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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)

Quem diria, senhor Augusto Meyer, que aqui nos defrontássemos no limiar das despedidas, depois de termos tanto escarnecido, em nossa mocidade, das vaidades acadêmicas! Será que a Academia mudou ou mudamos nós? Provavelmente nem uma nem outra coisa. Embora estivéssemos ao lado de Graça Aranha, em 1924, sem querer negar a evidência da minha primogenitura, bem sabíamos que era vã sua esperança de mudar a natureza da Academia, transformando-a em renovadora de formas estéticas. Sempre foi outra a missão das Academias em todo o mundo. Foi sempre a de defender o patrimônio cultural de um povo, sem tolher, entretanto, o surto contínuo da sua renovação. Quando vemos um Pasternak ser levado ao desespero e à morte pela intolerância de uma Academia, é que o espírito dela se ausentou, colocando-a ao serviço do Poder Absoluto e do fanatismo das novas classes.

As Academias não são boas nem más por si mesmas. São más quando pretendem aparar os raios com a mão, como dizia o nosso Mário de Andrade, pioneiro da nossa geração. Mas são boas quando deixam as cigarras cantarem em liberdade, sem desdenhar, entretanto, o papel das próvidas formigas, abastecedoras e guardas vigilantes dos celeiros.

Foi, porventura, uma compreensão menos apaixonada do papel das Academias, na vida literária de um povo, e ainda quem sabe uma consciência mais nítida de que há tanta vaidade em ser, como em não ser, acadêmico, que explica, senhor Augusto Meyer, este nosso reencontro depois de quase trinta anos de silêncio epistolar. É verdade. Uma vida! Foi essa a dolorosa surpresa que me foi proporcionada pela alegria de vos receber na Casa daquele que estudastes, com tanto amor, tanta ciência e tanta argúcia.

Revendo velhos arquivos à procura dessa nossa correspondência jamais relida – mas guardada na saudade com aquela doçura que, mais do que a lembrança, o esquecimento nos deixa dos sempre furtivos momentos de felicidade – verifiquei com espanto e melancolia que em 1931 cessaram as nossas cartas entre Rio–Porto Alegre. E nunca mais se renovaram! A distância, dizia La Rochefoucauld, é como o vento, que apaga as velas e ateia os incêndios. O amargo moralista aplicava a imagem apenas ao amor. Podemos também levá-la aos domínios da amizade. A nossa nasceu à distância e nela se alimentou. Quando os bons fados vos trouxeram, depois de 1930, do Guaíba à Guanabara, não para amarrar cavalos no obelisco mas para nos guiar com a vossa cultura, já começara a descer, entre nós, a cortina do silêncio que a proximidade, por vezes, engrossa mais do que as distâncias. Revendo agora essas folhas murchas da nossa mocidade – quando entrávamos lado a lado, embora à distância, na mesma aventura de um continente novo a desbravar foi como se revivesse a experiência proustiana da famosa madeleine. Marcel Proust teve um lugar de grande destaque nessas nossas cartas durante a batalha modernista. A esse Proust dedicastes aquela famosa Elegia de 1927 que me enviastes então, ainda quente do forno, e a quem dizeis:

Marcel menino mimoso, estou contigo, Proust:
............................................................................
Escuta: a vida avança, avança e morre...
Marcel Proust, diagrama vivo sepultado na alcova
o teu quarto era maior que o mundo:
cabia nele outro mundo...

Fecho o teu livro doloroso nesta calma tropical
como quem fecha leve leve a asa de um cortinado
sobre o sono de um menino...
...........................................................................

Estranha essa descoberta, que ambos fazíamos tão longe um do outro, dessa estranha figura de um fim de era que tão grande eco encontrava nos jovens do novo continente que se lançavam à conquista de um mundo novo e em nome de uma revolução de jovens – estética, política e espiritual. Pois foi tríplice essa revolução modernista a que íamos entregar as energias intatas da nossa mocidade. Intatas? Isso é que não. Se não podíamos dizer como os românticos pela boca de Alfred de Musset: “Nous sommes venus trop (tard dans um monde trop) vieux”, o que procurávamos no Modernismo não era uma iniciação mas um rejuvenescimento. Tínhamos pouco mais de vinte anos, mas carregávamos nos ombros, como essas indiátides das igrejas coloniais andinas, muitos milênios de civilização. Nossa geração envelhecera prematuramente e vinha procurar, nessa tríplice revolução, o corpo inanimado da mocidade aparentemente morta e o segredo de a ressuscitar.

A herança que recolhera da geração anterior fora a do cepticismo e da perplexidade. Vale aqui relembrar a figura, as palavras dramáticas de um dos vossos antecessores na cátedra de Francisco Otaviano a quem soubestes tão bem fazer a justiça que até hoje lhe faltara, quando pela mão de Graça Aranha, em 1906, tomou posse da Poltrona que hoje vos pertence. Refiro-me a essa requintada figura de humanista e de “humorista” que foi, como vós, J.C. de Sousa Bandeira. Dele ouvi as primeiras leituras dos versos que da Suíça lhe enviava, no exílio de um sanatório, um jovem sobrinho, cedo acariciado pelos dedos febris e glaciais ao mesmo tempo, do gênio poético e da morte pressentida. Era esse mesmo Manuel Bandeira – precursor dessa revolução literária que nos prometia reencontrarmos o tempo perdido e nos reconciliarmos conosco mesmo. E continua a ser bem vivo, entre nós, graças a Deus, o próprio símbolo, não apenas da poesia moderna, que o tempo leva, mas da poesia eterna, que resiste à monotonia da vida, mais destruidora do que a própria morte.

Foi o esquecido Sousa Bandeira uma das flores mais sutis da nossa cultura. Conheci-o aí por volta de 1910, ainda em pleno vigor de uma inteligência que recebera na mocidade o banho de fogo destruidor da Escola do Recife. Mas reagira contra a lógica implacável do seu dogmatismo às avessas. Mantinha então na Rua Barão de Itambi, a dois passos da casa onde iria morrer alguns anos mais tarde Olavo Bilac, um dos últimos salões literários do nosso Rio. A obra escassa, embora de alta qualidade cultural, que deixou, não traduz, nem de longe, o que foi a sua pessoa. É o destino por vezes dos tímidos como vós, dos dedicados como vós, dos que abominam o mundanismo intelectual como vós, tão deliqüescente como o outro... Era o homem da conversa íntima. Das alusões em surdina. Da medida e do bom gosto. Citava Goethe ou Shakespeare, no original, mas procurava apagar-se quanto podia, fazendo o possível por passar despercebido e sorrindo de todas as gloríolas.

Fiz, junto dele, noviciado do precoce desencanto de viver, da despedida dessa belle époque, que iria provocar, do outro lado do Atlântico, da boca de outro desses grandes esquecidos do naufrágio do século XIX, Charles Louis Filippe, aquela trágica palavra: “Finie la douceur de vivre, les temps de la passion sont arrivés.” E isso antes de 1914, de 1917, de 1921, de 1933, de 1939, de 1945, de 1957, de 1961, de todos os grandes acontecimentos sociais e científicos que mudaram a face da terra no decorrer de uma geração. A geração de Sousa Bandeira, como a de Graça Aranha, que o recebia nesta Casa em 1906, fora a geração da renovação “tobiática” do Recife. Mas nessa data o ambiente literário era o da frivolidade, o da literatura de salão, o da mediocridade intelectual, o do fim de um século que só iria terminar com o tiro de Serajevo e a invasão da Bélgica em 1914. Mas que no Brasil iria mesmo prolongar-se até 1916, como o refere o inigualável historiador dessa época de transição, o Sr. Brito Broca. Escreve ele quase ao fim do seu livro já hoje clássico A Vida Literária no Brasil – 1900:

Em 1914 foi a surpresa, o imprevisto: a guerra, a guerra como até então não se conhecia, conflagrando de um momento para outro toda a Europa, estendendo-se pela Ásia e África... Era o fim de uma época, de um teor de vida. La belle époque, que na Europa terminou nesse agosto trágico de 1914, teve assim para nós uma espécie de suplemento, prolongando-se no decurso da guerra...

Uma onda de futilidade, de prazeres, de inebriamento continuava a envolver o ambiente carioca, permitindo a livre expansão de uma literatura que refletia em todo o rigor da palavra, o “sorriso da sociedade” (p.253-257).

Se assim foi até 1916, que não diremos de dez anos antes, em 1906, quando ainda não havíeis atingido o primeiro lustro de vossa vida e a moda das conferências literárias, lançada por Medeiros e Albuquerque já fazia furor aqui no Rio. O “bota abaixo” não apenas mudava a fisionomia urbana do velho Rio ainda colonial e imperial da minha infância ou inspirava romances de costumes com esse título, como o do nosso saudoso José Vieira, mas anunciava o crepúsculo de uma era social. O brilho efêmero e enganoso das girândolas de uma falsa euforia não ocultava sombra de melancolia que começava a descer sobre a face dos espíritos mais lúcidos. E Sousa Bandeira era um deles. Embora o seu salão literário tivesse sido um dos centros mais brilhantes, intelectualmente, desse fim de uma era de despreocupação e frivolidade, ele próprio não tinha ilusões sobre o grande vazio recoberto por esse manto de lantejoulas. E entre gritos de guerra que haviam embalado a sua mocidade, à margem do Capiberibe, e os sorrisos despreocupados que assinalavam a despedida de um mundo, à margem da Guanabara, sua consciência arguta de observador assinalava em 1906 o vácuo perigoso que se abria para o desconhecido.

A hecatombe pré-modernista

“Entramos na vida”, dizia Sousa Bandeira no seu discurso de apresentação como sucessor de Martins Júnior, mas já tão diverso do seu mestre e amigo da Faculdade de Direito do Recife e da revolução de idéias naturalistas, “entramos na vida” com o entusiasmo de religionários de uma fé nova, acreditando que o velho mundo que víamos aluir seria prestes substituídopelo que sonharam as nossas ardentias. Chegamos, porém, à idade madura, lançamos um olhar saudoso para o passado que destruímos e ruínas vemos em torno de nossa desolação... Nossa época fez as mais terríveis e maiores demolições. Aluiu as majestosas basílicas de crenças religiosas... Destruiu o velho ideal de humanidade soberba, cheia de vaidoso orgulho de ser a senhora da criação e o centro da vida universal... Derrocou os dogmas consagrados que faziam a felicidade dos povos e tornavam fácil o governo, pelo efeito mágico das palavras. A tese sedutora da soberania popular... o poderoso prestígio do capital... a própria constituição da família... tantas coisas que pareciam eternas, são hoje postas em dúvida pelos implacáveis missionários da negação. E nesta convulsão suprema, onde tudo pareceria naufragando em uma terrível voragem de cepticismo, que ideal, que princípio apresentamos nós, os demolidores do passado, que possam consolar a atualidade da queda de suas mais caras ilusões? Nada se olharmos para o presente. Tudo se lançarmos as vistas para o futuro. Compete às novas camadas a difícil missão de regenerar a humanidade sofredora. As nossas mesquinhas discussões hão de desaparecer, as doutrinas que hoje damos como verdades assentadas hão de figurar como simples recordações históricas. A posteridade, porém, aproveitando dos nossos erros, corrigindo os excessos das nossas impaciências, dissipando os nossos temores alcançará a época em que crenças mais consoladoras surgirão sobre os destroços das nossas dolorosas negações.

Quadro doloroso e mesmo poético na boca de um homem tão hostil àquele estilo “derramado” tão cordialmente detestado pelo seu mestre Machado de Assis. Sua geração destruíra um mundo. E não sabia como reconstruí-lo. Apelava então para as “novas camadas”, para os “filhos” ainda adolescentes de uma paternidade desiludida, de negadores.

Era à nossa geração, Sr. Augusto Meyer, que se dirigia, então, o vosso insigne, e hoje, tão injustamente olvidado antecessor. Era para nós ainda imberbes então, ou na primeira infância como vós, que ele mostrava as trágicas conseqüências do espírito negador, de que a sua própria geração fora vítima depois das falsas ilusões iniciais. E convidava os jovens a uma nova aventura baseada no espírito de fé e de dignidade humana:

Preparemos, porém, a geração que ora surge para a decisiva função social que lhe está destinada. Perpetuemos nos filhos o sentimento de solidariedade humana, ensinando-lhes a zelar, como precioso patrimônio, as tradições dos antepassados. Inoculemo-lhes o austero sentimento da justiça, anítida idéia da Pátria, o nobre estímulo da caráter.

Nobres e melancólicas palavras que o vento ia levar como tantas outras! Essa geração que surgia depois do limiar do novo século era a nossa. A ela se dirigia o velho mestre desiludido. Crianças ou adolescentes em 1906 – ao serem pronunciadas essas altas sentenças de um verdadeiro testemunho espiritual – iríamos ser moços em 1922 quando se desencadeou a tormenta nordestina. Incubada durante esses vinte anos de despedida do século XIX, retardada pelo advento da primeira grande guerra, que durante mais de um lustro como que interrompeu a vida intelectual em todos os continentes –, essa onda de renovação se tripartia. Ia ser uma tríplice revolução – estética, política e espiritual. Vinha, porém ignorados contra os consagrados que formavam a gerontocracia literária dominante e herdada de século anterior, já com um ou outro valor novo, revelado durante esse período, como um Euclides da Cunha, um Lima Barreto, um Afrânio Peixoto.

Já tenho, por mais de uma vez, relembrado como esse momento pré-modernista é uma Via Ápia ladeada de túmulos. A partir de 1901, no próprio ano da revelação de Graça Aranha, que iria ser vinte anos mais tarde o traço de união entre a velha e a nova geração de 1920, começava a hecatombe dos consagrados que dominaram as letras nos quatro primeiros lustros da nossa centúria.

Em 1901 morria Eduardo Prado e com ele começava a derrocada dos generais da velha guarda. Em 1908 tombava o jequitibá da floresta, Machado de Assis. Em 1909 Euclides da Cunha. Em 1910 Nabuco. Araripe Júnior e Raimundo Corrêa em 1911. Rio Branco em 1912. Sílvio Romero em 1914. Aluísio Azevedo e Mário Pederneiras em 1915. Em 1916 Afonso Arinos. Em 1917 José Veríssimo e Sousa Bandeira. Em 1918 Bilac e Emílio de Meneses. Em 1920 Francisca Júlia. Em 1921 Alphonsus de Guimaraens. Em 1922, Lima Barreto. Em 1923, enfim, o último dos procônsules, Rui Barbosa. Mesmo os que restavam de pé, dos grandes de outrora, depois do pé de vento, como Coelho Neto, João Ribeiro ou Alberto de Oliveira, já tinham dado o melhor de sua obra e penetrado na zona do silêncio em vida.

Como que se fizera o vazio para que a caravana dos novos iconoclastas entrasse de atropelo. E permitisse o advento dos reconstrutores de que ireis fazer parte.

A experiência dos velhos nunca aproveita aos novos. Era vão aquele conselho de Sousa Bandeira –, depois de contar as suas decepções com a obra demolidora de sua própria geração – pedindo aos novos que respeitassem “astradições dos antepassados”. Os que chegaram atropeladamente eram tudo menos tradicionalistas. Tanto os avançados como os moderados, e sempre os há em todas as revoluções, falavam em nome do futuro e não do passado. O que pretendiam era precisamente romper com esse passado, especialmente o mais próximo, embora pouco soubessem do que desejavam fazer do futuro. Sabiam o que não queriam, mas pouco ou nada sabiam do que queriam. O grande público, depois da Semana de Arte Moderna, de São Paulo, em 1922, e do discurso de Graça Aranha em 1924, nesta mesma sala, tão bem evocada há tempos neste mesmo recinto histórico, por Josué Montello, dividia simploriamente os campos em passadistas e futuristas. E a nova década se anunciava não mais sob o signo da hecatombe dos consagrados, como as anteriores, mas ao som dos clamores desencontrados dos grupos em que logo se dividiram os assaltantes da tríplice fortaleza estabelecida – a parnasiana, no campo literário, a dos “carcomidos”, no campo político, a da indiferença cética, no campo espiritual.

Em duas séries de grupos se dissociaram, então, os novos pioneiros: os grupos ideológicos e os grupos regionais. Foi o famoso atrito de Oswald de Andrade, logo depois da ruptura de Graça Aranha com a Academia, que provocou a cisão das hostes modernistas. Não era uma prova de fraqueza, mas de força. O movimento era mais uma reação contra o domínio dos consagrados, da gerontocracia literária, simbolizada pela Academia, do que a afirmação de um ideal comum. Lançado o grito de guerra, os novos legionários se dispersaram, fracionando-se em pequenos grupos distintos. Os dinamistas, mais próximos do ideal futurista de Marinetti, ficaram fiéis a Graça Aranha, na revista do Movimento. Os primitivistas, mesmo protestando sempre contra o apelido, mas radicais e demolidores como os dadaístas europeus, tendo à testa, ao menos simbolicamente, a maior figura do movimento, Mário de Andrade, reuniam-se nas páginas da Revista de Antropofagia ou de Terra Roxa e outras Terras, sob o signo da poesia Pau-Brasil. Os nacionalistas, tomando como símbolo a Anta, e como tema todo o Brasil, do mais primitivo ao mais dinâmico, no grupo de Bandeira ou nas páginas de A Razão, procuravam a síntese do novo Brasil. Enquanto os espiritualistas, herdeiros e continuadores do Simbolismo, na revista Festa, buscavam acentuar o aspecto de renascimento espiritual, que partira meio século antes, de Farias Brito.

Os entretons ideológicos marcavam a sede de liberdade que inspirava os recém-chegados e era mesmo, porventura, depois da reação contra o academicismo da Literatura oficial dominante, o maior laço comum que unia a todos. Desejavam era romper os grilhões de A escrava que não era Isaura, como dizia Mário de Andrade, no título famoso de sua arte poética, escrita no mesmo ano de 1922, em que lançava ao escândalo público a sua Paulicéia desvairada.

E junto à reação antiacadêmica e à libertação das formas estéticas obsoletas, o que também unia esses grupos, divididos logo depois da vitória ou pelo menos da revolução desencadeada, era um agudo sentimento de nacionalidade. É verdade que fora, uma vez mais, em Paris, que o mais radical desses inovadores, Oswald de Andrade, recebia o impacto que o lançaria, e aos seus companheiros, na aventura do movimento Verde e Amarelo ou na poesia Pau-Brasil. Como foi ali que antes mesmo do autor de Serafim Ponte Grande, como nos informa Mário da Silva Brito, meticuloso pesquisador das origens do Modernismo no início da sua História do Modernismo Brasileiro – o escultor paulista Brecheret devolveu a revelação das novas formas plásticas recebida na Suíça. Ou que, em 1913, Graça Aranha nos aconselhava a vir lançar aqui a chama de uma renovação literária, entre os moços, por meio de um livro “Sturm und Drang”.

Paul Fort e sobretudo Blaise Centrars é que inspiraram a Oswald de Andrade os novos rumos a seguir. Repetia-se a aventura de Ferdinand Denis no início do século XIX, aconselhando os poetas brasileiros a dizer adeus às ficções de Homero, como iria timidamente fazê-lo o “romântico arrependido”, como a Gonçalves de Magalhães chamou Alcântara Machado.

Localismo e universalismo

O Modernismo, cuja feição regional e humanista vindes aqui representar, ia ser um neo-romantismo, pela analogia de suas raízes e tendências libertárias. Até mesmo por essas sugestões vindas do Velho Mundo e especialmente da França, mostrando como os santos de casa realmente não fazem milagres. Pois essa mesma advertência aos novos de se voltarem, com mais atenção, para a realidade ambiente e trocarem o mimetismo por uma criação mais original e nacional, já fora dita por muitos, inclusive por um dos mais ilustres antecessores desta Cátedra hoje tão obscuramente por mim ocupada – Afonso Arinos. Por simpática coincidência, assim como o vosso antecessor Sousa Bandeira conta hoje, entre nós, um ilustre sucessor de sua linhagem, na pessoa de um sobrinho, assim também Afonso Arinos continua entre nós na alta personalidade de um Afonso Arinos de Melo Franco.

Afonso Arinos! Nele revejo toda a minha infância, como em Sousa Bandeira a minha mocidade. Como Nabuco, era todo luz, naturalidade e harmonia. Imagens de um mundo sereno que se despedia. Crepúsculos de um dia claro e de um céu azul que as nuvens, as tempestades, os ventos, os relâmpagos e trovões iriam em breve converter em tumultuosa e angustiante paisagem do novo ciclo histórico, aberto pela primeira grande guerra. Homens dos dois mundos, presos pela inteligência à Europa e pelo coração a Massangana ou a Paracatu, iam transmitir a nós outros, Sr. Augusto Meyer, a nostalgia perene do transoceanismo e a paixão de universalidade fundidas indissoluvelmente ao apego a um manso rincão sulino ou a um verde bairro carioca, aldeia de cidade grande.

Antes que os homens de além-mar viessem alertar a nossa geração dos perigos do cosmopolitismo, já esse filho das Gerais advertia aos escritores patrícios, em 1894:

Aceito, pois, a influência estrangeira em nossa Literatura, mas nãoaceito o modo de sentir nem a forma estrangeira... Pode o artista nacional, sem perder o cunho nacional, escrever sobre seu País ou sobre outro, sobre
o presente ou sobre o passado... (Mas) desde que uma obra literária não seja um “simples brinco da imaginação... deve corresponder ao estado de civilização de cada povo”.

E o que pretendia nos seus contos do alto sertão era transmitir a outrem um pouco das impressões colhidas na Natureza alpestre, selvática e brutesca do grande planalto central do Brasil, um pouco de perfume da charneca das paixões bravias desses homens que moram a duzentas léguas do litoral, sem lei nem grei, habitadores de tugúrios à beira dos rios ou de palhoças batidas de vendavais, pendurados em vales estreitos, sem outros tetos que não a folha do indaiá ou do baguaçu, sem outras paredes que não vigas de pau-a-pique, unidos, dormindo em giraus sobre couros de jaguares ou de lobos. (Histórias e paisagens, p. 226.)

E no ano seguinte, em 1895, falando em Ouro Preto numa comemoração a Cristóvão Colombo, renovava o seu apelo a um nacionalismo universalista, dirigindo-se à mocidade brasileira:

Eu, porém, me dirijo principalmente à mocidade... Nós somos já:ela precisa ser mais ainda brasileira. Não no sentido exclusivista e brutal, que se não compadece com a moralidade do século e que, na Grécia, foi a causa da sua ruína política. Mas no sentido generoso e humano, moralizador e científico, que os pensadores modernos atribuem ao concurso ou à colaboração de um povo na obra coletiva do progresso humano. (Notas do dia, p. 66.)

Como era possível ainda falar com tanta serenidade, com tanta confiança no futuro! Como era possível falar sem o peso do pessimismo sombrio nem o delírio das euforias alucinadas, que iriam se suceder no século novo e que a nossa geração veio a viver, quando foi chamada, por seu turno, à participação do drama existencial moderno.

Sim, a voz dos nossos antecessores nestas duas cátedras que hoje aqui se defrontam, Sr. Augusto Meyer, já abria para os seus sucessores pequenas nesgas nos sombrios e trágicos horizontes em que nossa geração ia lançar-se, depois de um crepúsculo suavíssimo, na aventura sangrenta de 1914. Nacionalismo e cosmopolitismo, regionalismo e humanismo, desapontamentos e humour, simbolismo e socialismo, cultura requintada e barbaria sertaneja, tudo o que vossa obra representa já reponta imprecisamente nessa transição de séculos, no meio da despreocupação ou na futilidade ambientes. Nós, porém, ainda nada percebíamos do que se passava em torno. Empinávamos papagaios ou bebíamos alegria nas taças de cristal das manhãs azuis, como vós o fazíeis lá no Sul e nos contrastes com tão pura beleza, naquela ciranda infantil que o vosso poema evoca:

Ciranda

A manhã azul é uma grande taça de cristal
sobre a alegria loura do arrabalde.
Moças de vestido branco, em charia clara
passaram na manhã cheia de aromas frescos
(havia orvalho nas corolas).
passaram na manhã.

Vertiginosa ronda, as mãos entrelaçadas,
entre a poeira fina,
ingênua ronda e risos de alegria
as crianças dançam loucas sarabandas:
Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar...

As janelas riem pelas vidraças, onde treme
a nesga azul de um céu macio;
nas poças de água bóiam painas soltas de nuvens
e espirradeiras jorram de entre as sebes.
(As mãos entrelaçadas na vertigem louca,
nós também dançamos,
nós também colhemos a vertigem boa
de quem dança a vida numa sarabanda...).

Enquanto dançáveis, entretanto, nos vossos pagos sulinos, a ciranda louca da vossa infância – nascido que fostes em 1902, com o nosso século –, as águas mansas do velho século silenciosamente para a voragem que se abriria em 1914, mergulhando o mundo por quatro anos a fio num inferno de lama e de fogo sem precedentes. E do meio dele ia ouvir-se uma voz, uma surda voz desconhecida, que vinha de São Paulo e lançava anátema contra os cavaleiros do Apocalipse desencadeados sobre a humanidade. Como tê-lo contra o fiel historiador do nosso Modernismo, já citado, Mário da Silva Brito:

O clima nacional era francamente aliadófilo. A França, sobretudo por suas ligações culturais com o Brasil, gozava das nossas simpatias. É nesse ambiente de brios nacionalistas exaltados e de oposição ao militarismo germânico – afora os interesses econômicos que ligavam o país aos adversários da Alemanha – que Mário de Andrade, tímida e medrosamente, escondido sob o pseudônimo de Mário Sobral, publica o seu primeiro livro, que é de versos (parnasianos, acrescentamos nós), Há uma Gota de Sangue em cada Poema. Sua poesia inspira-se na guerra, brota do próprio conflito universal” (História do Modernismo Brasileiro, p. 67), mas para lançar um apelo à paz e descobrir-se a si mesmo. “Apesar de julgar Há uma gota de sangue em cada Poema" , seu primeiro detestável livro, Mário de Andrade não o renegava, quando já escritor feito. O livro, para ele, tinha significado todo especial. Levara-o à descoberta de si mesmo e ao rompimento com o passado (op. e loc. cit.).

Mal sabia o menino magro e ruivo de Porto Alegre, filho de imigrantes, educado na severa disciplina de uma formação moral e intelectual germânica, mas já profundamente impregnado de sabor local e curiosidade universal, que no âmago desses anos despreocupados de sua infância no início do século ou durante os acontecimentos catastróficos de sua adolescência de 1914 e 1918, se preparava uma revolução que o iria também envolver na sua voragem abrangendo cedo os cantos líricos das cirandas infantis.

Pois o Modernismo não foi, para vós, Sr. Augusto Meyer, uma simples festa do espírito, ou apenas a vaidade fácil de substituir a velha guarda, ou o gosto infantil do escândalo. Sendo, como notório, um dos raros autênticos mestres do humour em nossas letras, sois, por isso mesmo, um espírito extremamente sério e profundo. Não daqueles que confundem seriedade com enfatuação, ou profundeza com solenidade. Os homens verdadeiramente sérios são aqueles que sabem rir. Mesmo que o riso seja o pince sans rire dos franceses ou o humour dos ingleses, como tão bem se fundiram um e outro, em vossa singularíssima personalidade, ao misticismo das raízes germânicas da vossa estirpe, de sangue e de espírito.

Sois a confluência feliz dessas três correntes universais, unidas pela marca profunda do vosso torrão natal, desses pagos gaúchos, de que sois hoje, sem a menor dúvida, uma das mais altas e puras expressões culturais em nossa terra. E já agora também no plano da Literatura Universal, em que as Letras brasileiras começam apenas a ingressar, por obra de alguns espíritos requintados como o vosso.

Há, em toda a vossa obra, a marca dessas três influências universais. Da velha Germânia não recebestes apenas o sangue, trazido por esses louros imigrantes fixados no extremo Sul do país e de cuja união, tanto lá como em outros lugares do Brasil, brotou justamente um dos elementos típicos da geração modernista. Refiro-me ao aparecimento, nessa geração, de nomes expressivos dessa massa imigratória não lusitana, que vinha enriquecer os ingredientes da nossa miscigenação. Foi com a geração modernista que surgiram os Menotti del Picchia, os Raul Bopp, as Anita Malfati, os Brecheret, os Sergio Milliet, os Agripino Grieco, os Sud Menucci, os Augusto Frederico Schmidt, os Afonso Schmidt, os Portinari, os Di Cavalcanti, os Cecílio Carneiro (tradução brasileira do seu nome árabe), os Vianna Moog, os Hamil Addad, os Jorge Medauar, as Clarice Lispector, e outros. O nome de Augusto Meyer é estrela de primeira grandeza nessa constelação de filhos ou netos de imigrantes, que galgaram em uma ou duas gerações o degrau que os levava à condição de representantes típicos da mais elevada cultura da nova nacionalidade luso-afro-indo-brasileira.

Da velha Germânia, repito, não trazeis apenas o sangue. Vossa obra traduz um segundo momento do germanismo em nossas Letras. O primeiro, como todos sabem, foi representado por aquela Escola do Recife, de onde vinha não só o vosso predecessor Sousa Bandeira, mas principalmente Martins Júnior, a quem Bandeira sucedera e não chegou a tomar posse. Fora ele um dos mais típicos representantes do germanismo negativista de Tobias Barreto. Como fora este, poucos anos depois da guerra de 1870, que em 1874 dirigia ao redator do Deutsche Zeitung, do Rio, aquela famosa carta em que pregava a necessidade de uma deslocação do eixo cultural brasileiro, da França para a Alemanha.

Surge o poeta

“A Alemanha é no Brasil inteiramente desconhecida”, escrevia Tobias Barreto em 1874.

Antes da guerra alemã-francesa, cujo mérito consiste em uma transformação das instituições, em uma passagem do Império, do lado das nações românicas para o lado das nações germânicas, era compreensível que venerássemos a França... Desde 1871... não só na luta bélica, mas também na luta espiritual, os franceses foram superados e atirados em segunda linha...A despeito de tudo isso, os grandes feitos da guerra não tiveram entre nós influência alguma. Descuidosamente continua o Brasil a ser um satélite da França... E é por isso que as Letras Brasileiras padecem da indigência de uma própria vida substancial. (Estudos alemães, cap. XIV.)

Esse deslumbramento pela cultura germânica, pela Kultur bismarckiana, foi o primeiro momento do germanismo em nossas Letras. Para Tobias Barreto, a vitória militar era o símbolo da superioridade cultural. E a substituição da tutela francesa pela impregnação profunda da cultura germânica era, para o chefe da Escola do Recife, a lição de guerra de 1870 para as Letras Brasileiras. A conseqüência desse deslocamento, embora só muito em parte conseguido, foi o quadro desolador que um discípulo da Escola traçou e há pouco reproduzido em algumas de suas expressões mais desoladas. “Lançamos um olhar saudoso para o passado que destruímos, ruínas, somente ruínas, vemos em torno da nossa desolação”, exclamava Sousa Bandeira no discurso de 1906.

A obra de Kulturkampf foi a expressão do germanismo demolidor e redundou no Nazismo.

Outro, muito outro, senhor Augusto Meyer, é o vosso próprio germanismo. Não só – longe de excluir as componentes latinas e anglo-saxônicas da vossa complexa personalidade –, não só a elas se aglutina mas ainda representa uma outra vertente oposta à do naturalismo anti-transcendental proclamado pela Escola do Recife. É uma longa linha fluida e cristalina, de espiritualidade mística, de inquietação metafísica e de poesia pura, que vem de Ruysbroek, o Admirável, uma de vossas leituras prediletas, passando por Goethe, Schiller, Herder, Novalis, Holderling, Heine, Nietzsche, até desaguar em nossos dias num Stefan George, num Scheler, num Husserl, num Heidegger, num Jaspers, num Thomas Mann, e até mesmo naqueles que representam, em nossos dias, a Fé reconquistada, num Peter Wust, num Romano Guardini, num Theodor Haecker.

Não chegastes totalmente até esses últimos, bem o sei, por experiência própria e por tudo o que trocamos de mais íntimo em nosso ser naquela nossa inesquecível correspondência, que andei relendo há dias, depois de vinte anos de silêncio! E com que emoção!

Era em 1927. Havíeis publicado, um ano antes, o vosso Coração Verde, que eu recebera com entusiasmo de jovem crítico ansioso por descobrir valores novos. Vi no vosso livro a entrada do Rio Grande na avançada modernista, em que já se alistara Raul Bopp.

Desde o início do século que aquela primazia do Norte em todos os movimentos literários de nossa história intelectual, parecia ceder à pressão do Sul. Foi com o Simbolismo que os ventos mudaram. Embora ainda fosse do Ceará que, no acaso do Império e pela palavra de um filósofo como Farias Brito, no prefácio dos seus Contos Modernos, de 1889, se lançam as bases de uma nova estética, que seria a do Simbolismo foi no Sul, em Santa Catarina, no Paraná, no Rio Grande do Sul, que o simbolismo tomou vulto. No mesmo ano de 1900, em que um baiano, ainda desconhecido e mais tarde famoso, Júlio Afrânio Peixoto, fazia imprimir em Leipzig e nas sete cores do arco-íris a prosa simbolista da Rosa Mística, um gaúcho, Adalberto Guerra Duval, fazia imprimir em Bruxelas os versos de Palavras que o Vento Leva. “Uma novidade havia nessa obra que, em tal época, fez arrepiar de surpresa, desdém, revolta e também agrado: o verso livre pela primeira vez tinha entrado em nossa poesia.” (Andrade Murici, in A Literatura do Brasil, III, 1957.)

Até então o Rio Grande do Sul não figurava na Literatura Brasileira. Embora já possuísse, desde 1834, poetas e prosadores, de que hoje estamos bem informados depois dos estudos histórico-literários de João Pinto da Silva, e sobretudo depois da obra memorável de Guilhermino César, a História da literatura do Rio Grande do Sul (1956), foi com o Simbolismo, paradoxalmente, que os gaúchos vieram ocupar uma posição de destaque nas Letras nacionais. Digo paradoxalmente porque o Rio Grande sempre foi, de todas as regiões do arquipélago político e cultural brasileiro, a zona heróica da fronteira, de espírito positivo e democracia militante, mas sem qualquer ressonância intelectual e muito menos poética. E o Simbolismo foi, por definição, uma estética alada, distante, nebulosa, onírica, afastada das realidades concretas e do espírito político e militar, tradicionalmente, por essa estética anti-realista que o realismo psicológico do gaúcho se apaixonou. Fala, ao menos, do gaúcho convencional, tal como o resto da nacionalidade considerava pela tradição histórica e pelas companhias gloriosas do passado. Esperávamos dos gaúchos uma literatura heróica mas não uma literatura simbólica e evanescente. Foi, ela, entretanto, que nos deu, e com uma exuberante riqueza de poetas e uma sutilíssima utilização da linguagem lírica, a geração de Marcelo Gama, de Eduardo Guimaraens, de Homero Prates, no início do século, e por ocasião do Penumbrismo, por volta de 1911, a grande e pura poesia de Álvaro Moreyra ou de Felipe de Oliveira, já nos umbrais do Modernismo. Foi uma grande geração de poetas, que vieram enriquecer, no Rio, o escasso grupo dos simbolistas postos à margem desde a constituição da Academia, como poetas acidentais e puramente excêntricos.

E como o Simbolismo foi a preparação do Modernismo, podemos dizer que de vossas paragens, senhor Augusto Meyer, é que nos veio e espírito das novas gerações, da nova poesia, da estética revolucionária de 1922, embora em São Paulo e depois no Rio é que o movimento praticamente foi desencadeado.

Informa-nos o Sr. Péricles Eugênio da Silva Ramos, talvez o mais arguto crítico da nossa Poesia moderna, no magnífico estudo que escreveu sobre o Modernismo na Poesia (para A Literatura no Brasil, sob a direção de Afrânio Coutinho, vol. III, p. 602), que Guilherme de Almeida esteve, em setembro de 1925, em Porto Alegre, onde proferiu sua conferência “Revolução do Brasil pela Poesia Moderna”, na qual preconizava “o abrasileiramento da nossa poesia com o uso de assuntos nacionais e o abandono das influências e modelos estrangeiros”.

Pela palavra do atual Príncipe dos Poetas e um dos participantes da Semana da Arte Moderna de 1922, a mensagem modernista chegava ao Rio Grande. Não sei até que ponto a presença do Guilherme de Almeida em Porto Alegre, em 1925, influía na publicação, no ano seguinte, do vosso Coração Verde, que abria à nova estética as coxilhas do Sul.

O que sei é que esse livro representou para vós um verdadeiro renascimento. Depois daquela infância estudiosa a que antes me referi, entrou em vós o demônio da leitura. Tudo acaba em livro, dissera aquele Mallarmé, que foi uma das vossas paixões, na poesia moderna. Para vós, tudo começou pelo livro. Por anos seguidos, antes de encontrar em Cachoeira a Sara dos vossos poemas, aquele “Grande amor” de que enternecidamente faláveis, em mais de uma de vossas cartas, e tem sido até hoje a vossa admirável Carolina, por anos seguidos vivestes trancado em casa, sem quase sair do vosso quarto, mal vendo a luz do dia, como um autêntico lobisomem! Nada mais restava das cirandas de outrora. A infância livre, em contato com a terra verde, no meio do gado chucro, recebendo nos cabelos infantis o orvalho das madrugadas – que irá ser um dos temas de vossa futura poesia –, ficara aparentemente abolida para todo o sempre. Só nos livros encontráveis agora os vossos companheiros. Só com eles conversáveis. Só neles íeis buscar a água fresca que, em criança, havíeis bebido nas fontes dos bosques úmidos. Absorventes estão, entre as paredes do vosso estúdio, grande parte de tudo que a humanidade concebera e legara à posteridade nos idos de outrora e nos tempos modernos. Tanto o que nos viera da alma do povo, e iria explicar o vosso assombroso conhecimento folclórico, como o que nos legara o gênio dos grandes faróis da humanidade, e explica o vosso versadíssimo humanismo –, tudo isso durante anos seguidos passou das estantes mudas para a vossa insaciável curiosidade intelectual.

À medida que a vossa memória e a vossa inteligência, na solidão da cité des livres, se enriqueciam assim como o patrimônio cultural dos séculos, o vosso corpo minguava, minguava, quase sem alimento, pois invertíeis a máxima de Sancho – primo vivere deinde philosophare, por um primo philosophare deinde vivere, de essência quixotesca. Ao cabo desses anos de reclusão livresca estáveis reduzido à figura esquálida de um cavaleiro da triste figura. Alarmáveis a vossa boa Mãe. O médico, tomando do vosso braço temeu quebrá-lo. Estáveis reduzido a um cadáver ambulante vítima de uma espécie de acromegalia cultural. Desconfio que vem dessa época a vossa aversão aos gordos, que é um dos leit-motives do vosso humour.

O Rio Grande e o Modernismo

Graças a Deus atendestes aos rogos maternos e aos preceitos médicos. Fostes para o campo recompor as forças físicas. Retomastes o contato com a terra boa, a terra farta, a terra verde da campina. Trocastes as folhas impressas pelas folhas naturais e voltastes a contemplar com os olhos da criança que a avalancha livresca não conseguira asfixiar em vosso coração a querência natal:

Querência

Paisagem longa, na ondulação das coxilhas
Debruns de caponetes...
Longes...

Oh! linhas suaves, como se houvesse
em cada coxilha uma saudade do chão
e alvos capões de nuvens muito brancas
no pampa azul de um infinito azul.

Vosso coração se abria ao coração verde dos pagos natais. Vossos olhos, longo tempo encadeados, soltavam-se livremente pelos largos horizontes sem fim dos vossos pampas. Vossas narinas por tantos anos afeitas ao morno hálito do couro, da cola e do papel, arregaçavam-se avidamente ao acre perfume da erva fresca ou àquele “cheiro da terra quente quando começa a chover” de que falava Catulo. Ao vosso amigo, o poeta Teodomiro Tostes, da futura Novena à Senhora da Graça (1928), devoto como vós mesmo e como nós todos a esse tempo, de Omar Khayyam, escrevíeis então:

Théo, de que vale Omar Khayyam?
Vem ler comigo o poema da manhã azul.

Olha o nimbo de luz que há na espuma das nuvens,
a carícia do vento esfolha as rosas murchas.

Volutuosa indiferença dos que vivem...
Teu passo esmaga as folhas mortas do pomar.

Mas, na vinha, que parece ressequida,
a seiva amadurece para o cacho
e o cacho amadurece para o sangue.

De que vale, pois, o teu Khayyam,
quando a vida chama, quando a vida é bela?
Vem ler comigo o poema azul desta manhã.

Era dessa redescoberta da terra natal e da alegria de viver que vosso Coração Verde ressumava, e aqui nas margens da Guanabara o recebi com um cacho de uvas frescas e orvalhadas vossas vindimas do Sul.

Vossa poesia livre, pura, matinal, telúrica, respondia perfeitamente aos anseios de liberdade que Manuel Bandeira lançara desde o seu “Carinho triste”, de 1913. Fora também o apelo de Ronald de Carvalho, em 1922, nos seu Epigramas Irônicos e Sentimentais, ao aconselhar ao poeta:

Cria o teu ritmo a cada momento
Cria o teu ritmo livremente
como a Natureza cria as árvores e as ervas rasteiras.
cria o teu ritmo e criarás o mundo.

Tudo isso que a poesia nova vos segredava, no fundo do vosso tugúrio de sábio precoce, vos levou também a retomar contato com a terra gaúcha, a terra da vossa infância, abandonada pela tentação da cultura universal.

O amor atávico do rincão nativo, que vinha de longe, de Araújo Porto-Alegre, ao longo do século XIX, repontava ardentemente nesse tronco esguio e ruivo, prematuramente ressecado pela sede invencível da curiosidade fáustica do conhecimento.

Foi durante a vossa infância e adolescência, nas primeiras décadas do século, que o regionalismo rio-grandense tomou vulto e se revelou mesmo a todo o Brasil, na pessoa de um grande prosador que em 1916, ao tomar posse na sua Cátedra nesta Academia, vinha consagrar aquela revelação do gauchismo literário, com que o Simbolismo surpreendera o pequeno público que então se interessava pelas Letras. Nesse discurso podia Alcides Maia dizer, com certo orgulho, que pela primeira vez as portas da Academia se abriam aos escritores gaúchos:

Era justo que o Rio Grande do Sul fosse representado aqui: o gaúcho defende e mantém, nas fronteiras do Sul, a obra titânica do bandeirante. Ele é o irmão do sertanejo. Sirva de amparo ao meu áspero e rude regionalismo
essa verdade de sangue, de sacrifício e de sentimento comum.

Hoje mudou muito o panorama. Vindes encontrar aqui um triângulo de grandes artistas da pena e da palavra, na pessoa de vossos conterrâneos, João Neves da Fontoura, Álvaro Moreyra, Vianna Moog. Como eles vindes formar um douto quadrado gaúcho com um orador, um poeta, um romancista e agora o humanista lírico. À espera que outros e dos maiores, como Érico Veríssimo, consintam em vir sentar-se aqui à sombra amiga e venerável do nosso fundador. Quantos nomes marcantes em vossas Letras desde o Simbolismo? Marcelo Gama, Eduardo Guimarães, Homero Prates Neto, Athos Damasceno Vieira, Rui Cirne Lima, Sotero Cosme, Paulo Correia Lopes, Mansueto Bernardi, João Pinto da Silva, Teodomiro Tostes, Dionélio Machado, Reinaldo Moura, Armando Câmara Brito Velho, Miranda Neto, Moacir Velinho, Carlos Dante de Morais, Pedro Vergara, Ernâni Fornari, Paulo Hecker Filho, Ivan Pedro Martins e tantos outros ainda, pois apenas exemplifico, na Poesia, no romance, no Teatro, na Crítica, na História Literária, assinalaram neste século a entrada vitoriosa das Letras gaúchas, até então praticamente ausentes, na sinfonia das Letras nacionais.

Em 1926, nesse mesmo ano em que, em Porto Alegre, o vosso Coração Verde marca a entrada do regionalismo gaúcho de tipo da revolução modernista, já que Raul Bopp, logo no início, se incorporou ao grupo paulista, realiza- se no Recife o I Congresso Brasileiro de Regionalismo, sob a inspiração de Gilberto Freyre, que lança nesse momento o seu Manifesto Regionalista nordestino e mesmo lançado contra o Modernismo, acusado por ele de cosmopolita. Nesse ano de 1926 os dois regionalismos, o nordestino, pela palavra de Gilberto Freyre, e o gaúcho, pelo vosso Coração Verde, se integravam no movimento modernista geral. Às diferenças de grupos ideológicos, vinham somar-se as dos grupos regionais – paulistas, cariocas, gaúchos e nordestinos, que iriam formar a fase inicial do Modernismo.

Vosso Coração Verde, por conseguinte, era uma etapa essencial, tanto na história de vossa própria evolução estética pessoal, como na da poesia moderna brasileira em geral.

Para vós, era a salvação do ensimesmamento, ou da supercultura pela volta à terra. E o excesso de leitura pode levar facilmente à esterilidade criadora. Para o Modernismo, era a acessão de mais uma região cultural no movimento de incorporação de rejuvenescimento e de totalidade nacional que buscava. Por mais que vossa modéstia proteste, sois um marco em nossa história literária.

Confidências epistolares

Data de 1927 a nossa correspondência. O jovem crítico carioca recebera com encanto o vosso idílio campestre. Vós, por vosso lado, leitor de Proust, como de tudo mais, durante esses anos de reclusão puramente bibliográfica, encontráveis muitas afinidades com certas páginas do vosso correspondente e especialmente numa carta conferência desse mesmo ano de 1927, sobre o autor de Jeunes Filles en Fleur. Durante um ano a coincidência de pontos de vista foi perfeita. Mas não durou muito o idílio epistolar. Em 1928, quando o vosso correspondente carioca vos comunicou que chegara ao termo de um duelo epistolar com Jackson de Figueiredo, reintegrado no Catolicismo, só vos faltou responder-me: “Tristão, caiu-me a alma aos pés.” Só muito a custo podeis compreender o meu “adeus à disponibilidade”, de dezembro de 1928, quando um ano antes, em carta de 10 de dezembro de 1927, me escrevíeis: “Compreender. Toda a vida eu estarei no estado de disponibilidade compreensiva ... Compreender já é quase amar. Amor é integração.”

Éreis, então, como hoje, pois o tempo parece não vos ter tocado, um rapaz ruivo e sério. Tímido, reservado, discreto, descarnado, tão diferente desse gaúcho convencional cujo retrato ireis mais tarde tão fortemente condenar em Euclides da Cunha (cf. Prosa dos pagos, p. 38):

A imagem pletórica do gaúcho, desenhada a traço grosso por Euclides da Cunha, sem mais leve pudor crítico, merece severa análise do ponto de vista do seu contágio enfático, da sua leviandade enfunada, que tanto impressionou os leitores incautos da minha geração. Muito pode a retórica: deve-se principalmente à influência de Euclides da Cunha a difusão desse clichê – o gaúcho entonado e pachola.

A 18 de abril de 1928 me escrevíeis de Porto Alegre:

Desejo de conversar com você. A sua indulgência é tão grande... Já notou que o estado constantemente introvertido leva a uma espécie de diálogo interior que no fim se torna quase doloroso? Escrevendo a v., até certo
ponto me depuro, me liberto... Serei apenas um diletantesco? Um hedonista?...Uma coisa é certa: a minha repulsa pela forma imposta, pelo dogma, Jorge Simmel já explicou essa antipatia como fazendo parte da inquietação moderna. V. cita nos Estudos a frase de Marcel Arland: “Nenhum sistema satisfaz e a ausência de um sistema me angustia.” Creio que nada me revela melhor a mim mesmo. A vida para mim não possui sentido fora do “vértice”, da afirmação pelo amor e pela crença. Mas não compreendo a atitude dogmática. Ela me parece uma parcialidade inadmissível... O que há de triste no meio brasileiro por enquanto é a falta de raiz mística (sic), tudo se pretende resolver segundo um “esquema spenceriano”, primário, calculado. O Progresso, etc., etc. Somos tão chatamente
materialistas como os americanos do norte, que afetamos desprezar. Eu me sinto constrangido no meio destas “odes ao Progresso” (P grande) – (hoje se diriam, digo eu, odes ao Desenvolvimento...), tanto mais quanto já comunguei na mesma Igreja – aliás, já fui tudo e não sou mais nada – positivista, anatoleano, americanista lírico, progressista, separatista (!)... Agora me declaro “ipsista”, como diz o Raul Bopp. Mas um ipsista que procura alargar o horizonte até destruir o seu ipsismo. No fundo preocupado com matar todo e qualquer espírito de negação, o que é um programa para a vida inteira.

E de fato iria ser, pois sempre resististes à tentação do cepticismo. Viestes a construir uma das obras humanísticas mais consideráveis da nossa história intelectual. Como era diferente o vosso germanismo do de Tobias Barreto. Como se abeberava em fontes do espírito e não da negação da espiritualidade, e chegava a uma obra criadora e não demolidora. Já então, como se vê por essa carta, havíeis de novo perdido aquela infância reencontrada no Coração Verde. O vosso segundo livro, Giraluz, desse ano de 1928, com poemas dos dois anos anteriores, já nos revela um Augusto Meyer cheio de angústia, debruçado sobre si mesmo, num narcisismo trágico e não vaidoso, procurando no espelho das fontes, não mais o frescor das águas cantantes, mas a imagem refletida do vosso próprio eu à procura de um não-eu que sempre lhe foge. “Espelho” é o título do primeiro desses vossos novos poemas, como ia ser um tema que voltará continuamente à vossa inquieta introspecção:

Quem é esse que mergulhou no lago liso do espelho
e me encara de frente à claridade crua?
Tem na íris castanha irradiações misteriosas,
e o negrume do sonho alarga tanto as pupilas
que o seu lábio sensual como um beijo esmaece
Abro a mão – ele abre a mão.
Meu plagiário teimoso...
Tudo o que eu faço morre no gelo de um reflexo.
(ele sorri do meu sarcasmo...)
Não poder fugir da introversão,
tocar a carne da evidência!
Dói-me a ironia de pensar que eu sou tu, fantasma...

Toda a inquietação do homem moderno, à busca de si mesmo, que foi a da nossa geração e nos acompanhará, mesmo depois das opções transcendentais, está retratada nesses vossos poemas. Como o estão os vossos sentimentos mais íntimos. Já agora com uma arte aprimoradíssima do vocabulário. Uma poética que atingiu o grande ideal da poesia mais autêntica. O lavor do poeta joga admiravelmente com as palavras e, longe de destruir, multiplica a naturalidade dos movimentos de espírito. Se o vosso espírito crítico procura e consegue captar o que há de essencial na obra de Camões, de um Rimbaud, de um Machado, o vosso espírito poético destaca o que há de mais sutil e efêmero na realidade. Assim me escrevíeis, em 5 de março de 1928, ao me mandar alguns dos poemas do livro a aparecer: “Procuro envolver cada poemeto numa franja de capricho. Nada mais sistemático. A voz do momento. O tremor do fugitivo... Para o autor não existe mais imprevisto nem mistério, na obra feita. Pertence ao definido, ao fixado, ao morto. Só no “vir a ser” há beleza. Talvez um dia eu possa deixar esta mania de matar a realidade e viver na pura contemplação. Porque eu nunca me encontro na limitação do verso ou da frase.

E o que me dizeis na intimidade de uma carta, a vossa arte incomparável do verso traduzida em poemas admiráveis e vindos tanto da perfeição da inteligência manipuladora como do sentimento profundo, como este:

Cigarra, eu também não tenho carne nem sangue eu sou tão leve
que às vezes sinto uma saudade humana do chão.
Uma gota de orvalho me embebeda,
um raio de sol me coroa,
a nuvem que passa me chama,
e eu lá vou, coisa passiva e boa,
ébrio de vento e de volúpia,
sem saber, sem lembrar – à-toa...
Amo tudo que é móvel e flutuante
porque os meus olhos não se fecham sobre a imagem
e as minhas mãos têm orgulho das corolas vazias...
Ah! viver como um reflexo
no movimento facílimo das ondas!

Viver na dispersão total do esbanjamento
Depois,
deitar o corpo na terra,
ouvir a voz embaladora
do vento bom no capim:

– Dorme dorme que eu te embalo,
no chão escuro há uma luz
há um sol claro de perdão
Dorme dorme, nina-nana,
hás de voltar para o chão...
Fecho os meus olhos sobre o mundo – quanta luz!
(Esta voz embaladora
é o vento bom no capim?)
Fecho os olhos para o sol
Quanta luz dentro de mim!

Retrato final

Como quisera citar, citar, citar, substituindo o milagre da poesia a estes pálidos comentários. Citar os vossos poemas e citar os vossos próprios comentários íntimos das cartas. Como quando em julho desse mesmo ano de 1928, me dizíeis: “Perdi aquela confiança ingênua e pueril que madrugara nos meus contos. Agora mais do que nunca me procuro. Acima de tudo eu sinto que é preciso abençoar estes momentos em que ‘a semente apodrece’. Esperar.”

O poeta se lança mesmo à ação nessa procura de si mesmo... fora de si, já que não se encontra mirando-se no espelho interior.

Em dezembro de 1928 me dizíeis:

Tenho vivido, meu querido Tristão, aos trancos e barrancos. Uma espécie de “fuga exterior” me arrasta a tapar os ouvidos ao único problema digno de nossa dolorosa atenção. Acompanhei meu amigo Osvaldo Aranha nas suas excursões políticas ao interior do Estado, imaginando deixar em casa o Eu que me atormenta. Ingenuidade de animal ferido. O espetáculo dos meios políticos não é dos melhores para a saúde espiritual. O bicho homem aparece aí em toda a sua imbecilidade suprema, coronelícia, quase milagrosa. Cada sujeitinho prestigiado imagina que o centro do universo está no seu umbigo. Volta-se com nojo da raça, eis tudo... Daí mesmo, Tristão, este meu desejo de passar algum tempo na exterioridade, na casca, na superfície amável das coisas. Tenho medo de me olhar. Compreende?

Foi então que surgiu em vossa obra esse estranho Bilu, que tanto tem dado que falar aos vossos críticos. Não tentaria sequer a sombra de uma exegese desse vosso heterônimo, um pouco a jeito desse Fernando Pessoa, que lá do outro lado do Atlântico lutou a vida inteira contra essa dissociação da personalidade que foi porventura o tema central da nossa geração, do ponto de vista psicológico. “Enquanto fizer versos há de me acompanhar o Duplo que nega tudo e a ironia da duplicidade estética”, escrevíeis em vossa carta de 7 de julho de 1929.

Bilu era o lado garoto dessa vossa multiforme personalidade que toca simultaneamente e com a mesma absoluta maestria em três teclados: no mágico da poesia, no lúdico da crônica ou do ensaio e no lógico da crítica. É isso, justamente, que faz de vós um dos mais completos humanistas da nossa história literária.

Como os poemas pirotécnicos de Bilu, o que afinal queríeis significar era o vosso desacordo com o niilismo da corrente “antropofágica” do Modernismo, dando a entender, por simples “humor”, que estáveis de acordo com ela naquela famosa “carta aberta”, de que foi portador Barreto Leite e contra a qual logo protestei. Em vossa carta de 12 de setembro de 1929, explicáveis a vossa posição:

Sobre a tal carta aberta, queria observar a V. que não deve levar muito a sério uma (coisa) de momento, escrita para chocar a segurança pétrea do antropofagismo, para irritar o Bopp, feita visadamente, com ares de eqüidade, uma ração para isto, outra para aquilo. V. deve saber que eu estou muito mais perto de v. do que daquela ninhada histérica de originalismos fáceis, com exceção de Bopp, personalidade representativa e forte, talvez a mais curiosa... Releia com atenção (a carta manifesto) e verá como tudo ali é paródia irônica, intenção de ricochete e pura malandrice. A não ser, repito, profunda amargura de acento, que há em toda ela.

O que dizíeis da vossa carta manifesto pode-se dizer dos vossos Poemas de Bilu, admirável realização poética, em que o vosso poder de versificar alcança a mais alta, a mais polida, a mais aguda penetração tanto nos poemas malabarísticos como naqueles em que se retrata toda a vossa personalidade e todo o sentido ao mesmo tempo pessoal, regional e universal que existe em vossa poesia. Permiti que cite, para terminar, esse admirável “Minuano”, já agora uma das páginas clássicas da nossa poesia de todos os tempos, e de que em Literatura Poesia nos destes também uma versão em prosa:

Minuano

Este vento faz pensar no campo, meus amigos,
Este vento vem de longe, vem do pampa e do céu.

Olá compadre, levanta a poeira em corrupios,
assobia e zune encanado na aba do chapéu.
Curvo, o chorão arrepia a grelha fofa,
giram na dança de roda as folhas mortas,
chaminés botam fumaça horizontal do sopro louco
e a vaia fina fura a frincha das portas.
Olá compadre, mais alto mais alto!

As ondas roxas do rio rolando a espuma
batem nas pedras da praia o tapa claro...
Esfarrapadas nuvens galopeiam
no céu gelado, altura azul.

Este vento macho é um batismo de orgulho:
quando passa lava a cara enfuna o peito,
varre a cidade onde eu nasci sobre a coxilha.
Não sou daqui, sou lá de fora...

Ouço o meu grito gritar na voz do vento:
– Mano poeta, se enganche na minha garupa!
Comedor de horizontes,
meu compadre andarengo, entra!

Quem bem me faz o teu galope de três dias
quando se atufa zunindo na noite gelada...

Ó mano
Minuano
upa upa
na garupa!

Casuarinas cinamonos pinhais
largo lamento gemido imenso, vento!
Minha infância tem a voz do vento virgem:
ele ventava sobre o rancho onde morei.
Todas as vozes numa voz, todas as dores numa dor,

Todas as raivas na raiva do meu vento
Que bem me faz! mais alto compadre!
derruba a casa! me leva junto! eu quero o longe!
não sou daqui, sou lá de fora, ouve o meu grito!
Eu sou o irmão das solidões sem sentido...
Upa upa sobre o pampa e sobre o mar...

Nesse poema admirável, um dos mais belos da nossa língua, está contido, como em um búzio, todo o oceano de vossa cultura, como em um fruto de umbuzeiro todo o pampa de vossa infância, como num grito d’alma toda sede de vossa eterna inquietação.

Nem desse oceano, nem desse fruto, nem dessa sede, pude dar aqui sequer a sombra de uma sombra. Sois o homem do pampa, como sois o homem do mar. Há em vós a mais profunda ternura pelo vosso rincão natal, cuja poesia popular estudastes com uma ciência e uma sensibilidade incomparáveis, nos vossos estudos definitivos sobre o cancioneiro gaúcho, – como existe a sede dos horizontes mais largos da Weltliteratur. Sois hoje em dia, em nosso meio, talvez quem melhor o conheça. Vossos cursos sobre técnica literária foram memoráveis. Os ensaios da vossa Prosa dos pagos (1941-1959); da vossa À sombra da estante (1947); da vossa análise e interpretação do “Le bateau ivre”, de Rimbaud; de vosso Camões de Bruxo (1958); as vossas páginas do Preto e branco (1956); o vosso clássico estudo sobre Machado de Assis (1935), vos situam hoje porventura como o maior humanista vivo da nossa língua.

Que mina inesgotável nessas páginas de trinta anos da maior intimidade com a literatura nacional e universal. E os suplementos literários, cada sábado ou domingo, continuam até hoje, como há vinte anos, a nos trazer o fruto de vossas doutas meditações e aventuras. Que o silêncio alpestre da gruta de livros em que vos refugiais, sob a guarda de um anjo forte onde o minuano vos leva, de vez em quando, a saudade das coxilhas natais, mas onde jamais secou nem sequer minguou a água fresca e constante da vossa cristalina inspiração poética, – conserve ainda por longos anos o lirismo da vossa infância, o inquieto fervor da vossa adolescência, a fecunda sabedoria da vossa maturidade ainda tão verde e, acima de tudo, essa encantadora timidez com que nos dois sempre a impressão de estar pedindo desculpas à glória...

19/4/1961