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Discurso de posse

EU, PECADOR

Cheguei hoje ao marco 71. Hei de seguir para a frente. O caminho parece menos claro, mais silencioso. Não faz mal. Levo na memória a luz e a música. A cabeça ainda sobe com delícia às nuvens. Os pés ainda gravam sinais radiantes no chão. Carrego todos os desejos, exceto um: descer, de corpo presente, na Lua.

Um dia, à beira do século, espero encontrar a Vida e pôr o meu beijo nas suas mãos. Que não me aconteça o que aconteceu a Fontenelle, perto dos cem anos, num salão em Paris: passou, com outra idéia, por Madame Helvétius, a quem costumava chamar: “A mulher maravilhosa”. Madame Helvétius deteve-o: “Então, deixei de ser maravilhosa? Passa, nem me vê!” Fontenelle respondeu: “Se a visse, não passava...”

ACORDO CANTANDO

Agora já me conheço. Não, líquido e certo: “O suficiente para ser perdoado.” Surgi antes da República, em Porto Alegre. Apliquei o nome do porto à consciência. E que esforço para o conservar! Acordo cantando. Peço a bênção a Deus. Dou bom-dia ao dia. Recomeço o destino, tão natural, tão simples, tão amigo, tal qual o recebi, tal qual o legarei, sem queixas, sem amarguras. Os campos estão cheios de flores. Não há nada ruim; tudo pode melhorar. Possuo um pouco de inocência, um pouco de imaginação, um pouco de prática da teoria. Sou dono de uma fortuna imensa: a pobreza. Se estou vestido com tantos ouros, devo-os à Sociedade Sul-Rio-grandense, ao caro Presidente, Nery Kurtz, devo-os aos meus patrícios que moram, de aparência, no Rio de Janeiro e moram, de realidade, no Rio Grande do Sul. Os gaúchos levam com eles, para onde vão, a terra que os criou. Antônio Nobre me disse, no meu tempo de interno, em São Leopoldo:

...os homens, quase todos,
têm sido e são muito mais maus do que eu.

Não acreditei em Antônio Nobre

Jules Laforgue me disse no meu tempo de solto, em. Paris:

Vem, vamos cantar
o Grande Perdão!

Foi em Jules Laforgue que acreditei.

Erro bastante, no sentido de direção e no sentido de que isso não se faz. Meu estado geral é de graça, com várias receitas da sabedoria chinesa, prontas para qualquer socorro na porta, no telefone ou na televisão. Custo a envelhecer porque custo a me aborrecer. Não penso mal de ninguém (eis o meu egoísmo). Acho que ninguém tem culpa (eis o meu truque de amar o próximo como a mim mesmo).

A SURPRESA DA VIDA

Um dos grandes da família, Joaquim Nabuco, descobriu que a mocidade é a surpresa da vida. Enquanto nos espantamos, somos moços. Trago-vos um coração quase puro, um espírito mais que encantado. Deixai-me dizer-vos que venho dos lugares onde estão as fontes, os ninhos, as madrugadas. Olhei a eternidade, face a face. Entendi que é diversa na presença, uma em muitos,espécie de coxilha, não parando nunca, extasiada de cores e reflexos correndo no vento, bulindo em águas que formam ilhas ao contrário, árvores solitárias, árvores em capão... Vultos, vozes... a campanha, o firmamento, unidos, com pena de se apartarem, e que se alongam prolongam por todos os horizontes...

A LUZ DE UMA CEGA

Aperto no mesmo abraço, junto no mesmo beijo, minhas mestras: minha mãe e minha avó. Minha mãe, linda. Minha avó, cega.

Uma cega em casa ilumina a vida. Foi ela que me ensinou a ver: “Repara nas coisas bonitas, e me conta”. Eu reparava no iate do avô marinheiro, nos lampiões cor-de-rosa, nos vasos com flores, na boneca da caixa de música, nos canários, nas abelhas, na oliveira, no jasmineiro, na banda que ia tocando à frente do batalhão. Contava, alvoroçado. E ela: “Não se deve falar alto, os anjos não escutam”. Mandava fazer torta de nozes para a merenda. Punha água de alfazema na minha cabeça e nas minhas mãos. Se eu tinha medo, inventava Poesia, criava mundos. Era doce até no nome: Maria Angélica da Soledade.

Minha mãe sabia gostar, querer bem como ninguém. Colhia as tristezas e as alegrias na estrada. Guardava as tristezas, dava as alegrias.

Minhas mestras!

GRATIDÃO

Senhores acadêmicos, aceitai a gratidão do homem que bateu à vossa porta e a quem mandastes entrar.

Não entro aqui cansado. Entro pela companhia. Pedi-vos uma Cadeira na Casa de Machado de Assis para ganhar o prêmio da vossa intimidade, de aprender convosco o que sabeis. Esta é a Casa do Brasil, como a consagrou quem lhe deu o nome e a glória:

... conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda a casta às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso. Já o batismo das suas cadeiras com os nomes preclaros e saudosos da ficção, da crítica e da eloqüência nacionais é indício de que a tradição é o seu primeiro voto. Cabe-vos fazer com que ele perdure. Passai aos vossos sucessores o pensamento e a vontade iniciais, para que eles os transmitam também aos seus, e a vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira.

Assim fizestes. As palavras de Machado de Assis repetidas além de 62 anos, são o vosso elogio.

A CADEIRA 21

Que Cadeira vos solicitei? A 21, onde, de 1927 a 1958, se sentou o poeta que primeiro me apareceu quando vim da minha província para terminar, na Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro, os estudos muito intitulados: “Ciências Jurídicas e Sociais”.

Foi em março, como em O Caçador de Esmeraldas. Felipe D’Oliveira viera comigo. Olegário Mariano nos levou ao Palácio Teatro, na Rua do Passeio. Terminava o “número” inglês, cheio de trambulhões e de all rights. Um senhor, de jeito alemão e casaca forneceu seis cachorros inteligentes. Mais: uma cantora italiana, uma bailarina espanhola, outra cantora – rumaica – de quem Raul Pederneiras, apresentado pouco antes, disse: É a melhor asma que já se exibiu aqui. Por fim, no palco à meia-luz, esguia, braços parados, mãos paradas, cabelos escuros e rentes, cara de cara ondulando na água, produziu- se uma mulher de certo armada com pedaços da noite lá fora. Nunca me esqueci da canção que ela cantou:

Se o teu coração não tem mais amor
por que os teus olhos têm lágrimas ainda?

Do Palácio Teatro fomos ao Clube dos Políticos, que era de jogo. Vários clubes funcionavam na Rua do Passeio, diante do jardim com grades e sem bustos, perto da Lapa. O amigo novo rumou conosco para a Rua Chile. Subimos ao Clube Mozart, que não era de música, e onde se comia o melhor bife com batatas fritas das horas mortas.

Noite de cinqüenta anos. Felipe partiu, mais moço do que ela. Olegário, mais velho. Desculpai: não fiquei por teimosia. Pode ser que eu tenha imitado, sem saber, o homem que passava, tapando a cabeça, disparando, pelo cemitério. Perguntaram-lhe: “Por que isso?”

Explicou:

– Quem não é visto, não é lembrado. Afinal, a razão é de Augusto Comte: “A humanidade compõe-se de vivos e de mortos; os mortos são mais numerosos.”

A BELA ÉPOCA

Rio de 1909, Rio da Avenida Central e da Avenida Beira-Mar. Rio de Osvaldo Cruz, Pereira Passos, Paulo de Frontin, Rio de Figueiredo Pimentel, o importador da crônica mundana, que proclamava, todas as manhãs, na coluna “Binóculo”, da Gazeta de Notícias: “O Rio Civiliza-se”. Rio de Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Pinheiro Machado, Irineu Machado, e de Alcindo Guanabara, Edmundo Bittencourt, Leão Veloso, João Lage, João do Rio. Rio de O Malho, da Ilustração Brasileira, do Tico-tico, da Kosmos, do Fon-Fon, da Careta. Regatas e corsos em Botafogo e no Flamengo. Concluída a série de conferências literárias, no Cassino, por Olavo Bilac, Coelho Neto, Medeiros de Albuquerque. Aberto o Teatro Municipal. O Lírico resistindo. Temporadas de óperas em italiano, dramas em francês, espanhol, italiano e também em português de Portugal. Revelação das operetas vienenses: Viúva Alegre, Sonho de Valsa, Conde de Luxemburgo, que substituíam a Mascote, Os sinos de Corneiville, Bocácio... Lucília Peres representava “O Dote” de Artur Azevedo, no Teatro Recreio. Itália Fausta ia representar “Antígona”, de Sófocles, no teatro da Natureza, em pleno campo de Sant’Ana. Ensaiava-se Leopoldo Fróes. Muitos autores dramáticos aplaudidos, e um, sensibilíssimo: Roberto Gomes. Para os espetáculos de gala, a condução maior era o bonde, com bancos cobertos de pano branco: o povo lhe botara o apelido de “bonde de ceroulas”. Os “salões” eram da Condessa Cândido Mendes, da Sra. Rodrigo Octavio, da Sra. Franklin Sampaio, da Sra. Sousa Ribeiro, da Sra. Antônio Azeredo. D. Laurinda Santos Lobo, então alferes, seria depois “A Marechala da Elegância”, na mansão de Santa Teresa. Copacabana dormia nas areias. Lugares de passear: o Silvestre, na montonha, e o Leme, na praia. As passagens dos bondes para o bairro marítimo anunciavam: “Hoje, luar feérico no Leme!” Rio do Morro do Castelo, do Hotel dos Estrangeiros, das barcas para se ir tomar o trem de Petrópolis. Rio do Clube dos Diários, Rio do Café Jeremias, dos primeiros cinemas, dos alfaiates Raunier, Almeida Rabelo, Brandão, dos chapeleiros Leivas, Alberto, Watson, do sapateiro Cadete; de Madame Coulon; camisas, colarinhos, punhos, lenços, gravatas; das Livrarias Garnier, Quaresma, Laemmert, Jacinto, Azevedo Martins; das Confeitarias Paschoal e Colombo da “Rotisserie” na Rua Gonçalves Dias, do Stadt München, no Largo do Rócio, do Bar Adolfo, no Largo da Carioca, do restaurante Labarthe, na Rua do Carmo (dois mil réis, almoço ou jantar), das casas de pasto desde o fim da Rua do Ouvidor até o Estácio; Rio das ostras, de madrugada, no cais da Praça Quinze; Rio dos “chopes” na Lapa; Rio das ruas musicadas pelos pregões; Rio dos Tenentes do Diabo, dos Fenianos, dos Democráticos, do Ameno Resedá, da Flor do Abacate, das Mimosas Cravinas; Rio das Batalhas de Flores na Avenida Beira-Mar, e do footing na Avenida Central com chá em seguida na Cavé. Não se tomava uísque, tomava-se vinho: Madeira, Porto, Málaga, Xerez.Os poetas com Alberto de Oliveira, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Luís Murat, Augusto de Lima, B. Lopes, Luís Delfino, Félix Pacheco eram Mário Pederneiras, Emílio de Meneses, Bastos Tigre, Luís Edmundo, Martins Fontes, Goulart de Andrade, Aníbal Teófilo, Oscar Lopes, Leopoldo Brígido, Octávio Augusto, Adelmar Tavares, Paulo Barreto, construíam o jornal, moderno. Júlia Lopes de Almeida e Carmen Dolores, as escritoras admiradas. Um estreante, de êxito imediato: Gilberto Amado. Outro: Agripino Grieco. Músicos: Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Henrique Oswaldo, Barroso Neto, Glauco Velasquez, Pintores: Batista da Costa Amoedo, Parreiras, Belmiro, Lucílio Albuquerque, Helios Selinger, os irmãos Chambeland, os irmãos Timóteo, um dos irmãos Bernadelli. Escultores: o outro dos irmãos Bernadelli, Eduardo Sá, Modestino Kanto, Correia Lima, Décio Vilares. Arquitetos: Jannuzi, Morales de los Rios.

Caricaturistas: Julião Machado, Raul Pederneiras, Kalixto, J. Carlos Amaro, Bambino, Fritz, Romano, Rian, Luís Peixoto. Presidente da República: Afonso Pena, que morreu. Nilo Peçanha, vice-presidente, terminou o quatriênio.

Cinco amigos sempre juntos: Mário Pederneiras, Felipe D’Oliveira, Olegário Mariano, Rodrigo Octavio Filho, Alvaro Moreyra. De quando em quando com Gonzaga Duque e Lima Campos, que faziam trindade com Mário Pederneiras.

Assim comparecemos à época inicial do século, dita “A Bela Época.” Um dia de onde viera Olegário, veio Múcio Leão. E quando Múcio Leão veio, na simpatia que nos atraiu, através do Felipe D’Oliveira, não estaria o presságio desta noite, para a qual nele escolhi meu gentil-homem de boas-vindas?

CADEIRA DA LIBERDADE

A Cadeira 21 foi inaugurada por José do Patrocínio. José do Patrocínio escolhera para patrono Joaquim Serra. Dois paladinos da guerra santa da Abolição. A José do Patrocínio sucedeu Mário de Alencar, tímido, retraído, amoroso do canto com os livros; detestava os oradores e os jornalistas; metia-se na solidão para ser livre. Olegário Mariano, filho de abolicionistas, o poeta dos pássaros do ar, dos cães da rua, das cigarras do campo e da cidade, de todas as criaturas de independência ou morte, de todas as coisas sem fronteiras, sem perseguições, sem injustiças.

Esta é a Cadeira da Liberdade.

HISTÓRIA E LENDA

A lenda é a névoa da história, encobre de leve os entes reais ou parecidos, disfarça-os, torna-os sorridentes e fáceis, embora às vezes sejam carrancudos e penosos de contar. Histórias de mais legou o cativeiro. Algumas, é preciso esquecer, por muito cruéis. Outras, lições direitas, podem andar sempre evocadas: a dos Palmares, a dos Quilombos de Minas Gerais, principalmente a de Chico Rei, tão alta que parece inventada. Histórias de amor, sinhás velhas, sinhá moças, feitores, capitães-do-mato, e de troncos, chicotes, ferros em brasa, que se amarelem e sumam nos livros como se calaram nas bocas. Uma história só, das incríveis maldades, se mantenha na vergonha mas na ternura dos descendentes: a que a lenda envolveu, a do Negrinho do Pastoreio. O negrinho do Pastoreio corre pelos campos, pula os riachos, trepa nas árvores, ri para o sol. Uma ponta de sol ele gosta que lhe dêem, em forma de vela acesa, e quem dá acha qualquer bem que perdeu: sua vaca, seu cavalo, sua bolsa, seu anel, seu sonho. Alegre seria colocar num oratório do tempo da escravidão, o Negrinho do Pastoreio e a Negra Fulô, de mãos dadas, para que ficassem como dois Santos, junto de Nosso Senhor do Bonfim.

JOAQUIM SERRA

Joaquim Maria Serra Sobrinho. Maranhense. Viveu em São Luís e no Rio de Janeiro 51 anos de bom humor. 1837-1888. Poeta, jornalista, orador, dramaturgo, revisteiro, tradutor, entusiasta, curioso, valente. Sílvio Romero, que não viajava pela admiração, escreveu sobre Joaquim Serra: “Homem alegre, compassivo, de um otimismo inalterável. Digeria bem e sabia dar gostosas gargalhadas.” Homem no gênero dos que precisam ser conhecidos pessoalmente, vistos, escutados, assistidos. A obra que deixou está nas recordações dos companheiros, no que essas recordações fazem imaginar do magnífico espetáculo que ele foi. Bastaria ter José do Patrocínio o apontado como patrono, para a nossa convicção do valor de Joaquim Serra. Não leremos mais os versos de Joaquim Serra. Não procuraremos mais as crônicas de Joaquim Serra. Nem poremos mais em cena nenhuma das suas revistas, nem o drama Remorso Vivo, que ele fez em colaboração com Machado de Assis, Ferreira de Meneses, Furtado Coelho, responsável este pelo prólogo, a música, a encenação e a interpretação do protagonista. Conservaremos, entretanto, a certeza de que Joaquim Serra significou muito na cruzada contra os exploradores e os carrascos dos escravos, significou muito na cordialidade semeada durante a vida sem tédio.

O homem do povo Joaquim Serra! Ele se expandia, ardente, bem-aventurado, defronte à multidão, falando, olhando, voz de muitos na sua voz, olhos de muitos nos seus olhos. Quando deputado, num recinto sem eco, exerceu o mandato quase indiferente. Faltou-lhe a comunicação, não teve a correspondência, o contato, o silêncio que atende, compreende, solidariza. Joaquim Serra, lúcido demais para se conformar, procurava as idéias, descobria o bom das repelidas, punha num desprezo reverente o mau das bem aceitas. Foi um dos estudiosos que logo propagaram o Positivismo no Brasil. O lema da nossa bandeira republicana fora o título de um jornal que fundou, ainda na província, em 1862: “Ordem e Progresso”. Autor, sim. E ator mais que autor. O papel que encarnou, na peça da Abolição, ele o manteve até o último ato, com o mesmo heroísmo sincero, meditado, tranqüilo. Nenhuma violência contra a violência: esclarecimento, persuasão. Assinada a Lei Áurea, Joaquim Serra saiu de cena, jubiloso com os aplausos repartidos entre os camaradas, apertou, sorrindo, a mão da Vida e desapareceu na Morte, absolutamente calmo.

JOSÉ DO PATROCÍNIO

Conjunto estranho de energias, corpo em que se aglomeravam todos os elementos. Espírito de luz. Tigre lhe chamaram. Foi, cada vez mais, da ascensão à queda, um homem. Trouxera o calor dos anjos rebeldes, a pele queimada de sol. O último desejo: voltar ao espaço. De asas perdidas, quis subir com um balão...

Morreu antes. 1905. O filho que em geral ampliava a verdade, creio que aqui a diminuiu:

Morreu tarde, muito tarde. Devia ter morrido dezessete anos antes. Devia ter morrido em 1888, no estrépido, no clangor, na ilusão da sua glória... Os anos foram passando, mudaram os tempos. Em novecentos e tantos, já sem a Cidade do Rio, o seu jornal, que muita gente tinha comparado a “uma força desencadeada na vida nacional” – fazendo um discurso a Santos Dumont, no Teatro Lírico, foi acometido da primeira hemoptise. Caiu-me nos braços... Cama... Aneurisma, Cirrose. E nem um níquel. João de Souza, Lage (“Deus lhe fale na alma!”) encomendara-lhe, quase por caridade, um artigo semanal para O País. Salvador Santos, nas mesmas condições, uma crônica humorística (humorística!) para A Notícia. Foram as derradeiras mãos que o ampararam... Vegetamos pelos subúrbios. Durante meses moramos num barracão onde o vento assobiava pelas frinchas das tábuas... Mas o governo mandou-lhe fazer o enterro, Funerais de Estado, coche de grande gala, cavalos cobertos de plumas negras, marcha fúnebre, embalsamamento, crepe nos lampiões... Seu corpo, durante quinze dias, esteve exposto numa igreja... Entretanto, no 8.º dia que se seguiu à sua morte, nós desocupávamos a casa em que ele morrera, em virtude de um mandato de despejo.

O Libertador dos Escravos. O Jornalista formidável. Um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. O primeiro que escreveu um romance com a vida trágica dos nossos irmãos do Nordeste Os Retirantes, depois de ter escrito, contra a pena de morte o romance Motta Coqueiro.

A Princesa Isabel leu os dois livros. Motta Coqueiro lhe incutiu o horror à execução dos condenados. Estando de regente, recusou assinar uma pena de morte, entregue pelo ministro Sayão Lobato:

– Eu não assino penas de morte!

– Princesa, a Rainha D. Maria Primeira, antepassada de Vossa Alteza,
assinou muitas...

– Sim... mas era maluca.

O que Os Retirantes mostraram à futura Redentora não pôde ser remediado, então, nem depois, nem agora...

No meio dos sofrimentos da seca de 1877, José do Patrocínio pôs um sem data, e nele todos os regimes adotam a definição de Anatole France: “Mudanças de nome das necessidades públicas.”

Entre o retirante e o Estado havia um sorvedouro – as comissões de socorros. Cresciam de par as despesas, a mortalidade, a penúria, porque indivíduos desnaturados, abusando da boa-fé do ex-presidente, aproveitavam-se da miséria do torrão natal para enriquecer.

Os Retirantes narram coisas vistas. O autor esteve no Ceará em 1877, acompanhado de Paula Ney.

Nilo Bruzzi, que não se fatiga da vocação de descobrir raridades bibliográficas e de clamar pela fama dos autores esquecidos, conseguiu um volume de Os Retirantes, edição da Gazeta de Notícias, 1879, e afirmou: “Esse romance de José do Patrocínio talvez seja o livro mais emocionante que se escreveu no Brasil até hoje. Ninguém o alcançou em dramaticidade, colorido tão vivo e quadros tão fortes... É rica a linguagem do romancista, extenso o seu vocabulário.”

O penúltimo romance de José do Patrocínio. Pedro Espanhol, tem duas partes: uma, em Lisboa, durante o terremoto de 1755; a outra, no Rio, e é a história do homem do título, criminoso, vindo para o Brasil escondido na frota de João VI.

José do Patrocínio, filho, queixou-se de Carlos de Laet por haver posto, em resumo biográfico de José do Patrocínio, na Antologia Nacional ou Coleção de Excertos dos Principais Escritores da Língua Portuguesa do 20.º ao 16.º Século:

... ainda estudante, já escrevia para os folhas, iniciando-se com uma acrimônia
que por vezes ultrapassa as raias da verdade, enveredando pela calúnia.

Carlos de Laet e José do Patrocínio nunca afinaram um com o outro. Quando as reuniões da Academia eram no escritório de Rodrigo Octavio, numa delas, muito concorrida, quando Patrocínio chegou, só havia um lugar, – ao lado de Laet. Patrocínio olhou, dirigiu-se para lá, mas antes quis saber:

– Nós agora estamos de mal ou de bem?

– De bem.

– Então boa-tarde! – e sentou-se.

Enorme José do Patrocínio! Clamor e suspiro... Romantismo e realismo... Braços levantados em protesto e em agradecimento. Numa das mãos, um raio. Na outra das mãos, uma rosa.

MÁRIO DE ALENCAR

José de Alencar segue pela sua estrada. Machado de Assis segue pela sua estrada. Entre os dois, Mário de Alencar procura criar distância dos rastos do pai, pois foi “o pai”, o que o dominou desde a infância; procura criar aproximação do amigo porque, nele, anseia obter a alforria do espírito, já que não pode obter a alforria do sangue.

Escuta: “Verdes mares bravios da minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros...”

Para abafar os gritos interiores, balbucia:

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos, três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. – Continue – disse eu acordando. – Já acabei, murmurou ele. – São muito bonitos. – Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhandome Dom Casmurro...

Imaginação da realidade. Nela se formou, para mim, o escritor Mário de Alencar. Não o seduziam as figuras e os enredos contemplados, as palavras cotidianas, O ímpeto era pelo que lhe dava, na pequena igualdade sem marca, a gente representando a vida, como as cenas de Botafogo, do Flamengo, da Glória, da Lapa, do Andaraí, da Tijuca, em línguas de zonas diversas, em ruas de aspectos e nomes trocados, pelos continentes, pelas ilhas, pelas cidades onde a velha ordem de Deus nunca se recusou a ser obedecida: “Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra.”

Ele adivinhou o geral de Machado de Assis, num idioma de pouco uso. No modo de dizer de Machado de Assis percebeu o seu modo de dizer. Não imitou: coincidiu. E compôs, pelo menos, duas obras-primas nos Contos e Impressões; “Tia Lulu” e “Coração de Velhos”. Mais pessimista que o amigo; menos amargo.

OLEGÁRIO MARIANO

O HOMEM DA NOITE

De quem são esses passos cansados
Cortando o silêncio que escorre no asfalto da rua?
De quem são esses olhos molhados
Que choram brilhando na réstia prateada da lua?

De quem são esses gestos largados?
Que sombra é aquela que por entre as árvores se insinua?
De que mundos longínquos, perdidos, ignorados,
Vem essa voz que além do vento continua?...

De onde vêm esses loucos e fundos soluços?
Que homem é aquele que caiu de bruços,
Com a boca sangrando no último estertor?

– É o homem da noite que veio de longe, de rumos diversos
Com os ombros curvados, carregando versos,
Carregando estrelas para o seu Amor.

Neste instante eu bendiria os meus olhos se eles me mostrassem todas as mulheres do Brasil, fazendo roda e dizendo ao poeta enamorado da vida, porque a vida é mulher, dizendo a Olegário Mariano:

– Nós sabemos por ti o que é ser imortal. Vives no nosso amor. Em cada verso teu continuas entre o Céu e a Terra, como foste, como és, como serás.

Enamorado da vida. Eis Olegário Mariano. Enamorado da Natureza e da humanidade, nomes femininos, e das cigarras que se vão perpetuando pelo amor:

Quando a cigarra canta é o sol que canta.

A fragilidade da cigarra se acendia em Olegário:

– É um pedacinho de alma, não é?... da alma do mundo. A nossa alma é a cigarra que nos tocou da distribuição da cigarra grande... É preciso não deixar que não haja inverno na nossa alma... não deixar nunca que o sol se apague...

“Toda uma vida de Poesia...” O homem Olegário passou pelo poeta Olegário e não o viu. Se alguma vez o homem pecou, o poeta não teve culpa.

A quizília contra o Modernismo era atitude mantida, não era vontade sincera de negar. Admirou sempre a Poesia de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, admirou sempre a música de Heitor Vila-Lobos e Jayme Ovalle,admirou sempre a pintura de Portinari, Di Cvalcanti, Pancetti.

No hospital, certa manhã, me disse:

– Brasília, seu Álvaro, vai fazer no mundo a maior propaganda do Brasil.

– Você é contra?

– Não. Eu sou contra a mistura. Uma obra assim, completa, de estilo todo se harmonizando, com Niemeyer e Lúcio Costa dirigindo, é capaz de ser um acontecimento novo para a humanidade já farta de tanta guerra. Brasília pode ser a Cidade da Paz...

Ouvi do poeta:

– Os homens apressados deste meio século não têm tempo de pensar que a Poesia ainda existe. Nem a vêem no ar como os satélites artificiais, julgados simplesmente, como dizem, “a última palavra da Ciência.” Mas, são os mesmos homens capazes de descobrir discos voadores, submarinos misteriosos, viagens à Lua, tudo fruto da imaginação. A Poesia está viva, em todas as horas, em todos os lugares: a chamada modernista e a sem objetivo – Poesias apenas. Os poetas continuam semeando e colhendo na sua ilha.

Tinha uma ternura de riso, lágrima, compreensão, pelos cachorros. Mas, quando se enfurecia, – para injuriar o enfurecedor, exclamava:

– Cachorro!

– “As duas sombras”, de 1917, fatais em todos os programas de declamação, impediram que os poetas mais moços descobrissem Olegário Mariano – o poeta brasileiro, essencial, arraigado, resplandecente. Não foi o poeta do Amor e da Saudade. A saudade de Olegário era esperança. O amor de Olegário, no primeiro beijo, já dizia adeus.

Três mulheres lhe iluminaram a vida: duas Olegárias, a mãe e a filha, e uma Maria Clara no meio, a companheira, a que conservou as mãos de Samaritana para lhe dar de beber, no fim, a água da purificação.

O CHAMADO DE PORTUGAL

Não se suponha que foi por ambição e vaidade que aspirou ser embaixador. Que honra, que glória lhe daria ser embaixador, se ele era príncipe, e Príncipe dos Poetas?

O céu e o chão de Portugal o chamavam, como chamaram e estão chamando os brasileiros partidos daquele Céu e daquele chão no corpo e na alma dos seus maiores. Luz de Portugal, ar de Portugal, água de Portugal... beleza, ternura, esperança... para ver toda a vida, para ouvir toda a vida, para abençoar toda a vida... Pôr na pronúncia de Portugal, o sotaque do Brasil:

LÍNGUA PORTUGUESA

Da avena dos pastores, da harmonia
Que o vento imprime às palmas das palmeiras,
Do bramido do mar e das cachoeiras,
Da voz que impreca à voz que balbucia;

Do sol que fala quando nasce o dia,
Do luar que enche de unção as cordilheiras,
Vem este claro idioma, que é Poesia
E alma das gentes luso-brasileiras.

Rumor de asas de abelha, um ruído apenas...
Doce afago de arminhos e de penas,
Perdão, queixume, lágrima, reclamo,

Ou grito estuante de alma incompreendida,
Do desgraçado: “Eu te condeno, ó vida!”
Do poeta que sofreu: “Ó vida, eu te amo!”

MOSTRANDO O RECIFE

Com a meiga fala de Pernambuco, mostrar ao Tejo, ao Mondego, ao Douro, aos grandes e pequenos rios de Portugal, o rio de Recife:

Os canoeiros passavam cantando na tarde lívida.
A cidade emergia das águas do rio,
Da enchente do rio. Na Rua da Aurora,
Como eram tristes os crepúsculos baixando
Da solidão do céu na alegria da terra!
E a água do rio – miradouro dos poentes –
Cheia de baronesas e ninféias,
Ia levando para longe o bojo das canoas,
E as varas dos canoeiros mergulhavam
Na água revolta, ferindo fundo
o coração do grande rio da minha terra.
E vejo no outro lado esbatido da margem
A Câmara, o Ginásio e a casa alta,
Bem na esquina da Rua Riachuelo
Onde vivi meu tempo amargo de pobreza.
E o rio me recorda outros dias longínquos
Quando as canoas, na calma das noites sem lua,
Passavam levando escondida a escuridão eterna
De outras noites, na pele retinta dos pretos,
Dos pretos escravos que meu pai mandava
Para o Ceará, que era o país da redenção.
O rio é o mesmo, o mesmo ritmo que embala
As águas, ora sujas e barrentas,
Ora claras, translúcidas e puras
Como a consciência cristalina
Dos homens antigos da minha terra:
Nabuco, Martins Júnior, Zé Maria,
João Alfredo, Faelante, Zé Mariano.
Rio da minha terra! Eu te bendigo
Pela unção que em minha alma derramaste,
Pela poesia que trouxeste das aldeias.
Dos campos floridos, dos sertões distantes.
Canta em ti a cantiga dos monjolos,
O mugido dos bois no cercado do Engenho,
O grito do aboio do vaqueiro errante,
Que vara as caatingas em busca do gado perdido.
As águas encrespam-se agora. De finas e leves,
Transforman-se em trombas pesadas que avançam
Como serpentes enroscadas. Vão rugindo...
E as vozes agora também se tronsformam:
É o movimento abolicionista:
Vem do Santo Isabel a imprecação estuante
De gritos, alaridos e blasfêmias
Contra os escravocratas do momento.
E o caudal de entusiasmo atravessa as aldeias,
E penetra os sertões e percorre as cidades,
Levando na fúria das águas selvagens
Milhares de braços que imprecam
E de olhos que choram, pedindo piedade.
Depois a preamar republicana. Ouço o bramido
Que ruge na garganta dos tribunos:
Torneios d’Agora a inflamar a alma do povo.
Minha mãe empenhando as suas jóias
Para que se vencesse a eleição de Nabuco.
O verbo do meu pai, prisioneiro
De Floriano, na “Revolta”. Tudo passa
Diante de mim, dentro das cenas familiares.
E o rio na marcha sonâmbula e triste, retinha
No ruído das águas tranqüilas as vozes dos homens valentes...

A VOLTA

Voltar. Querer mais o Brasil, ainda maior depois da visita à pátria primitiva. Ah! achou a verdade quem achou: “Feliz do poeta que tem uma província no fundo do coração.”

Distender “O Panorama Natal”:

Poeta do Sul!

[...]
Contempla o sol, o grande sol da minha terra!
É um dilúvio de luz numa carícia longa.

E escuta no pau-d’arco o grito da araponga
Alertando o horizonte ao seu grito de guerra.

Olha este homem vencido, humilde e pequenino,
Maltrapilho, a bater a enxada na labuta.
Vem apertar-lhe a mão: é o caboclo nordestino,
Um cordeiro na paz, um centauro na luta.

Verás como ele vai, como anda, como ginga...
Salta no pelo nu de um cavalo. Repara:
É uma seta que parte alucinada e vara
Num só golpe o cipoal imenso da caatinga.

Acompanha-lhe os gestos calmos e prudentes,
Sonda-lhe os olhos. Vês? Há chispas de arrebol.
Tenho a impressão de que nas suas veias quentes
Em vez de sangue corre o ouro líquido do sol.

Verás seu pulso de gigante a terra abrindo...
Em pouco é a antevisão das surpresas humanas:
Perdendo-se à distância, o panorama é lindo
Com os cocares guerreiros nas hastes das canas.

[...]

Dá-me o teu braço, poeta, e vem caminhando comigo
Ver a Festa rústica do Poço da Panela:
Nossa Senhora da Saúde, meu amigo,
Foi meu primeiro amor e inda hoje eu penso nela.

[...]

É assim a minha terra. Um roseiral desfeito...
O mar, o rio, o céu num sorriso infantil.
Vendo-a no que ela tem de mais nobre e perfeito,

Sentirás, meu amigo, a escaldar no teu peito,
Como eu sinto, esse amor grande pelo Brasil.

E “A Festa da Chuva”:

As enxadas abriram na terra escaldada e deserta
Um sulco profundo que foi no fundo das suas entranhas,
E a terra com o beijo das chuvas, sorrindo, desperta,
Das chuvas que rolam das nuvens pesadas como altas montanhas.
Desperta e de cada ferida do seio ferido e sangrento
Irrompe o milagre da força da terra com as forças humanas
E agora perpassa, volátil, e tênue, nas crinas do vento,
O frêmito verde dos verdes penachos pendentes das canas.

O arroio pequeno na sua pequena e tranqüila humildade
Encheu de repente, quebrando as algemas das margens serenas,
E abriu-se num rio impetuoso que foi de cidade em cidade,
Levando no beijo das águas um bálsamo a todas as penas.

Chegara ao tempo em que o campo dá a recompensa da solidão.
Abrigou-se em Teresópolis, na “Toca da Cigarra”, entre rosas, madressilvas,
cedros, com um riacho cantando perto, “duas pinhas no portão,” todos os
pássaros da serra – a cigarra na sua toca – casa de poeta, casa de Deus.

E via subindo a madrugada:

Há nas coisas um humano entendimento:
No alto da serra, quando dealba o dia,
Sobe um canto festivo de alegria
Das árvores molhadas de relento.

23/11/1959