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Barão Homem de Mello

                             EVARISTO FERREIRA DA VEIGA

Na série de homens notáveis que ilustram a história contemporânea brasileira, Evaristo Ferreira da Veiga ocupa um lugar distinto.

A sua carreira política é um documento vivo e fecundo do poder das grandes vocações.

Sem os recursos de uma cuidada educação literária, sua inteligência, formada nos solilóquios do gabinete, robusteceu-se no estudo, e atraiu a admiração e o respeito de seus compatriotas. Arrastado pela força de sua vocação, o livreiro obscuro deixou o balcão do negociante para identificar seus destinos com os da pátria, para confundir seu nome com as glórias de seu país.

Na vida pública revelou talentos superiores que foram realçados pela probidade de um caráter independente, e por um patriotismo nobre e desinteressado. Não o atraiu a política pelas seduções que porventura se oferecessem à sua ambição; foi arrastado a tomar parte nos negócios públicos de seu país pela força de suas convicções, pela marcha tortuosa da administração.

Diante da atitude ameaçadora que apresentavam os destinos de sua pátria, Evaristo não pôde manter-se impassível. De acordo com as máximas de um sábio legislador da Antiguidade, julgava um crime o indiferentismo político nas crises supremas das nações, quando o perigo comum reclama o concurso de todos os cidadãos.

Fora do poder dominou a situação, e nunca quis gozar de suas doçuras e vantagens, ele que teve em suas mãos os destinos do país.

Ligou seu nome a uma revolução política, e manteve sua glória pura de excessos.

Encarnação de uma época notável de nossa vida política, esse nome simboliza a parte mais brilhante e mais nobre da história da democracia no Brasil.

Evaristo Ferreira da Veiga nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 8 de outubro de 1799. Seu pai, o mestre de escola Francisco Luís Saturnino, português de princípios rígidos e austeros, implantou em sua educação os elementos de uma sã moral, e da religiosidade cristã: nesse tirocínio severo formou-se esse caráter incorruptível, que lhe serviu sempre de bússola nos embates tempestuosos de sua vida pública.

Desde logo sua inteligência precoce, desabrochada nos brincos da infância, denunciou sua vocação literária: dotado de espírito de meditação, e achando-se entre livros, tomou o hábito do estudo, entregando-se a uma leitura assídua. A Independência viu-o ainda no retiro do gabinete, mas testemunhou já os primeiros frutos de sua jovem inteligência. Evaristo saudou a emancipação do seu país com as primícias do seu talento; eram os primeiros assomos do patriotismo. Sua hora, porém, não havia ainda chegado: seu nome não fora fadado para brilhar nas glórias da Independência. O Sete de Abril reservava-lhe suas grandes peripécias para dar-lhe um lugar no proscênio da história brasileira.

Os acontecimentos se haviam precipitado. Os erros do poder haviam amortecido as esperanças constitucionais do Brasil: o Primeiro Reinado declinava sombrio para o seu ocaso...

Quando no alto-mar a tempestade se desencadeia e ameaça na ruína dos elementos submergir a frágil nau agitada pelos ventos, correm todos, por um dever sagrado, a levar o concurso de sua força para salvação comum.

Assim, quando a causa política periga, o patriotismo não pode estacar indiferente, e o empenho de salvá-la torna-se o dever de todo cidadão, que sente arder-lhe no peito a centelha sagrada do amor pátrio. “Vergonha àquele que assiste cantando à ruína de sua pátria” (“Honte à qui peut chanter pendant que Rome brûle”, Lamartine).

Nessa situação dolorosa a atenção de Evaristo foi despertada pelo espetáculo desolador da causa do seu país: o poder perdera a confiança nacional.

Então seu patriotismo acendeu-se e o grito da pátria encontrou eco generoso em seu coração. Enquanto a tribuna lhe não franqueou seu pórtico, Evaristo apelou para a imprensa, e pôs os recursos de sua inteligência ao serviço da causa de seu país. Em 1828 chamou a si a redação da Aurora Fluminense, e desde esse tempo seu nome inscreveu-se com honra na lista dos defensores da liberdade.

Para o homem do dever, que tem diante dos olhos a religião do patriotismo, a imprensa política assume a missão elevada de um sacerdócio. O escritor público torna-se então o órgão majestoso de um povo inteiro, e suas palavras traduzem os votos de toda uma nação. Assim compreendeu Evaristo sua missão: suas palavras eram inspiradas pelo só interesse da causa pública: o patriotismo era a luz, que guiava sua pena.

 

                                                    [...]

 

A ocasião se aproximava, em que seu nome ia confundir-se com as glórias da liberdade. Estava iminente a revolução: seus primeiros sinais assomavam já no horizonte. O poder despertou-se enfim ao murmúrio sinistro do descontentamento público; o Imperador correu a Minas para antepor seu prestígio ao curso das ideias liberais: as decepções o esperavam, e a corte recebeu em seu seio o monarca desenganado. Era o momento supremo da crise; a nacionalidade brasileira foi insultada pelo português: o patriotismo achou-se empenhado em uma luta de morte, em que devia triunfar ou morrer para conquistar seus foros postergados. O povo começou a agitar-se inquieto, como ensaiando o grande drama, que preparavam os acontecimentos. Evaristo assumiu a responsabilidade da revolução, e inscreveu seu nome nessa representação ameaçadora de 17 de março de 1831, que desvendou os olhos ao monarca, e fê-lo contemplar o abismo que tinha diante de si. A revolução estava triunfante: a nacionalidade de um povo nunca se atira ao campo da ação para ser esmagada pelo poder.

Evaristo é a encarnação viva do 7 de Abril: as ideias da revolução tomaram corpo e personificaram-se nele, como em seu mais genuíno representante; ele a dirigiu com coragem e firmeza, e depois da vitória sua glória completou-se com os rasgos de uma moderação magnânima. O culto da liberdade não traduzia nele o delírio febricitante das ideias revolucionárias; nos dias da luta fora um dos que com mais denodo partilharam o perigo; nos dias do triunfo foi o primeiro que apareceu com o ramo de oliveira, e antepôs o prestígio de sua coragem cívica às exigências da revolução. Seu patriotismo foi posto em dúvida; as suspeitas o rodearam, mas ele aceitou a impopularidade de um dia (expressão de Lamartine, na discussão da lei relativa à trasladação dos restos de Napoleão; sessão de 26 de março de 1840), e salvou a nação.

A atitude guardada por Evaristo em frente da arrogância ameaçadora da revolta triunfante, ele o tribuno que a desencadeara com sua voz, a firmeza, que então ostentou, dão a seu caráter uma grandeza difícil de ser imitada. O fautor do 7 de Abril desmentiu a sentença da história sobre as revoluções: não mareou sua glória com a nódoa do crime.

Quando apareceram os sintomas precursores das revoltas subsequentes ao 7 de Abril, quando as ideias da revolução pareciam condenadas a perecerem no meio das dissensões civis, Evaristo, inda em meio do delirar do triunfo, inflamava-se nas inspirações do patriotismo, e atirava às turbas revoltas essas palavras notáveis, que revelam as apreensões que debatiam o seu espírito sobre o futuro da revolução: “Não são os bons Patriotas que devem trabalhar, para que a revolução gloriosa se perca nos abismos da dissolução social.” (Aurora Fluminense, n. 496, de 13 de junho de 1831.)

Não o acovardava o espetáculo aterrador do povo armado para assim apoiar seus votos, expressados no meio de vozerias na praça pública; longe de santificar esses excessos de seus companheiros de ontem, ele protestava na Câmara “que o despotismo era sempre despotismo, quer fosse exercido por um, quer estivesse nas mãos de muitos”. (Discurso de Evaristo na Câmara dos Deputados, sessão de 25 de maio de 1831. Correio da Câmara dos Deputados, n. 24, pág. 101.)

Nesta luta em que se achou empenhado com os mesmos resultados de uma ideia dele nascida, assistiu-o sempre à luz do patriotismo: ao seu clarão descortinou no futuro a ruína da pátria escrita em caracteres de sangue, se triunfasse a revolta. Desde então manter a revolução em seus justos limites tornou-se para ele um dever. Sua atividade redobrou para desempenhar essa missão grandiosa. No seio da Sociedade Defensora, dominadora onipotente da situação naquele tempo, opunha-se aos excessos da revolução com o mesmo vigor com que combatia o pensamento sinistro da restauração do ex-Imperador; entre os dois grandes erros políticos, que entre si disputavam os destinos do país, seu nome atravessou sem mancha. O partido Moderado viu-o sempre à sua frente; diante das dificuldades da época, em meio das apreensões terríveis da restauração, seu patriotismo não desanimou. Em vez de ser arrastado pela revolução, conteve-a com denodado civismo, e afastou do horizonte de nossos destinos a ruína da pátria; reuniu os elementos de força e confiança em torno do governo legal, robusteceu a força da autoridade abalada, e salvou o país dos horrores da anarquia. Tão assinalados serviços pela causa pública, enobrecidos por suas virtudes cívicas, asseguram-lhe uma preeminência decisiva na gerência dos negócios públicos: era o oráculo do poder, quase o árbitro da situação

Nessa posição elevada nunca o abandonou o patriotismo; manteve sempre ilesa a severidade de seu caráter: a causa pública nunca sofreu em seu benefício.

Os dias se haviam passado: a revolução prosseguia seu curso no meio da luta dos partidos. A restauração desaparecia com a morte do Duque de Bragança: a missão do Partido Moderado pareceu terminada; estava removido o perigo, que o mantinha firme no campo do combate. Julgando em segurança os destinos do país, Evaristo conservou-se retirado da cena política: em dezembro de 1835 cessou com a publicação da Aurora, e na câmara temporária, onde o colocara segunda vez o voto da Província de Minas, sua voz conservava-se muda. O patriota parecia repousar das lutas fadigosas dos dias da revolução.

Os destinos do país, entretanto, iam-se complicando; um caráter grave e assustador começava desenhar-se na fisionomia dos públicos negócios: Evaristo não pôde contemplar de perto esse espetáculo aflitivo, que se desenrolava ante seus olhos; viu assustado o desvio da causa que lhe custara tantos sacrifícios, que ele esposara com todo o rigor entusiástico de suas crenças patrióticas; para arredar dos olhos esse quadro de dor, retirou-se do Rio, e em 1837 a Província de Minas recebia em seu seio o patriota desenganado. De volta à Corte, o patriotismo lhe preparava uma das mais dolorosas provações.

Colocado em uma posição excepcional, o Regente do Ato Adicional via sua autoridade neutralizada pelos embaraços de uma situação extraordinária.

Evaristo teve de assistir a uma conferência política em casa de Feijó, e aí a causa da pátria reservava-lhe uma morte prematura. Sua voz desprendeu-se enérgica nesse transe, e suas palavras prenhes dos graves pensamentos que lhe agitavam o cérebro, revelavam seu profundo descontentamento. O momento era solene: o patriota devia quebrar suas tradições, renegar o culto do passado, constituir-se em luta com o seu companheiro de outrora, o salvador da monarquia em 1831; ou acompanhando a marcha de seu governo, sancionar os males da nação. O passado e o futuro, os sentimentos do coração e os destinos da pátria travaram luta na alma de Evaristo. Não pôde resistir a tanta tribulação, e sua cabeça vergou ao peso do infortúnio do seu país.

No dia 12 de maio de 1837 finou-se sua existência, porque, como Catão, não pôde sobreviver à ruína da pátria, que seu patriotismo enxergara iminente. Evaristo sucumbiu mártir de suas convicções e de seu patriotismo. Morreu, porque as grandes ideias matam as grandes cabeças, e a causa da liberdade conta seus triunfos pelo martírio de seus filhos!

                                                    (Esboços biográficos, 2º vol., 1858.)