Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Artur de Oliveira > Artur de Oliveira

Artur de Oliveira

     TESE DE CONCURSO

          INTRODUÇÃO

“C’est par l’éducation de la civilisation que se fait l’assimilation; elle infuse partout l’esprit d’expérience, grâce au progrès des sciences. Les races et
les sous-races qui se montrent capables de la recevoir ne tardent pas à devenir dignes d’entrer en compétition avec celles qui sont leurs anciennes dans l’oeuvre sociale.”

                                                                                                                            E. Littré, Littérature et Histoire.

 

A literatura de um povo não é somente a mais clara expressão do seu gênio nacional, é também a “sua própria geografia” segundo Walt Whitman, com todas as características que a acentuam e individualizam.

Tirai à inspiração americana a perspectiva azulada das montanhas, a fantástica projeção das florestas seculares, a extensão melancólica e selvagem dos descampados, as miragens ridentes do seu horizonte, as cachoeiras marulhosas que se desdobram em colchões de espuma, os lagos de anil que refletem os luminosos crivos do céu sempre de opalas e de púrpura, a doce e profunda magia dos crepúsculos tropicais, a vibrante sinfonia dos pampeiros rugidores, as delirantes tragédias do sol, a cólera tremenda dos seus rios oceanos, os assombros estupendos da vegetação equatorial, e não compreendereis as odisseias indígenas de Fenimore Cooper, o lirismo créole de Leconte de Lisle, os fastos autóctones de Carlos Sealsfield, o humour bizarro de Nathaniel Hawthorne, as páginas californianas de Joaquim Miller, as agrestes e dramáticas narrativas de Bret-Harte, a colorida suavidade de Palma, de Corpancho ou de Guido Spano, e o flamejante brasileirismo de José de Alencar. É que entre os sítios e os espíritos há afinidades eletivas, íntimas e misteriosas como os sentimentos indefiníveis. “A alma das regiões, disse-o Lamartine, parece passar para a alma dos homens: Maomé sai dos vales ardentes da Arábia; Lutero, das frias montanhas da baixa Alemanha; Calvino, das planícies inanimadas da Picardia; Cromwell, das charnecas estagnadas do Ouse. Tal lugar, tal homem. A alma é um espelho antes de ser um lar.”(1)

A crítica do nosso século, estudando as obras do escritor e os monumentos da arte, sob o tríplice ponto de vista da antropologia, da linguística comparada e da filosofia da história, não só arrancou dos ossuários do tempo as raças extintas, para lhes perguntar os segredos do velho mundo, como resolveu o mais difícil problema que, porventura, a atividade científica impôs às suas audaciosas reconstruções históricas: a análise das relações das literaturas com os mitos e as religiões fonte comum de todas as manifestações do espírito humano.

Aplicando a teoria do meio ao estudo das epopeias nacionais, alargou os domínios da exegese literária, fazendo irradiar uma luz mais intensa e vivificante. Essa irradiação foi como a voz do caminho de Damasco, indicando aos Saulos de Tarso os arrojados destinos que se levantam diante das interrogações da ciência, e das vivas aspirações do ideal moderno. Liberta-se enfim a inteligência do jugo da convenção das escolas, e do férreo despotismo dos escoliastas. Explicaram-se então, graças às profundas investigações da crítica alemã, francesa, inglesa, flamenga e italiana, as fontes e os veios das tradições poéticas: os hinos órficos, o Isdubar da Caldeia, os cantos dos aedos do arquipélago, a grandiosa e terrível teogonia da Tessália, a poesia bíblica dos bardos do Garizin e do Jordão, os gigantescos itiasas da Índia, os pantoums e os ghazels do ciclo lírico dos crentes do Islã, as vigorosas epopeias do Ossian, e de Antar, as rudes e heroicas rapsódias da Grécia, os símbolos do Talmude, de Sanchoniathon e de Hermes, as slokas elegíacas dos poetas do século de Vicramoditia, os Edas dos scaldas escandinavos, o Peivenparneb da Lapônia, o lirismo casto dos minnesingers da Suábia, os colossais Nibelungens da Germânia, as sagas cosmogônicas da Islândia, a Kalevala da Finlândia, os épicos Yarani do novo continente, o Popol-Vuh do México, os Vikings normães, a veemência lírica dos troubadours da Aquitânia, o ascetismo arrebatador dos menestréis errantes da Umbria, os risonhos fabliaux dos trouvères franceses, as lendas místicas dos hagiológios e os pitorescos Romanceros peninsulares.

Estudadas as tradições dos aborígenes, o sentimento íntimo das épocas e as riquíssimas formas da poesia popular, a poética tomou uma outra direção, tornando-se, segundo a linguagem alemã, menos subjetiva.

Daí o renascimento literário do princípio deste século: o romantismo de 1830, em França; a influência de Lessing, de Goethe e de Schiller, na Alemanha; o movimento operado por Garret e Herculano, em Portugal.

No Brasil, a emancipação literária não seguiu de perto a emancipação política.

Vozes generosas, é verdade (e entre essas é digno de assinalar-se o nome que através a distância histórica ainda nos faz bater o coração o de José Bonifácio de Andrada e Silva), incitavam os escritores conterrâneos à laboriosa obra da nacionalização da nossa literatura.

A poesia colonial vinha das estufas aristotélicas e dos outeiros; trazia o eufuísmo e o alambicado dos concetti: não podia servir de molde às inspirações espontâneas da musa brasileira, nem satisfazer já a solução do problema: era portuguesa demais.

Os Poetas Mineiros da Arcádia Ultramarina viram a pátria pelo frio prisma da retórica universitária, com os olhos ainda cheios da severa e majestosa poesia do Tejo, do Douro e do Mondego. José Basílio da Gama e Frei José de Santa Rita Durão, apesar de acharem “esse veio oculto da riqueza épica, a tradição”, no dizer de Teófilo Braga,(2) apenas prepararam o caminho para a originalidade da literatura que, sessenta anos mais tarde, à semelhança dos perfumosos laranjais da terra natal, havia de desabotoar-se em esquisitos e variados frutos.

“Contam as fábulas gregas, escreve Littré, que Medeia fez voltar à mocidade o velho Eson, transfundindo-lhe nas veias um sangue estrangeiro.” (3) O sentimento poético que nos legou o povo coirmão é esse rejuvenescido: estua-lhe no coração o forte sangue da nova nacionalidade, e a divina coragem “que vale mais do que o ferro, com diz o indômito Sigurd das Edas, quando os bravos se encontram.”

A heroica época de 1848 marca o 7 de setembro da independência da nossa literatura. O grito do Ipiranga foi o aparecimento dos cantos americanos de A. Gonçalves Dias.

Estava dado o passo. Forçoso era caminhar através o bombardear do lusitano fetichismo quinhentista. Realizava-se pela segunda vez o patriótico voto do Washington brasileiro: emancipava-se a América espiritual.

Eis como um ilustre crítico fluminense, o Sr. Dr. Macedo Soares, assinalou a memorável quadra que começara sob fados tão auspiciosos, ao raiar do fúlgido astro que atravessou tão rapidamente a amplidão azul do horizonte das nossas letras para atufar-se em pleno oceano, ao estrugir das brancas vagas dos escarcéus, envolto na ampla glória do seu gênio, e do abrasado amor que consagrava à terra de suas saudades, a

 ... terra tem palmeiras

         Onde canta os sabiá.

“A revolução de 1842, diz o crítico nomeado, tinha mergulhado os espíritos na apatia que sucede às crises violentas. Estavam cansados os ódios e acalmadas as paixões. Os partidos tendiam ao repouso e, em 1848, propunha-se nas câmaras a política de conciliação. A nação podia descansar no seio da poesia e esquecer as desilusões, ouvindo os harmoniosos acentos do poeta. Essa linguagem desacostumada aos seus ouvidos, asperamente embotados nos estridores da guerra; falando-lhe de fé e de amor em um tempo de tão profundas descrenças e depois das agitações da discórdia civil; lembrando-lhe o patriotismo dos avós, depois de tantas vergonhosas defecções; confortando-a enfim na religião da família, tristemente profanada no mais íntimo do lar; essa linguagem era uma voz vinda do céu, um canto místico tangido em harpa de anjos.” (4)

A separação política já tinha criado matizes, que mais se afirmaram com o impulso dado pela geração que despontava. Esses matizes são traços fisionômicos da literatura nacional; traços que a extremam da portuguesa. Não é para admirar que isto assim seja, quando dessemelhanças idênticas existem entre poetas que falam a mesma língua, dentro da mesma circunferência geográfica. “Os selvagens idílios de Roberto Burns, diz E. Delaplace, têm o perfume das ásperas charnecas da montuosa Escócia e ao contrário a brilhante facilidade do poeta laureado Tennyson lembra a copiosa fertilidade dos prados ingleses.” (5)

José de Alencar também explica a feição particular da nossa literatura, o porquê da originalidade que a caracteriza nestas palavras da sua irrefutável e eloquente resposta aos reparos injustos do Sr. Pinheiro Chagas, acerca de sua Iracema: “Quando povos de uma raça habitam a mesma região, a independência política só por si forma sua individualidade. Mas se esses povos vivem em continentes distintos, sob climas diferentes, não se rompem unicamente os vínculos políticos, opera-se também a separação nas ideias, nos sentimentos, nos costumes, e portanto na língua, que é a expressão desses fatos morais e sociais.” (6)

Desde o cruzamento dos primeiros colonos europeus com as raças anti-históricas do Brasil, o tipo do português modificou-se profundamente. “O latino, fundindo-se com o tupi, diz o Dr. Couto de Magalhães, produziu essa raça energética que constitui a quase totalidade da população de S. Paulo e Rio Grande, e a maioria do novo império.” A língua também se alterou, obedecendo a essa evolução étnica.

Do fato do cruzamento primitivo, tira o ilustre investigador das Origens da literatura portuguesa, o Sr. Teófilo Braga, a razão da “intensidade sentimental” que caracteriza o lirismo de Varela, de Castro Alves, de Junqueira Freire, de Álvares de Azevedo, de Franco de Sá, de Marques Rodrigues, de Casimiro de Abreu, de Félix da Cunha, de Gentil Homem e de tantos outros, para não falarmos senão dos mortos. “Quem se lembra, diz o eminente crítico, da velha frase de Lope de Vega: ‘Eu, senhora, tenho olhos de criança e alma de portuguesa’, só a pode compreender agora diante da exaltação do brasileiro. Nós somos hoje menos alguma coisa.” (7)

Não nos sendo possível dar aqui o devido desenvolvimento, que pediam estas rápidas considerações a propósito da literatura brasileira, fazemos nossas as seguintes palavras que julgamos definir as nossas ideias: “Não há dúvida, diz Humboldt, de que o clima, a configuração do solo, o aspecto de uma natureza risonha ou selvagem influem nos progressos das artes e no estilo que lhes distingue as produções.”

 

(1) Lamartine, Cromwell, p. 9.
(2) Manual de literatura portuguesa, p. 443.
(3) Littérature et Histoire, p. 231.
(4) V. Correio Mercantil, 5 de janeiro de 1862.
(5) E. Deplace, Revue Contemporaine, 1865.
(6) Iracema, segunda edição.
(7) Th. Braga, Parnaso português moderno.