Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Assis Chateaubriand > Assis Chateaubriand

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Aníbal Freire

À nossa glória faltava, Sr. Assis Chateaubriand, a láurea acadêmica.

Amesquinhem-na impenitentes detratores, jubilados uns em rancor insofrido e a maioria em desdém, que, por tão ostentoso, chega a ser superficial e anódino. Pairando acima dessa injustiças, constituirá ela sempre a consagração de uma carreira.

Atingistes aos cimos da atividade intelectual. Fostes professor de Faculdade oficial, num instante da vida em que os moços recém-formados se aprestam a postos menos árduos. Alcançastes o domínio de uma rede de publicidade sem similar na história da imprensa e dos meios de difusão em nossa Pátria. Coube-vos a curul senatorial, em que vindes fazendo memorável trajetória. Tudo com a instantaneidade dos raios, iluminando em cheio as veredas que tendes de palmilhar.

Examinando outros aspectos de vossa ascensão, vemos que assumistes as responsabilidades do professorado de ciências jurídicas, sem o tirocínio da judicatura, que a elas preparam. Passastes de redator a fundador-diretor de jornal, com ascendência e fortuna que os mestres do ofício nem sempre conseguiram. Penetrastes no Parlamento, para o posto mais alto e severo, sem o tirocínio político nem o amanho afanoso da vida partidária, cheia, em regra, de sacrifícios e renúncias. A todos esses recantos da inteligência e da maestria levastes inequivocamente sopro novo. Por isto se criou a fama de “perturbador”, tão realçada nas orações gratulatórias proferidas no ruidoso banquete com que a sociedade desta capital festejou a vossa ascensão à Academia, homenagem que refluiu em nosso crédito e solidificou a convicção do acerto de nossa escolha.

Não tememos os vossos arrojos, não nos arreceamos aos transbordamentos de vossa atividade. Erram os que vos julgam através de vossas campanhas jornalísticas. Tendes, a par da pertinácia nas ideias e nas conquistas espirituais, o respeito pela tradição que a vossa surpreendente inquietação não consegue eliminar.

Sem precisar recorrer a teorias e sistemas, vamos encontrar a fonte dessas supostas contradições de temperamento nos seres que vos deram a vida. Não quero vos proporcionar emoções, mas haveis de ter sob a retina sempre atenta a imagem de vossos pais.

Francisco Chateaubriand Bandeira de Melo era um belo tipo de homem. Traços olímpicos, fronte alta, cabeça emoldurada de bastos cabelos negros. Desempenado, ágil, irrequieto, espalhava alegria nos círculos onde aparecia. Ao lado desses sinais exteriores, fortaleza de ânimo inquebrantável. Um só episódio o demonstra. Tendo a esposa adoecido, os médicos recomendaram a estada em clima mais ameno do que o do Recife, tropical por excelência. Foi escolhido um lugarejo próximo da capital. Chã de Carpina – o seu nome, a indicar a configuração do lugar – planície descampada. A cura realizou-se sem sobressaltos. O marido encetou, então, a tarefa de transformar o povoado em cidade florescente. Procurou obter o apoio oficial para o seu tentame.Conseguiu logo mudar a denominação do povoado para Floresta dos Leões. Imagine-se o quanto de irreverência se formou em torno do assunto... Floresta onde não havia sequer árvores, e em leões nem havia que falar. Sucediam-se os remoques. A tudo indiferente o marido agradecido à Natureza. Começou pela arborização do local. A fama estendeu-se às cidades vizinhas. Passaram pessoas influentes a construir moradias de verão. Hoje o local é centro de turismo.

De D. Carmen Gondim herdastes, Sr. Assis Chateaubriand, uma qualidade que nem todos suspeitam em vós: a doçura, que ameniza as aparências agrestes do lutador. Não são muitos os beneficiários dessas efusões. Mas uma amizade de mais de quarenta anos, sem sombras nem intermitências, pode escusar-se com o esplendor desta solenidade para deixar nesta página essa impressão afetiva.

Também redobrastes em carinhos com a autora de vossos dias. Jules Claretie, no discurso de recepção na Academia Francesa, fazendo o elogio de Cuvillier-Fleury, revela que em todas as contas registradas pelo jornalista, o primeiro artigo, o “artigo sagrado, piedosamente traçado antes de todos os outros, era o – Remetido à minha Mãe”.

Não tendes tempo de fazer as grandes contas, muito menos as menores. Mas o traço existe. Nas folhas de pagamento da Faculdade de Direito do Recife, todos os vencimentos do Professor Assis Chateaubriand eram entregues no procurador de sua mãe.

Com esses apanágios, havíeis de ter infância feliz. Um escritor divisou Henri de Montherland debruçado sobre os jovens “com uma espécie de expectativa sagrada, como os áugures escutavam as fontes para delas ouvirem sair vozes”. A juventude vos surpreendeu na luta e as vossas vozes foram logo as do combate pelas ideias, as da atração pela liberdade, as da identificação com os credos perfilhados.

Redator do Dário de Pernambuco – e o destino se encarregou de colocar, anos mais tarde, o velho órgão na órbita de vossa influência – tivestes de acompanhar a sorte da política submersa na onda de “salvação” que avassalou o Norte. O denodo com que auxiliastes a Elpídio de Figueiredo, quase trucidado na defesa da liberdade da imprensa, marcou o início da vossa carreira destemerosa nas lides jornalísticas. Foi a vossa primeira refrega contra o poder armado, e as que empreendestes na maturidade terão o reflexo da que selou a vossa adolescência.

Não desertastes o campo da luta. Aproveitaste-o para imprimir outra feição à vossa capacidade. Desde cedo manifestaram-se em vós os sinais de pesquisa intelectual, que realça todas as vossas incursões no domínio da palavra escrita ou falada. Destes logo sentido universal ao vosso pensamento. Sob este signo, se operou a vossa formação mental, banindo preconceitos, ostentando independência de ideias e levando até aos detalhes a orientação universalista de vosso roteiro. Nenhum estrangeiro, de passagem ou de residência em Recife, deixou de ser vosso admirador, merecendo a vossa atenção de jovem, ansioso pelo contato com as fontes onde se espelha a inteligência da humanidade. A vossa formação intelectual obedeceu a esses dois fatores subjetivos:a apuração dos elementos que elevam o nível cultural e o cunho universal das ideias.

Não vos bastava a arena jornalística. Levantastes o voo para a cátedra.Temeridade a do jovem jornalista, se não o animasse a chama da ambição interior, sobrepondo-se às querelas de província. O concurso na Faculdade de Direito do Recife versava Filosofia do Direito e Direito Romano. Neste lance têm-se a impressão de como aprendestes cedo a vos desvencilhar de dificuldades. Custa a crer que o autor do “Conceito do Direito” e Interdicto ut possidetis, dissertações apresentadas para o concurso, seja o mesmo homem de imprensa, sôfrego, arrojado, inquieto. Soubestes vos precaver, na explanação dos assuntos jurídicos, dos excessos de imaginação. Sobriedade, clareza, objetivismo na exposição das doutrinas. O teor das dissertações é o contraste com a técnica do jornalista exuberante, insaciado, em regra prolixo. Nenhum laivo de agressividade nem sombra de embates, em que o ímpeto da pena avassala o raciocínio. Na advertência da dissertação de Direito Romano, salientastes o cuidado de fundamentar a exposição em informações colhidas nas próprias fontes legais e doutrinárias, e, se a tradução “não reveste forma esbelta e polida”, é porque preferistes “sacrificar, quase sempre, a elegância e o torneio da construção à fidelidade das palavras e da expressão do original”.

O vosso concurso figura entre os mais ruidosos da época. Tínheis como contendor uma vigorosa expressão intelectual, o Sr. Joaquim Pimenta, benquisto entre os acadêmicos. Como sempre, a mocidade se dividiu. Do lado do vosso concorrente, João Barreto, o filho de Tobias. Ao vosso lado – como será grato ao vosso coração relembrar o episódio – Annibal Fernandes, que ainda agora é o diretor do grande órgão pernambucano, enquadrado na cadeia dos Diários Associados. A Congregação da Faculdade, por voto de desempate, vos indicou em primeiro lugar. A vossa Paraíba não faltou neste momento. A União, o tradicional jornal, em que colaboráveis, fez imprimir a vossa dissertação de Filosofia do Direito.

A política usou de todos os recursos para impedir a vossa nomeação. Ingressastes no corpo docente da legendária Faculdade do Recife aos 24 anos de idade. Tínheis aparência juvenil. Não entra no anedotário que vos cerca, como a todos os homens em evidência, curioso e verídico episódio. Ao virdes ao Rio de Janeiro acompanhar, como era natural, vossa indicação para o magistério, tínheis o dever de procurar o presidente da república, que era, então, o venerando Sr. Venceslau Brás. Fostes ao Palácio do Catete, em companhia do então Deputado Vicente Piragibe, diretor de A Época, que acolhera as vossas primeiras produções jornalísticas na imprensa carioca, O ilustre parlamentar havia solicitado ao Chefe da Nação o favor da internação gratuita de um jovem no Colégio Pedro II. Ao avistar o Sr. Piragibe em companhia de um rapaz, o Sr. Venceslau Brás recordou-se do pedido e, antes de qualquer apresentação, disse ao deputado: “Este é o seu recomendado para o Pedro II?” O Sr. Piragibe respondeu de pronto: “Este moço, Senhor Presidente, é candidato classificado em primeiro lugar no recente concurso da Faculdade de Direito do Recife” O presidente soube resistir à pressão exercida pela política dominante e cumpriu o seu dever.

Se o rumo de vossa vida não se houvesse alterado, transportando-vos para outro cenário, teríeis exercido papel relevante na direção mental da mocidade do Norte. Para isto não vos faltavam o arrojo das ideias, a independência do pensamento, o denodo das convicções, o poder verbal sem o qual o proselitismo perde muito na eficiência e na concretização dos objetivos. A vossa vinda ao Rio de Janeiro, em 1915, para o fim a que há pouco aludi, determinou nova direção à vossa trajetória. Emerson alude, como um impulso de liberdade, ao verso do persa Hafiz: “Está escrito sobre a porta dos céus:‘Desgraça a quem sofre de ser traído pelo destino!’.” O destino não vos foi infiel e coroa sempre os vossos ingentes esforços.

Conquistastes de pronto a metrópole. Um artigo sobre Carlos Peixoto foi a vossa revelação ao público carioca. A figura varonil do parlamentar mineiro tentava quem quisesse retraçá-la, sem cortesanias nem arroubos. Ensaiáveis a tarefa em que sois mestre. Não vos seduz o panteísmo. A Natureza, fonte de inspiração para tantos outros, não vos deixa propriamente indiferente; não exerce, entretanto, poderoso fascínio sobre o espírito. De vez em vez, uma imagem fugidia, pondo um tom sugestivo na análise dos homens e dos caracteres, no exame dos fatos. Primais na fotografia humana, nos traços psicológicos e perpetrais as incisões que vossa pena produz na suscetibilidade, no orgulho, na vaidade dos homens.

Duas amostras de vossa arte fotográfica: com o “Carlos Peixoto” iniciastes a fundação da cidadela em que permaneceis, de lança em riste contra os que procuram assaltá-la. Com “O Monstro” previstes os meandros da era getuliana. Esse poder de penetração, que não é vã profecia, caracteriza os analistas da humanidade, inquieta, movediça, inconstante.

Tivestes a fortuna de encontrar encorajamento desde as primeiras vitórias. E se é próprio dos homens marcados para dirigir não se condenarem ao isolamento, a atmosfera que há de cercá-los tem de ser saturada de confiança e estímulo. Logo um grupo luzidio de veteranos intelectuais passou a prestar ao jovem nortista carinhoso apreço. Pedro Lessa, Alfredo Pujol, Calógeras, Pires Brandão foram afeições inalteráveis na vossa vida. Até Capistrano de Abreu se deixou captar. Em carta a João Lúcio de Azevedo esboça os traços de Assis Chateaubriand: “Rapaz de muito talento. De pequena estatura, glabro, nasceu em Imbuzeiro da Paraíba. Tem menos de trinta anos; é substituto da Faculdade do Recife. Colabora no Correio da Manhã, por cuja conta vai agora à Alemanha passar um semestre; é redator-chefe do Jornal do Brasil."

Dessa viagem à Alemanha resultou um volume de 449 páginas, editado em 1921. A Alemanha, Dias Idos e Vividos, tal o seu título. Sempre a vida a estuar, no escritor destemeroso. O livro, à luz dos acontecimentos futuros, sofreu a influência de impressões passageiras. Em matéria política, sentencia Léon Berard que só se é profeta na oposição. Em matéria jornalística, as crônicas têm de se ressentir da mobilidade da época. Adolf Lassen, conselheiro privado e professor da Universidade de Berlim, proclamava, em setembro de 1914, já deflagrada a guerra: “Um homem que não é alemão não sabe nada da Alemanha.” De maneira que os Blondel, os J. Flach, os Seilhière, os W. Martin, os Joseph Barthelemy, que expuseram ao mundo, naquele período, em traços gerais, as concepções germânicas, eram “intrometidos”. Não admira que o jornalista brasileiro, percorrendo um País amargurado pela derrota, nem sempre pudesse recolher a percepção justa dos fatos. Em conjunto, entretanto, o livro não contém reportagens frívolas, antes obra de analista, aspirando a perscrutar as inspirações dos povos, a estereotipar as tendências dominantes
e a extrair dos fatos e dos homens as perspectivas do futuro.

Toda a vossa carreira pública se situa no plano da curiosidade.Curiosidade, irreverente, injusta por vezes, indiscreta não raro. Mas curiosidade como lema mental. Nem há escritor destinado a exercer influência entre os contemporâneos que não seja aguilhoado pelo desejo de tudo perscrutar e conhecer. Um dos sintomas dessa avidez é o vosso gosto pelo avião. As viagens marítimas, com contatos forçados e em regra inúteis, são sensaborias para o vosso espírito ágil e trepidante. Paul Guth, estudando a personalidade de André Siegfried, salienta que o brilhante escritor, “em lugar de estreitar seus pontos de perspectiva, como a maior parte dos pontífices, cegos pelas honras, os multiplica”. Observa que o autor de tantas obras, em que avulta a penetração do real, considera a curiosidade como o motor inesgotável do rejuvenescimento e relembra a sua frase: “Aprendi mais com as viagens e com a conversação do que com as leituras. Meu método é o de um repórter.” O sabor literário que reacende dos vossos artigos, Sr. Assis Chateaubriand, mostra que a leitura é propícia à expansão de vosso pensamento, mas a arma predileta de vossa atuação é a observação direta, viva e palpitante.

O crivo dos tempos passou sobre Tirpitz, “o eterno”. Falkenhayn, “o fascinador”, Ratheneau, “o animador espiritual”, erigidos em símbolos no vosso Na Alemanha. O vosso livro contém, entretanto, páginas em que sobressaem a acuidade da visão, o senso da realidade. O remate do capítulo sobre os Estados Unidos tem os contornos de uma lição de política econômica. Dissestes: “Sob o aspecto financeiro, a chave da ressurreição europeia se encontra, pois, nas mãos dos Estados Unidos. Esses são os senhores da política de cooperação, que será a única capaz de salvar o Velho Mundo do bolchevismo sob a forma anárquica pela qual domina ele na Rússia. O apelo da Europa não deve ser dirigido ao espírito idealista da raça, mas antes à sua mesma índole prática.” A vossa observação data de 1921, e como os fatos vos deram razão! O mesmo espírito penetrante e que, sob as aparências da inquietação exterior, envolve argúcia e sutileza, nem sempre encontradiças nos que escrevem ao sabor dos acontecimentos do dia, via realizada a sua predição, com o papel preponderante da grande nação norte-americana nos destinos das raças livres. Esse mesmo espírito é o que, mais de trinta anos passados, ergue a sua voz impetuosa e vibrante, combatendo, indiferente aos apodos, o Jacobinismo econômico. Essa continuidade de pensamento, expresso na juventude e ratificado na maturidade, sintetiza poderosa regra mental. Viste igualmente com irrefragável nitidez o que continha a estrutura dos tratados de paz. Assinalastes os defeitos do arcabouço, em prejuízo dos objetivos visados, e salientastes com a precisão do cultor do Direito: “Só uma obra paciente feita num espírito simpático de justiça, poderia triunfar contra o caos.”Também em relação à cooperação da ciência com os problemas militares tivestes conceitos de vidente. Proclamastes sem reservas: “A guerra futura será uma guerra de laboratório.” E depois dessa concisão, o remate inacessível à contradita: “A Ciência se prepara a fim de entregar ao homem o segredo de elementos de destruição de tal modo assustadores que é de crer, nesse dia, o receio do aniquilamento coletivo ponha termo às veleidades belicosas dos profissionais da carnagem e da morte.”

O vosso estilo transborda de exuberância, destreza e flexuosidade. Nem sempre límpido; sempre empolgante. Encachoeira-se por vezes, envolvendo o leitor numa atmosfera da qual a meditação é banida. Há certas passagens de vossa produção jornalística em que sentimos que o vigor do raciocínio se perde no labirinto que ides criando. Para chegardes a uma conclusão, o vosso espírito divaga em torneios dispensáveis. Entretanto, quando quereis ser objetivo, a vossa capacidade de observação atinge pontos culminantes. A verdade é que no vosso estilo jornalístico debalde encontraremos qualquer imitação. Tendes feição própria; nem o poder verbal e a torrente caudalosa de Ruy nem a simplicidade de Ferreira de Araújo, nem a simetria sentenciosa de Alcindo Guanabara.

Esse refugir ao pastiche é o que realça igualmente a vossa oratória parlamentar.Apresentais decerto traços da oratória britânica e não de oratória latina. Zombarias à Sheridan, acentos à Churchill, para citar dois exemplos distantes no tempo, mas iguais no processo mental. Os vossos grandes discursos sobre assuntos os mais variados revelaram uma força nova a agir com estrépito no cenário do Congresso Nacional, despertando simpatia, acolhimento e repercussão mais profunda do que a de vossos artigos de jornal.

Não sois ironista. A forma sarcástica é a deformação da ideia. Só a exercem com proficiência os seres malignos ou refolhados. Aliás, os ironistas são os mais suscetíveis e, por estranha contradição, os que menos suportam o revide. A ironia difere do humour; este é límpido e fluido; a outra, artificiosa e pedante. A vossa natureza indômita não se acomoda à ironia pretensiosa. Mas os vossos leitores sempre se surpreendem com a irisação de vossa prosa. Edouard Herriot diz do vocabulário do vosso grande homônimo nas Letras francesas ser ele uma invenção perpétua. O vosso, Sr. Assis Chateaubriand, traz sempre o imprevisto, o traço cintilante, a expressão inédita.

O ponto decisivo da vossa atividade jornalística foi a criação dos Diários Associados. Não vos bastou a aquisição de um jornal, até então de índole conservadora e com acentuado cuidado pelos aspectos culturais. A ajuda de amigos influentes mostra até que ponto já começava a se manifestar o vosso poder de captação para empreendimentos de alcance social. Precisáveis de alavanca mais poderosa, e a organização de uma rede de jornais, se atendia à vossa ambição de domínio, correspondia ao sentido da vossa orientação intelectual. Com ela lucraria o sentimento da unidade nacional, respeitadas as peculiaridades das regiões a que procuráveis servir e que mereciam, com a intuição das coisas que vos é inata, devido apreço. Para esse certame vos inspirastes no exemplo da imprensa norte-americana. Pierre Donoyer, na sua monografia La presse dans le monde, acentua a diferenciação das características da imprensa inglesa e da imprensa norte-americana. Da primeira, as grandes famílias, a importância da imprensa de Londres, filiações políticas, "o Times, instituição nacional". Da segunda, o mercantilismo, "cadeias de jornais, sindicatos, tabloides, divisão do trabalho, abundância de matéria, sensação, interesse humano". O abundante volume American Journalism, de Frank Smith Mott, a mais copiosa contribuição no gênero, demonstra a atitude dessas cadeias, que remontam a Frank Munsey e têm como protótipo Scripts-Howard e Hearst. Quem esquadrinhar a rede de publicidade que alargaste pelo país inteiro, não limitando o perímetro de sua ação à capital da República, verificará que ides, pouco a pouco, alcançando a meta de vossos desígnios.

Não interessa fundamentalmente ao exegeta de vossa obra o resultado prático nem o fruto político dessa realização. Deveis mesmo ter experimentado desilusões sobre as messes colhidas no terreno da ascendência sobre a opinião. À vossa argúcia não escapa o exemplo dos Estados Unidos. À poderosa organização material e extensão dos recursos de publicidade não se cifram proporcionalmente no império sobre a opinião. James Bryce, autor infalível nos comentários sobre a grande República norte-americana, conceituava que os jornais são influentes de três maneiras: como narradores, como advogados e como cata-ventos. Em belas páginas mostrava as reservas da opinião no tocante à influência da imprensa. Sessenta anos mais tarde, na fase das redes de jornais, a se espalharem por todo o território, o mais recente comentador da vida norte-americana, André Siegfried, em Tableau des Etats Unis, observa: “Restaria a ver se a imprensa é efetivamente influente. Pode-se duvidar disto: sob Roosevelt, a maior parte dos jornais era de republicanos e ele era sempre reeleito. Em 1952 a maior parte dos jornais, mesmo republicanos, era redigida sob a orientação de repórteres que sustentavam Stevenson, e, entretanto, este foi batido. Será noutra parte que se formaria verdadeiramente a opinião?” O exemplo do Brasil não difere. Em 1910, 1919, 1922, 1945, 1950, os vitoriosos nas urnas não eram os favoritos da maioria da imprensa.Temos de relegar, portanto, a influência de vossa organização na direção governamental do País e nos interesses extrair do vosso empreendimento os benefícios proporcionados ao progresso e à cultura nacional.

Pontos essenciais da vida do País entraram na esfera de vossa ação construtiva; a aviação, o cuidado pela criança, o estímulo às artes e o encorajamento às vocações da mocidade. Não deveis temer o julgamento. Os vossos arremessos, as injustiças de alguns de vossos comentários, as fórmulas parciais tão comuns no critério dos homens de imprensa desaparecerão em face do acervo que a obra representa, no sentido social e mental. Podemos nos orgulhar de nossa posição proeminente nos progressos da aviação. A ela se devota uma legião de compatrícios, acrisolando-se no sacrifício de todos os dias para erguer bem alto as asas do Brasil. É de Shelley o dito famoso: “A alegria da alma está na ação.” A nossa Literatura ainda não produziu um Saint-Exupery,piloto do ar e escritor, mas os feitos dos nossos aeronautas nos enchem de ufania e confiança na nossa raça. Não se há de escrever a história da aviação em nossa Pátria sem que o vosso nome não seja lembrado. Levais o apuro na contribuição para o nosso fervor aviatório até ao cuidado de consagrar aos aparelhos de vossa iniciativa o nome de vultos do passado, entrelaçando-os com os anseios da mocidade, a que eles se destinam. Semeais para o presente, com as vistas para os que fazem a grandeza do nosso patrimônio cívico.

As obras de caráter pediátrico que tendes ajudado a criar e a desenvolver refletem a consciência do que tem sido a vossa vida. Não esqueceis, também, as conquistas da Arte. Só quem conhece o Museu de Arte Moderna de São Paulo, no funcionamento dos seus serviços, e assistiu enlevado aos cursos educacionais que ali se professam, pode calcular os benefícios que aquela instituição tem prestado à coletividade paulista, despertando nos jovens menos favorecidos a vocação para os misteres artísticos. Tudo isto representa para o País inestimável serviço que a posteridade há de registrar. Se aludo a esses aspectos de vossa tarefa é porque eles se entroncam na finalidade da vossa carreira e o seu relevo reflui sobre a Casa a que vindes pertencer. Não se pode separar o artífice dos instrumentos que ele maneja. Sois por destino um animador e mesmo na diversidade de vossas iniciativas e na trepidação de vossos cometimentos haveis de compor a unidade da vida.

O Sr. Gilberto Amado, em penetrante estudo, com as fulgurações de espírito e lavores de seu incomparável estilo – pena é que esse grande pensador não pertença à Academia – assere: “Quando o acaso reúne no mesmo indivíduo as duas potencialidades, a de conceber e a de fazer, surpreendente é que conceber e realizar sejam coesos e sincrônicos sem interrupção e dissonância. A equipolência das duas virtudes é raríssima. Em Chateaubriand acumulam- se e funcionam em perfeito equilíbrio. E presidindo a ambas a dupla continuidade: a do arranco todo dia recomeçado e a da prossecução em nenhum dia surpreendida.” Não poderíeis obter sentença mais verídica e completa.

A Academia indubitavelmente sagrou em vós o jornalista. A nossa Instituição sempre teve o fascínio pelos líderes da imprensa. Entre os seus fundadores Alcindo Guanabara, José do Patrocínio Medeiros e Albuquerque e Carlos de Laet. Ruy Barbosa escolhe para Patrono Evaristo da Veiga, Sylvio escolhe Hipólito da Costa, José do Patrocínio escolhe Joaquim Serra. E no momento, em menos de dois anos, a Academia acolheu sucessivamente três jornalistas notáveis. Contraste com a Academia Francesa que, neste instante, desaparecido André Chaumeix, não conta nos seus quadros um só titular da imprensa.

Vindes substituir a Getú1io Vargas. Fostes sempre um enamorado dele, desde “O Monstro” até às orações comoventes e às réplicas veementes por ocasião de sua morte. Dir-se-á que o termo do artigo é rebarbativo; a intenção porém, nada tinha de deprimente. Também Paul Deschanel empregou a mesma palavra em relação a Gambetta ao receber Alexandre Ribot na Academia Francesa. A adequação da figura era diversa. Deschanel quis aludir ao dominador do Parlamento, monstruoso no seu poderio. Vós quisestes estereotipar a astúcia, o maquiavelismo, e a acepção, aí, é a de prodigioso, que os léxicos registram.

Não quero esquecer um de vossos maiores êxitos jornalísticos, a entrevista com “Sumner Wells, o anjo rebelado”. Como esta vossa expressão encontrou ressonância em nossa vida política, aplicada posteriormente a lidadores partidários! Nesta entrevista, publicada em setembro de 1944, em momento em que se acendiam desconfianças contra Getúlio Vargas no campo internacional – já que a suspicácia de sua ação na política interna era dogma entre os seus adversários, com reflexos na opinião –, neste trabalho insististes no vosso tema constante, do cemitério em que Vargas sepultava, com todo o rito da inumação, tantos dos seus servidores, e aludistes “ao aspecto getuliano de Roosevelt e ao mesmo traço maravilhoso de Vargas”. E acrescentastes: “Dois homens que são fortes porque não têm paixões, porque são frígidos, se dominam e deixam que os passionários se percam pelas próprias mãos, entregues à fatalidade do mesmo temperamento.” Só o sentimento de atração levaria o analista a colocar no mesmo nível o reformador audaz do Nédia e o astuto e sutil governante do Brasil.

Não manifestastes, em instante algum de vossa carreira, o propósito de solicitar os sufrágios da Academia. Confessáveis, mesmo, divergências de mentalidade e independência de rito com a Instituição. O desaparecimento trágico do nosso grande companheiro despertou-vos a ideia de ingressar nesta Casa e fostes movido ainda uma vez pelo fascínio do homem de quem tínheis de retraçar o perfil. A tarefa era adequada aos sentimentos que uma convivência de longos anos cimentara no espírito e se afervorava nos impulsos do coração. Não foram poucos os dissentimentos surgidos nessas relações; frequentes as rusgas e amuos. Inspirariam um Juvenal as cenas de reconciliação.

Esboçastes em “O Monstro” o prenúncio do que viria a ser a ação do chefe do Governo Provisório. O artigo é datado de 18 de novembro de 1930. Mediavam apenas vinte dias entre a deflagração do petardo e a posse do ditador. Os que relerem o artigo terão de reconhecer a clarividência de vossas impressões. Vinte e cinco anos depois, vem ecoar neste recinto uma das mais fulgurantes peças literárias, a enriquecer os nossos anais.

Não sei como me atrevo a falar de Getúlio Vargas, depois do vosso discurso. Podemos nesta Casa nos expressar sobre o inolvidável brasileiro com todas as veras do coração e com o senso da verdade histórica, soberana sobre as paixões. Ele esquecia em nossa convivência ressentimentos e amarguras. A última visita que nos fez foi no primeiro aniversário do seu atribulado governo, com a alma já pungida, mas sempre com a distinção de maneiras e a suavidade do trato, que, se não aumentavam aos nossos olhos a figura do chefe do Estado, realçavam a nobreza do companheiro. Retribuía com igualada confiança e indisfarçável efusão a honra que lhe conferimos, consagrando,
a exemplo do que faz a Academia Francesa, um homem de Estado, preocupado com os problemas culturais do País e tendo no seu acervo produções de indiscutível valor.

Não se pode negar a Getúlio Vargas o culto da inteligência, revelado na sua atuação parlamentar, nos seus atos de governo nos seus hábitos de sociedade, na satisfação em que se comprazia do convívio com intelectuais. O sr.Pedro Calmon narrou, na sessão consagrada à sua memória, que, na fase aguda da crise de remate tão trágico, passou quase uma hora a discretear com o presidente da República, abraços com a onda que dentro em pouco o submergiria, sobre assuntos literários, permanecendo íntegras a memória e a visão intelectual do interlocutor.

No discurso de recepção, Getúlio Vargas, com a modéstia tão natural da sua índole, confessava não ser “um escritor de ofício” e escusava essa deficiência com a atração que sempre teve pelos homens de pensamento, as inteligências cultas e desinteressadas. Quanto ao papel da Academia, acentua-lhe o relevo de “uma espécie de judicatura sobre a vida mental do País, preparando uma atmosfera de interesse e de respeito pelas criações intelectuais, estimulando as vocações e facilitando-lhes o acesso às fontes de revigoramento e renovação espiritual”. De nossa parte, o dever da verdade nos leva a consignar que não houve solicitação da Academia em prol das Letras nacionais que não merecesse o seu apreço e não recebesse o seu apoio.

Numa das nossas últimas sessões, o Sr. Levi Carneiro, com o senso de veracidade que o caracteriza, salientou a correção, a firmeza de Getúlio Vargas na solidariedade dada à Academia no desenvolvimento da questão ortográfica, com o pensamento de estreitar ainda mais as relações culturais entre Brasil e Portugal.

Não falta quem faça restrições aos recursos intelectuais de Getúlio Vargas. O crítico desapaixonado encontrará, entretanto, nos seus discursos, nas suas outras produções, os traços de uma mentalidade afeiçoada aos estudos, destra no manejo da linguagem, zelosa do vernáculo, encontrando mesmo, no natural e na simplicidade de suas manifestações intelectuais, o sinal de uma organização mental equilibrada, segura e consciente.

Rememorastes, Sr. Assis Chateaubriand, vários episódios dessa carreira sem par na nossa história política. Ninguém mudou mais a fisionomia social da Nação. O seu sincretismo levava-o a variar de direção ao respigo dos acontecimentos. Isto será tarefa do historiador da sua política. Mas a sua personalidade não foge à argúcia do analista que sois, e retratais em frases lapidares as alternativas dessa curiosa figura, que não desapareceu da história. Ao meditar sobre certos aspectos de vossas observações sobre as contradições do temperamento e as variantes da conduta de Getúlio Vargas, vem-me à mente o trecho em que Louis Madelin salienta, no Talleyrand, que Napoleão “se interessava tão vivamente pela vida, que seguia com olhar apaixonado um belo ‘trabalho’, mesmo feito contra ele”.

A cerimônia que neste instante realizamos perderia na sensibilidade e na emoção se a desvirtuassem propósitos de política ou de paixão. Mas, para honra da Academia, que elegeu Getúlio Vargas, podemos fazer uma reflexão justa. Essa figura exerceu tanta fascinação entre os contemporâneos, brasileiros tão eminentes, pelo talento, pela cultura, pela moralidade, o serviram – e os seus processos não variavam no exercício dos poderes discricionários ou no manejo do sistema constitucional – que temos de considerá-lo como um valor prodigioso na direção dos homens. A Academia Brasileira comprazia-se com a sua presença na galeria de seus autênticos servidores. Reitera hoje à sua memória preito de reconhecimento e apreço.

Os vossos predecessores na Cadeira 37 aumentaram o patrimônio intelectual desta Casa. Silva Ramos exerceu o professorado com abnegação, solicitude e inteligência exemplares, constituindo-se uma das barreiras contra a desnaturação da linguagem e o desamor do vernáculo. Alcântara Machado e Getúlio Vargas serviram à Pátria, com entranhado zelo pelas suas forças espirituais, amando enternecidamente a terra e a gente. Haveis de enfrentar, confiante e sobranceiro, as responsabilidades da sucessão. A vossa poderosa capacidade jornalística, a luminosidade de vossas concepções, o destemor de vosso espírito na defesa das ideias, a inesgotável provisão de fé e entusiasmo de vossas iniciativas asseguram a continuidade da trajetória que tendes percorrido. Confiamos em vós, Sr. Assis Chateaubriand, no resguardo do nosso padrão de cultura, labor e poderio mental.

27/8/1955