse. Uma noite começou a gritar, dizendo coisas desconexas, dizendo que Deus roubara-lhe todos os relógios, porque Deus achava que o tempo é dado por Deus e não podia ser medido pelos homens.

E isso me fazia lembrar o herói de Samuel Butler, que foi jogado na prisão, ao chegar à Utopia, porque estava de posse de um relógio!

                                                                   (Dias lidos e vividos, 1977.)