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Discurso de posse

ACADEMIA, MITO INAUGURAL DA NOSSA CULTURA

Somos os quarenta da caverna do nosso inconsciente coletivo: o deste Brasil pobre, de tão poucos mitos. Panteon minguado de um imaginário escasso. Marca-o esta Casa, na sua arquitetura de despojos e ruminações, que constitui, mais consoladora do que reptante, a nossa glória.

Não há um Brasil indiferente à Academia. O poder nos corteja; a inteligência nos desdenha; sideramos o povo. Nosso é o lugar deste cativeiro social, de controles sutilíssimos, cenários da melhor usura do olhar e do prontuário das nossas etiquetas cívicas. Vigia-nos, pressuroso, o Príncipe. Recusa-nos, por força, a intelligentsia. Somos o contraposto de seu próprio relevo, cânon insuportável de sua ratificação. A cada talento a sua capela, neste País das academias pululantes, desde as volutas do imaginário do Brasil colônia. Da Academia dos Renascidos à dos Perfeitos; à dos Tácitos; à dos Seletos; à dos Esquecidos; à dos Felizes. Opulenta sempre esta abóbada, em que a Academia fecha o inconsciente social brasileiro, irmã da procissão bizantina, da escola de samba e dos pálios da torcida dos nossos estádios.

Por força, guardamos, nas raízes de nossa imitação primordial, o paradigma da coupole do Quai Conti. Mas não quisemos tanto a marca aristocrática, deliberadamente exótica, dos expoentes, dos bispos aos marechais; aos cirurgiões e também aos guias de caça na África; aos antiquários; aos duques – e como! – aos exploradores do fundo do mar; nos seus lotes rígicos, aos romancistas; aos da língua – mostrou-nos Marguerite Yourcenar – não aos da Pátria. Nosso é, mesmo, o inconsciente em magma no seu mais sadio rudimento sem despego da placenta do mito. O visionarismo popular da imortalidade é que marca o panteão mais que democrático do Brasil despossuído; do tocar-se o ungido; da imersão num imaginário tangível, à borda já da imolação de seus telões inaugurais, e da perda de sua primeira ingenuidade.
 
Aferramo-nos, ainda, ao espelho-espelho, onde se mira o País da excelência espontânea, nacionalmente compartida e porfiada; de raízes ganhas aqui sobre o pavilhão de exposições de 1922. Vigia-a a estátua sentada, fachada exposta à abjeção das tatuagens e dos grafites urbanos: bandeira gasta, perseverante, no rito civil e no périplo escasso do Rio-Acrópole, dos carris que o marcavam, do Cosme Velho, de Machado, depois de Alceu, hoje de Athayde; palco crescido sobre a terra e as dinamites fracas do Castelo, desobstruindo a cidade para as galas da Belle Époque; rigor – Abgar Renault sabe da palavra – da fábrica urbana dos nossos ícones e fabulários. Urdidura em que, replicando a Cité, cercamo-nos da proteção das gargouilles e das cariátides; das divindades benévolas, no arcano intemporal: de Austregésilo, propiciador inumerável; Anteu prolífico, no chão do Rio. Nada duende, só ectoplasma, no que sabe da maior enciclopédia, para além da desmemória; dos jesuítas, como de Pombal; dos impropérios, do cartesianismo rude, como de quem exproba, na mais decantável e peremptória das artes; a da cólera de Deus-Pai, de par com a ironia voltairiana. Crudelíssimo anfitrião das vaidades de cada um, como de seu melhor ermitão e festeiro; senhor da ilha e da torre; do desprezo do Estado e da devoção à coisa pública; do mausoléu – zelo da vossa vinha, vosso fundo de quintal – de um tempo sem edição, maestria toda enfim da última graça: a de nos dar o ser da permanência.

Dura, a nossa Casa toda exata para o mito. Sem fissuras. No limiar, talvez, em que a fadiga de nosso tempo – como a dos metais – alui o jogo certo do olhar, de depósito e da perspectiva em que somos a subjetividade, sem bastidores, da cultura que aqui se espreita e se proclama. Temos talvez, por demais, a chave desta modernidade, de cuja pompa e certeza plantamos os padrões e podemos, agora, antecipar o mito ferido.
 
Na sucessão das Cadeiras, somos protagonistas mais que fundadores, investidos da procura antes do recado. Como, na sua fieira, respondemos, no mosaico do preenchimento, à leitura da nossa aventura do espírito? Somos esse jogo anódino à primeira vista, da mudança dos titulares? A simbologia destas ocupações responde, ou não, à trama do construir a subjetividade nacional lá fora, no embate das conscrições exemplares, demasias ou perfis por falta? O que é a nossa crueldade histórica ou – sem perdão – o nosso alheamento?

No débito geral do processo das gerações, o que retrata a história da Academia diante do curso do pensamento brasileiro? Como lhe replica ou é a sua redução pantográfica? Como se estabelece esse fluxo secreto que nos torna os autenticadores, por mais que sonâmbulos, do nosso ser como Cultura?

Cultura dependente, nascida no melhor de sua mímese, trazemos ao arqueólogo do saber esta confusão; de pseudo e metaenunciados do sentido. Somos os prisioneiros do discurso, antes que da expressão mesma deste dizer; do tempo pressentido como utopia e desempenhado em toda a sua ingenuidade. Mal acordamos para o real, no advento tardio de uma Cultura, para si aberta a custo, na lenta saga dos nossos epígonos.

A Cadeira 35 nos dá, no nosso pré-falar, o melhor protótipo do discurso liberal, instalado o cógito normativo no lugar da reflexão. Tavares Bastos engolfa-se no tempo metropolitano das luzes de Condorcet e Jefferson. Mas o Patrono é, com a mesma argúcia e sabedoria, o anti-Tocqueville, ao trazer os Estados Unidos como paradigma do Brasil. Do que não somos o menor – como tão bem salientou José Honório Rodrigues: o nosso, nesta visão, se entrega por relevo negativo pelo desconforme que entorpece ou quebra a vigência da razão instaurada.

A mirada do Patrono é a do prosélito e não a do analista de histórias comparáveis e consistentes na sua autonomia e diferença; do pautado pelo módulo único que só não acontece pela conjura dos homens e dos fados.
 
Nas culturas, de que são parteiras as utopias, nenhuma fundação mais perversa que a do progressismo novecentista. Proeza de Sísifo, no pensamento de uma elite singela e hegemônica, no País vazio e enorme, a induzir Tavares Bastos ao profetismo mais bravo e acrítico. O horizonte desta “tirania do logos” liberal se apoderaria de uma história complacente e submissa às modulações – sem falhas ou surpresas – do estro brasileiro de então, sôfrego das letras: o romantismo da Faculdade de Direito de Olinda, como do Largo de São Francisco; o laicismo e a plena economia de mercado; a descentralização; a tônica educacional e sanitária, no resgate do País; a aproximação entre o real e o normativo à conta estrita da diacronia; o missionarismo, na varredura dos preconceitos, mola para a superação dos nossos atrasos, notou-o, admiravelmente, Evaristo de Moraes. Sem restos, a crença liberal transpunha-se ao programa do parlamentar, das lutas contra as tarifas comerciais do Império, à eliminação da cabotagem nacional; à abertura da Amazônia ao comércio de todos os povos; à ligação direta a vapor entre os Estados Unidos e o Brasil; à imigração sem peias e ao trabalho livre. Contundente e abrasiva, a transposição do ethos ao fato. As luzes se apossam da história, promovidas pelo liberalismo, à sua vera natureza.
 
E do outro lado, no pragmatismo conservador, de Paraná a Paulino, surgia o fazer nacional, urgido de todos os seus pesos e do aprendizado de suas cicatrizes. Mas é pequeno o respiradouro do real concreto à raiz desencapada do Brasil-Brasil. Dos núcleos de poder imperial ao da República, é só o excesso da utopia que flui, dobra da dobra de sua mímese. O civilismo dos Founding Fathers americanos se superpõe ao Positivismo. Nem purga nem reconvenção no formular-se o País ideal. Fuga adentro, alimentada em sustenido pelo terçar dos princípios da máquina da razão universal. Tavares Bastos, o mais lógico dentre todos os reformadores, exaspera a docência pura do discurso. Reconhece o outro espírito universal de seu tempo, Tobias Barreto, no choque inevitável de dois enciclopedismos siderados pelo excesso impune do conhecer. O planisfério do sábio saía do traço mofino das elites coimbrãs. Mas se via ainda como ciência de salva branca, no investir-se no País em projeto.
 
Aos 34 anos, as Cartas do Solitário exilam Tavares Bastos na própria demasia do mundo interior. Menino de novo, a renascer, seis meses antes de sua morte, em Genebra e em Paris. Caderno de notas dos cursos da Sorbonne. Refinamento só e inflexível da mensagem, trajetória sem percalços, na certeza da crença liberal e da vida como atletismo deste desempenho sem dúvidas.

A Cadeira 35 pode testemunhá-la na dádiva histórica da única geminação acadêmica. Pai e filho, os Rodrigo Octavio, vertidos no mesmo compasso, à época que vedava o corte interno das gerações. A interpenetração exemplar deságua nas paragens do belo, tal como o pensamento se faz ornato desta arquitetura de uma intemporalidade em trégua. Desimpedido esse tempo, de um espírito a marcar os contrastes pelo matizamento; a varonia da educação de escol, a pietas e a fidelidade, vividas na inteireza de um mundo sem sombras; de uma magistratura de homens belos no porte, em que as etiquetas e as emblemáticas forravam o chão bem-comportado de perspectivas, a que a arte delicada do filho traz aos movimentos literários de 1922 a sensibilidade do Penumbrismo. Do grito das Cartas do Solitário, passa-se, com os Rodrigo Octavio, ao destilar da razão no establishment, que vai ao direito para, na melhor visitação das luzes, falar dos selvagens americanos. O pai traz, naturalmente, ao título da autobiografia o consórcio e a fruição. São as suas as Minhas Memórias dos Outros. Continua o filho este “outro” vazado na declinatória de retratos e figuras, de um mundo em vinhetas, e não em tensões; de quem pode percorrer a História como un tour du proprietaire. Dos “Farrapos” ao “Reconhecimento do Brasil pela Inglaterra”, urde-se – com os Rodrigo Octavio – esta indagação, instigante ao clube conceitual e, sobretudo, às filiais e lealdades da gentry, como família do espírito. Não se questionava, ou vinha-se a problema. Demarcava-se a aventura perfeitamente educada do conhecer. Mais que o republicanismo o aplomb liberal, na virada do século, deixou-nos esta corte temporã, após a partida do imperador, de uma nobiliarquia leiga e persistente; a das distinções inatas, por onde escorre um tempo sem angústia, de fruição lídima; a trama dos olhares e das obras, exatas ao dizer manifesto. Mas já na trintena do século deflagrava-se a polêmica de nossa “tomada de consciência”, como realidade histórico-social, suscetível de um projeto e da assunção de um destino. O espírito liberal – assinalaria Vieira Pinto – encarna o extremo da percepção ingênua do ethos imune à fenda e ao trabalho dos conflitos sociais. Rompia, com o sangue azul da nossa Cultura metropolitana, um “mundo que faz o homem que faz o mundo”. Modernidade que exige uma decriptagem antes de uma descrição; impõe um novo cógito; pede a raça de fundadores à cata do sentido: entrama-se no nervo crítico da nossa produção intelectual. Quem a vive se insere num metarrecado, marca do próprio emergir do País como subjetividade coletiva. A Cadeira 35 enlaça a crítica da nossa História e, na sua sequência, a da nossa Linguística.

Guarda os modos, os protomodos, em que a memória e os falares se fundem neste “ver em se vendo”, e o mundo da Cultura começa como espanto.

José Honório Rodrigues, já no caminho díspar, de ir à Colúmbia, como Gilberto Freyre, a Frank Tannenbaum – não às belas escolas europeias –, pressentia a riqueza da ruptura e seu passo nebuloso. Abandonava os critérios de verdade, como docências domesticadas, fluxos fatalizados de coerência. Remontava às instâncias, em que se entremostra o significante, mais que o acúmulo do fato-pobre. Intuía o látego dos rumos de um Brasil, em se fazendo, convergindo para o tempo-eixo; por sobre o agasalho simultâneo do douto e do irrelevante, para além dos terrenos firmes a toda a prova, e o mais descomprometido dos exercícios acadêmicos. Ponteava a sua história para o presente, como seu era o tempo em que se rompia a estrutura social do “Antigo Regime” no Brasil. Não reordenou apenas os perfis do nosso passado imediato como um museu hierático da memória. No lidar com a própria subjetividade nacional, o faz como pensador do exercício de um autêntico desempenho coletivo. Não se busque a obra magna de José Honório. Atente-se, sim, ao vislumbre da perspectiva nascida no intento de um plano de vida – devassando a Nação, de um só golpe, ao interrogante sem restos do historiador. Da teoria da História do Brasil à história da História, ao fulcro de contemporaneidade, ao explícito e ao oculto, nas elisões do contínuo da narrativa, às pulsões fundas sobre o inédito, ao noturno do nosso fazer e à história cancelada. O acabado é sempre ruína – na obra paradigma – frente à monumentalidade do propósito. José Honório só retesa o teor agonístico de uma saga nacional que saiu, de vez, da convenção multissecular do seu relato, urgida tanto na mirada quanto na certeza das fontes. No que retoma a caução de Varnhagen; ou a restauração do fato buscada em Candido Mendes e em Capistrano; ou vence o álibi da História acima de qualquer suspeita, como em eterno retorno aos nossos primórdios; a prática dos nossos contares vazios e ventríloquos do século XVI. Meta-história, a de José Honório, desencapando o ver-se o País rasgado entre o cânon e a ganga da realidade, questionador sempre, acre, vergastado por uma possessão maior, impertinente e irredutível ao doce e pastoril domínio das nossas elegâncias. A geração dos 30 largava o Brasil anatoliano, da disponibilidade e da contrafação. Assentavam-se nossos nervos históricos, falseados pelas periodizações formais. Permeou-as José Honório pelo contraponto entre a conciliação e a reforma e denunciou a nossa memória como raconto das classes dominantes. Nem mero contra-raconto, na prisão dialética pobre, das tentativas da História Nova e da anti-história dos 60. Mas toda uma hermenêutica de precaução e de espera, advento de um “Brasil para si” que, antes de se contar, se erige como língua: o que faz, à sua espreita, companheiro de tempo e de olhar, Celso Cunha.
 
Neste último referir, encontra o nosso primeiro dizer, na Trova, a cartilagem ainda indecisa na vida do “e” paragógico, das repetições vocabulares, de João Zorro ou Paes Xarinho, e suas remissões paralelas. Nestes a primeira escuta, antes do espelho: o espírito que rola na Língua e a anuncia. Função certeira a de Celso Cunha. Senhor invariável, a partir daí, do rigor dos falares e mestre de sua perspectivação histórica: épura que descortinou, mão esgalgada de timoneiro, das placentas do século XIII aos falares crioulos, às difrações do Português pós-imperial, aninhado entre as línguas da diáspora pós-colonial, africana ou brasileira.
 
Celso dominava a mesura das diferenças fora das pautas de uma filologia hegemônica. Munia-se do mesmo metro para o cânon da Trova e do crioulo fundamental, quase seu contemporâneo. O medievalista único é também o pesquisador devorado pela voz dos descobridores, pelas rotas da Língua que, ao mesmo tempo, norteiam e emancipam o seu dizer. Mais vasto, sempre, o cenário em que Celso sai do incunábulo para as cartas de marear. Assenta, nos falares do Gama, o primeiro pidgin – a suposta corruptela oceânica do idioma – quando o Brasil começa pelo tráfico e, por ele, o Português encontra a fertilização de uma língua planetária. Furtiva e oblonga figura, na determinada peregrinação, Celso vazava a arquitetura de metrópole vocabular; negava o seu percurso como história de diferenciações entre as variáveis nobres e as fadadas ao fosso dos dialetos, na busca do que somos para nos comunicarmos. Nenhuma fuga ao quadro de combates e das justas óbvias; das disputas da Crítica, acabada como poucas, quais as da textualística medieval românica. Impecável no seu despojamento, o trabalho em solo escassíssimo do comentário das seis trovas de Paes Xarinho, das vinte de João Zorro, do ementário truncado de Martin Codax para o resgate do “falar dentro do falar”. Plexo sobre os discursos, sentires, como o insinuam as trovas de alisar de João Zorro, o capitão sem volta, embalde a “coita do amor” lhe faria esquecer a “mui gran coita do mar”.

É demarcável o caminho do sábio que apetrecha a Gramática. Para além dos misteres, a Teoria Linguística aí ressuma, inquieta, liberta dos procederes de manual. A nova gramática assume força de Verney, nos viajares da palavra. Ou chega ao tronco e à seiva mesma do que quer, enfim, Celso, em Estilística e Gramática Histórica. O Celso dos ferros da nossa emancipação linguística; do Português forjado para as angústias do subdesenvolvimento e das independências tardias e, tantas vezes, malogradas: do Brasil e da África fraturada da lusofonia. Sabe-o o Celso da cátedra, mas do samba de breque; da caixa de fósforos, da certa e sumarenta noitada urbana, Celso, Valéry e Villon, do outro lado do esgueirado Sorbonnard; da biblioteca como do sebo; do perquirir, na garganta mesma do falar. Não vai à Língua como quem volta ao veio. Cerca-a no seu fado, cúpida e exata à porfia oceânica do século XVI; Berlitz esperando o tráfico e a escala, este Português em fermentação. Não se permitia o langor das flexões. Pedia logo o hífen, ressecava os verbos. Prática Língua suada para o funcional, como cinco séculos após o Inglês e o Swahili.
 
Rompendo com o nosso circuito atlântico, via Portugal, Celso Cunha não quis a porta estreita da Europa. Rue des Écoles, logo, estantes e amarras de livros, junto ao Sena. Névoa urbana, casacos secos, mineiridade do norte, ágil escapada à dureza dos outros longilíneos da geração. A romanidade, sim, para além do Tombo. Calicut, Índia, Mediterrâneo certo, Itália sempre. Sabia, como Ionesco, que a Filologia mata. Opõe-lhe bem à face do inimigo, a política da Língua. Tal como entendia Roland Barthes que todos os assassinatos históricos começam por roubar-se alguém de sua Língua, em nome da Linguagem. Celso ergueu-se contra os ditames de uma pretendida normalização dos falares, tal como se identificaria à melhor estirpe do estruturalismo. Entendera a prisão dos atlas linguísticos e suas demarcações confinadas. Quis o cordame livre, e a vibração certa das diferenças vocabulares, para fazer da Língua, no seu acorde próprio, a componente primordial da modernidade.
 
O que importa no resgate entre o falar autêntico e o bastardo não é a escala, no tempo, da variação diante do primeiro tronco. Mas o contraponto da Língua viva: da sincronia, em que o relevo do exprimir – presente ou falho – cria, não contrafaz: fala de dizer, não de repetir. O que é um “brasileirismo”? Lavra-o Celso, na malha de toda esta renovação da pauta e do signo, do quadro e do significante, da quebra de uma pseudopureza linguística. O autêntico na expressão só se colhe ante a interdisciplinaridade emergente das Ciências Sociais, a trazer à impostação da fala o destaque dos estratos de vida; das classes e das ossaturas de um inconsciente coletivo. Esta a voz feita dos silêncios e das mesuras e das distâncias em que surge o outro e a interlocução no cotidiano; o interdito e o meio-dito; a névoa, o grito ou o grafite, na pulsão nacional que desmura a palavra.
 
Celso Cunha, cada vez mais perto de Barthes ou de Bourdieu – qu’est-ce que parler veut dire? –, nos dará, na obra fertilíssima do último decênio, o seu registro do que sejam variação e concerto da Língua, cravados na sua universalidade.

Sabe o mosaico certo em que o falar se elenca e um dizer se faz, irrevogável, voz de um povo. Na matriz das nossas gerações, Celso Cunha nos deu esse sinete de um tempo nítido. Na moção profunda em que todas as Minas vêm, a seu modo e a sua hora, ao Rio, e compõem o eixo de urbanidade tenaz, onde se reconhece a feitura civil, a Cultura de grei e de grão dos nossos bacharéis. A da Faculdade Nacional de Direito, ferrete intemporal, no timbre de Leônidas de Resende e, sobretudo, Castro Rabelo; da Faculdade Nacional de Filosofia, de Anísio Teixeira, Alceu e San Tiago, tentando a modernização universitária na metrópole. Trazem estes à praça do saber e do sistema a Cultura do jornal e do clube das elites da capital, imune ainda à banca de escrúpulo já então montada em São Paulo. De Teófilo Ottoni ao Rio, de Botafogo e Humaitá, há um clã também, desde o curso secundário, que identifica um nervo secreto de nosso saber de cidade, e de seu veio subsequente de cosmopolitismo. Nele se encontra o eixo do INEP, e esta primeira face das ciências moles, as brandas certezas da Política e da Sociologia, esmagadas pelo esplendor exegético do nosso Direito. Dos saberes esquivos, deixados ao largo pela convencionalidade do nosso Cientificismo; mundo exato, em que as Matemáticas se somaram à Jurisprudência, para construir a nossa utopia republicana. Vai desfazê-la em tantos deltas e meandros um conhecer, em se negando, pedagógico e missionário, de Anísio e Alceu, na faina mais dura de vencermos uma retórica do conhecer do Brasil da pompa polêmica e da tertúlia, chegado quase indene ao nosso meio-século.
 
É de Celso, exemplarmente, esse “novo sério” do saber, que prospecta a sua fonte e se desloca com o passo a passo definitivo dos escafandros: glossários, scripta, textos críticos, por entre os fios do caminho pesado e do seu ferramental. Sua é a monumenta deste mundo intermédio, em que o linguista faz a sua cidade e a vê geminada ao universo que manifesta. Só de sua vista, porque primeiro do seu tato, Borges não nos descreve a biblioteca de Alexandria. Insinua-a, de logo, neste mundo de percepções intermédias, a meio sempre da escada – sem fim nem começo – amanualidade pura, nada de labirinto, percurso infinitesimal e infinito. Vórtice com o mais de posse, de quem caça a Língua e demarca – pudor único – a sua senda própria, na página vincada, na festa do toque, do volume e de sua encadernação. De fieira do olhar e da consulta certeira, armado para a mais difícil das pelejas de um saber codificado, numa cultura em que os linguistas se fizeram sócios da nossa exegese sempiterna, na minúcia do probatório, quando é mortal o erro anódino ou a citação incompleta. Celso varou-lhe os estreitos nos interrogantes das nossas falas francas do Português para além, não só da Europa, mas de sua saga civilizatória; do feito e refeito, de um mundo que sobreviveu ao sonho imperial das luzes, a nos votar à Modernidade, como o manso fim da história.

Vivemos, nesta última década das demasias do milênio, o envelhecimento vertiginoso do passado imediato; o excesso de reptos, quando nos falha, de saída, o saber de informação. Nossa é uma equivocidade substantiva, ferida a universalidade do discurso, e vão todo o socorro da multilinguagem. Instalamo-nos num dizer subordinado à prova do que diz, distante da credibilidade imemorial com que as epopeias criaram o Ocidente. Urge-se a nossa Casa, rumo ao espanto, que mal lacera ainda as nossas paredes, de pequenos medos e surdezes. Mito ainda não depredado, cúmplice todo de uma memória e de um testemunho. Vamos à frágua e à ponte. Na barra, tantos prodígios. No que fica, no tempo com os exemplares da faina e do desforço, que pedem como liça as academias. Sede, tanto na Poesia, do cânon de João Cabral e Abgar; do epos ou do seu canto, tom D. Marcos e Lêdo; da saga, de Nejar e Ariano. Romance, que o temos no grilhão-limite e na sonda de todos os modos do nosso eu. Na descoberta transpassada de seu tempo, da trama ao trisso do indivíduo, em Cyro ou em Otto; no que é o veio da região, como universal, de Rachel, Herberto, Mário Palmério, José Sarney, Adonias ou Geraldo França de Lima, ou no corte da nossa romança, marca do contemporâneo sem fronteiras, como Jorge Amado e Josué; já de uma nova monumentalidade da exploração interior, na construção de Lygia e Nélida. Somos, na caverna, a vida em devassa, no País que nos perscruta. Na filosofia nascida da experiência nossa, no debate dos valores de Reale ou do social fundador de Evaristo. Do ethos, da pessoa e da persona política e da arbitragem canônica da vida do espírito. A Casa de Barbosa Lima. Do lance, de direito ou do grito na pólis com Oscar Corrêa, ou no lore das vozes das nossas diferenças de muitos Brasis, Marcos Vilaça ou Bernardo Élis, do que pede a História maior e do nosso coloquial de perfeição; de Américo Lacombe, Luís Viana e de Francisco de Assis Barbosa, ou do Jornalismo elevado ao fasto com Castello Branco; a Casa dos expoentes, a que não falta a Ciência, convidada das nossas certezas imponderáveis e do convívio imutilado, com Deolindo Couto e Carlos Chagas; ou presente, no imo da nossa estrutura de nação como Weygand na França de sua droiteur, Aurélio de Lyra Tavares.
 
Mas sempre buscamos relevância nesta vigília em que a comunicação que nos traz o saber de enciclopédia ou da Informática, desde nosso Pantocrator, Austregésilo de Athayde, a Sérgio e Arnaldo. É a Casa dos saberes vazada à alma própria da Cultura, no que nos deixou, em se sabendo, Afonso, o Príncipe perfeito.
 
Aprestamo-nos para o ser deste mundo pós-moderno e sua prática, sem chancelas prévias de escuta. Mas é por força, nesta constelação de cosmos inacabados, que se encontra, na Academia, a trama deste ponto, arranco só, num mundo que não pode confiar no seu novo firmamento, nem viver, tão só, da leitura de seus signos antigos. É o que nos dá, ainda, a Academia, na militância de seus críticos e nesta procura do comércio lúcido da equivocidade, ao aluir diretamente a Linguagem e libertar a polissemia com Houaiss e a cabeça da Medusa, amarrado ao vórtice joyceano; de Afrânio, dono da tradição afortunada; de José Guilherme e Eduardo, vivendo a explosão do logos e da Modernidade, a ruína e a correição de sua velha pletora de sentido. Singularmente, ambos, hoje, a nos darem as pontas em que a Academia se entrama na UNESCO e procura, a partir do Pós-Moderno, ver o mundo das contradições, do desenvolvimento e da exaustão do Progressismo ingênuo; da nova Língua franca da interdisciplinaridade do conhecer; de uma educação atenta ao álibi das técnicas e da reinvocação, de seus saberes primordiais; de uma cultura ferida pelas ilusões da racionalidade e sabedora de que não há volta ao arcaico, nem ao primevo, como resistência às terraplenagens históricas. Diretor-geral adjunto da Casa de Fontenoy, numa fieira de reincidências brasileiras, recebe-me o crítico descoberto por Alceu. Protagonista de uma Pós-modernidade, no lidar com os modos ameaçados do ser como recado do perene, em tempo de dizer transiente, e do cuidado, sobretudo, com o vestígio, para dele fazer-se a fala. Tempo pressuroso o da nossa Casa, sempre sobre a abóbada imaginária; que falta ao pavilhão francês, da Exposição de 1922. Claraboia de certezas maiores, sempre riso, voz, no mordente certo da cabeça, a grandeza por sobre as idades, nossa era, a de Alceu Amoroso Lima. Cúpula, a que fica, nas tensões desse agora, em que se colhe a realidade nacional – como quem rompe e se instala no novo intento de se ser e se designar. Celso o surpreendeu nas entranhas da palavra. Na sua soleira, José Honório.

Venho de um interrogante que buscou no ISEB – o que fosse, salientou Álvaro Vieira Pinto – a estrutura social total do subdesenvolvimento e vencê-lo numa nova fundação da nossa liberdade. Relevou-o Guerreiro Ramos. Tal como, no ethos de um querer nacional, Roland Corbusier. Há que divisar, com Helio Jaguaribe, o nosso novo tempo social rachado e a implicação, sem resto, da mudança. Situamos a exigência de salto de um Ancien Régime, ao definir-se o nosso nacionalismo de 1960, na esteira da filosofia existencial do meio-século e na tragédia subsequente da busca do nosso “vir-a-ser”, deflagrado pelo suicídio de Vargas e pela ascensão de Juscelino. Fomos o ISEB no desempenho das gerações – e que a enciclopédia não esquarteje –, o testemunho da possessão a nu, pela ideologia, do processo da mudança; do intento da pedagogia do Príncipe, a tomada de consciência da Nação. Provamos a empreitada insuportável, salgado o intento, e dispersa a nossa biblioteca, quando a racionalidade se fixou como imagem do poder enfartada como razão, e razão de Estado, e razão de um sistema, por sobre a regra aberta de suas vigências. Reivindicamos a nossa raiz no que fomos uma contra-história, aparado o regime à tese; à ESG, sem o ISEB; dialetização truncada, no advento da diáspora, onde o Pós-Moderno defronta o que ainda procurávamos, nos vocativos unívocos dos 60. Apartava-se a Nação de sua saga ou do que fosse, ainda, o desenvolvimento, no País da marginalidade e de uma vindicação coletiva, no sulco de todas as suas marcas, a querer o sentido e o seu desempenho. Vela-o o imaginário social, que não se o sepulta, tal como não chegamos a um saber para si sem os seus arcanos; no que ousamos e repetimos, fado do só querer; sem o fabulário primordial da nossa excelência que, na Academia, não se dessacraliza. Frágil, a nossa liberdade, como quem pode desperdiçar a democracia. Órfica, a nossa permanência – a desta Casa – como quem chega; e pousa; e refaz; e guarnece; e manifesta; e vigia.

12/9/1990