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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. ALCEU AMOROSO LIMA

SENHORES,

Sem forma, sem cor, sem ruído, vejo sem ver, ouço sem ouvir, três sombras vagas que me acolhem, no silêncio desta assembléia. Nelas reconheço os vultos amigos de três grandes homens de bem que imortalizaram esta poltrona. Pela primeira vez em sua história, vai ela sentir-se grande demais para receber o ínfimo herdeiro de tão alta herança: Eduardo Prado, Afonso Arinos, Miguel Couto, padrões de gente boa, como em certos campos nos acenam para os vultos distantes dos paus-d’alho, padrões de terra boa. Nenhum dos três, em qualquer momento da sua vida, em qualquer página de sua obra, deixou de ser acima de tudo um homem, puro, simples e bom, sem artifícios com que a mediocridade literária costuma desumanizar as suas vítimas.

Leva a literatura o homem facilmente ou muito acima ou muito abaixo de si mesmo.
Eleva-o, quando representa uma exigência de sua natureza profunda. Degrada-o, quando exprime apenas o desejo de criar uma nova natureza, postiça e artificial.

No primeiro caso, coloca-se ela no próprio caminho da vida. Impõem-se, sejam quais forem os obstáculos, e tanto mais fortemente quanto maiores. Nem o sofrimento, nem mesmo a felicidade – mais difícil de vencer que o infortúnio, – conseguem desviar de sua ascensão aquele que sentiu um dia o apelo misterioso da voz literária. O “peso do amor”, de que falou Santo Agostinho, aqui se mostra em toda a sua pressão. Para muitos é ela o grande repouso, o único repouso. Por ela, pela poesia, pelo romance, pelo ensaio, falam todas as vozes misteriosas do universo. Chegam por ela, traduzidas em linguagem clara, as mensagens cifradas que os seres nos enviam. E mesmo quando outras vozes mais altas nos segredam e temos a graça de transpor as barreiras com que nos cerca a natureza criada, – leva-nos a literatura, a mais humana de todas as artes porque a mais próxima da nossa inteligência, – ao próprio coração da realidade e ao caminho de todas as ascensões.

Quantas vezes, porém, é bem diverso o que nos é dado ver nesse terreno. Em vez de inquietação literária, a displicência. Em vez do amor, a libertinagem. Em vez do drama da vida, o divertimento. Torna-se a literatura, então, um simples passatempo ou uma vaidade. À vocação imperiosa substitui-se a vontade de brilhar. Cede a tragédia de reviver a vida à preocupação de dizer coisas bonitas ou engenhosas. E enquanto o verdadeiro homem de letras participa, dolorosa ou alegremente, de todas as dores ou alegrias dos outros homens de quem se sente o intérprete e o guia, – deixa a vaidade literária apenas subsistir, no desejo malsão de aparecer, a ilusão ridícula das gloríolas e a tola preocupação da publicidade. Essa pseudoliteratura é o paraíso do individualismo.

Ora, estamos, ao que parece, nos afastando, lenta ou bruscamente, da sociedade atomista e dissociada, em que o indivíduo era Rei, – para novas formas sociais em que a coletividade, a massa, o grupo social ou as corporações readquirem uma importância que haviam perdido, em regra, no apreço das passadas gerações. Na sociedade corporativa e personalista para a qual nos encaminhamos, vem a função social dos grupos de cultura equilibrar a importância crescente dos grupos de trabalho.

Cultura e trabalho devem caminhar harmoniosamente, na sociedade, em benefício da vida nacional e do bem comum. Se em face da força do Trabalho, em seus centros de interesse; e da Política, em seus partidos vários ou em seu partido único, – não se reunirem as forças culturais, nas Universidades, nas Academias e nos Conselhos, para defender a independência do Espírito e os direitos da inteligência, do coração e da beleza, – veremos mais uma vez quebrado o equilíbrio das forças sociais. Em nossa adolescência, considerávamos as Academias como simples institutos de aposentadoria da decrepitude literária. E um de nós, repetindo A. France, na prova escrita de uma disciplina cujo catedrático era membro desta Casa, cometeu a gaffe, não sei se voluntária, de escrever que – “enquanto certos povos primitivos faziam os velhos subirem às árvores, sacudindo-as depois para verem se ainda tinham forças de se agüentar, e, portanto, se eram dignos de viver,  – entre os povos civilizados era o costume colocá-los nas Academias...”

Foi Graça Aranha um dos que romperam com esse preconceito e acreditaram na larga função intelectual da Academia. E muito me apraz citá-lo aqui, neste passo e neste recinto, onde, naquela tarde eletrizante de há onze anos passados, quando pronunciou sua rumorosa conferência sobre o “Espírito Moderno”, – Augusto Frederico Schmidt, que ainda não era então o grande renovador da poesia brasileira moderna, e quem hoje vos fala, – o carregaram aos ombros, em triunfo, no fim da sessão, que se transformara numa espécie de batalha de Hernani.

Na soleira da Idade Nova em que nos encontramos, não devemos ver nas Academias uma jubilação literária ou simples consagração de vaidades – e sim o aspecto intelectual, justo e moderno, da organização social corporativa em que estamos ingressando. E ainda, a expressão viva e presente da tradição intelectual de um povo, como a considerava Jackson Figueiredo, cujo amigo recebe hoje em sua memória o que só a ele era devido.

Duas grandes forças presidem à evolução intelectual de um povo: a tradição e a criação. Constitui a primeira e espírito comum da nacionalidade, que se perpetua pelo nexo das gerações sucessivas. Ao passo que a força de criação é apanágio do espírito próprio, que se afirma, não em hostilidade ao espírito comum, mas dele distinto.

Da conjugação constante dessas duas formas de espírito é que poderemos chegar a erigir em nossa terra, em época impossível ainda de prefixar, uma literatura não apenas acessória às letras universais, não apenas de escassos êxitos excepcionais, como até hoje, – mas realmente fecunda, original e de tal sorte que não se possa tolerar sua ignorância em qualquer estrangeiro culto.

Nesta Casa das Letras Nacionais, que tem por função defender o espírito de tradição e vitalizar o de criação que o completa, – muito me apraz entrar pela mão dessa estirpe ilustre de escritores em que tão bem se conjugaram, para a dignidade da inteligência brasileira, aquelas duas formas de espírito que se completam na vida de um homem, como na história de um povo.

Voltando-me agora para essas sombras imortais que, nesta noite, pairam, silenciosas e invisíveis, sobre nós, vejo surgir a que mais perto de nós se encontra, tão viva ainda para todos aqui presentes, que parece seguramente a de um intruso a voz que ousa invocá-la neste instante. Continua entre vós Miguel Couto. Estais ainda a ouvir a inesquecível oração com que transpôs os vossos umbrais. Estais ainda a ver a sua grande figura pálida, de gestos longos, de voz velada e cariciosa, de olhos tristes e indormidos, deixando em tudo e em todos um pouco de seu coração inesgotável.

Os críticos, meus companheiros de infortúnio, bem conhecem uma dupla perplexidade, tão freqüente em nossa impiedosa tarefa. Ou bem murmuramos inquietos, a morder o lápis ou a caneta – “que vou eu dizer, Santo Deus, sobre este deserto!”. Ou pelo contrário: – “Como escrever tão pouco sobre este mundo!”

Na segunda alternativa é que me encontro. Como falar de Miguel Couto, que foi um mundo, nos escassos limites de alguns minutos? “Não perdendo tempo”, direis vós. E com razão.

Nasceu Miguel Couto a 1.º de maio de 1865, em lar modesto, condição logo agravada pela morte prematura do seu chefe, quando o filho mal contava cinco anos de idade. Começou cedo a viver, por conseguinte, pois que a fortuna é quase sempre uma escamoteação da vida. Vindo da Baixada Fluminense, triste e monótona, para Niterói onde estudou Humanidades, no Colégio Briggs, não teve a infância turbulenta e despreocupada de tantos outros. Cedo se habituou a ver, na casinha pobre de S. Domingos, os trabalhos domésticos e as vigílias de costura daquela mãe solitária e incansável, Marta e Maria ao mesmo tempo de um lar humílimo de subúrbio. Terno, desvelado, estudioso e tímido – crescia o menino sem folguedos, entre o estudo e o trabalho. Sorria-lhe, por certo, a dedicação inexcedível daquele anjo doméstico e tutelar, que tudo por ele fazia. Não lhe sorria a vida, no entretanto. E antes se apresentava como uma dura encosta a galgar, incerta de horizontes e segura apenas em suas íngremes ladeiras exaustivas. O adolescente, de temperamento vibrátil e feminino, logo se feriu nesses espinhos.
Há homens que nascem para a luta e só nela se sentem à vontade. Dessa espécie não foi Miguel Couto, embora nunca tivesse fugido à arena, sempre que suas idéias o exigiam. Era-lhe a natureza uma daquelas que só se sentem bem na sombra, no anonimato, num ambiente feminino e estudioso, de delicadeza, de aprovação e de carinho. Forçava-o, porém, a vida, muito cedo, a mortificar seu temperamento. Como a Glória mais tarde o forçaria a vencer sua moléstia. Feria-o, desde logo, nas perspectivas incertas do futuro, e na rudeza de sua impiedosa engrenagem. “Ai dos delicados!”, exclamava Vauvenargues. Ai dos tímidos, dos que amam o silêncio, dos que lêem nas entrelinhas, dos que erraram de vocação. Aprendem depressa o caminho do sofrimento, que liberta o homem ou que o degrada.

O sofrimento prematuro, em Miguel Couto, o contraste doloroso entre um temperamento de arminho e uma vida rude e difícil de conquistar, sem amparo e proteções, longe de lhe diminuírem a natureza transfiguraram-na. Nunca se deixou vencer pelo contraste perene entre o excesso de coração de que sofria e o contato contínuo com a dor e a miséria, em que se viu desde menino forçado a viver.

Criança sem infância, teve também uma mocidade prematuramente amadurecida nas vigílias de estudo e nas longas horas de anfiteatro e de lições. Amigo íntimo de Azevedo Sodré e Alberto Torres, as maiores extravagâncias que se permitia aos quinze anos, como ele mesmo o confessou com emoção, era quando, com algum dos dois, – “na capital vizinha, ao cair da tarde, em passeios sem destino, dialogando como Teofrasto e Filaleto, resolvíamos as mais transcendentes teses político-filosóficas, por entre olharadas fugitivas às meninas molemente sentadas nos jardins, o que cada um ocultava do outro para não enfraquecer a rigidez incorruptível dos princípios”. (A Medicina e a Cultura, p. 76.)

Foi num desses bancos, quem o sabe, que numa dessas tardes de passeio encontrou aquela que ia ser, por toda a vida, o seu anjo tutelar, o seu único amor, a companheira incomparável a que tudo ofereceu por toda a vida, prêmios, viagens, obras, títulos, glória.

Aplicado sempre, nunca turbulento ou extravagante, ia vencendo, passo a passo, num longo e doloroso esforço, a distância com que vinha disputar a incerta carreira da vida.

Confessaria mais tarde que a Faculdade de Medicina, onde ingressou em 1880, o deslumbrara. As becas dos professores, os discursos solenes, os concursos, as aulas, as sessões magnas com a presença do Imperador, ou o borborinho dos páteos, tudo, tudo penetrava o íntimo da alma desse rapazinho tímido que, a fim de obter recursos para estudar, entregava remédios de manhã e varria a farmácia do irmão, em S. Domingos, onde só o conheciam por “Miguelzinho da Botica”.
Remédios, doenças, misérias, vigílias de trabalho e de estudo, vagos namoricos, – eis as manhãs, os dias e as noites desse adolescente anônimo e ignorado, cuja morte, meio século mais tarde, faria estremecer um continente.

Formado, com que esforço!, em 85, quase ao findar o Império; já interno, por concurso, de Torres-Homem; primeiro aí como em tudo o que mais tarde viria empreender – hesitou entre a cidade e os campos... Tentou o interior. Esteve em Jaú. Mas acabou escolhendo o mais pobre dos bairros cariocas para se fixar: essa Prainha, que cheirava a maresia e a café, entre trapiches e favelas, onde começou suas canseiras, morro acima, morro abaixo, a 500 réis por consulta e a de dez tostões por visita, sem contar que o médico muitas vezes era quem pagava o remédio e a dieta...

Nada mais difícil do que iniciar uma carreira. Nenhum problema, talvez, mais doloroso para o mundo moderno, superlotado de diplomas. Tudo conspira contra a gente. Tudo é penoso e lento. Tudo hostil. E nesses anos primeiros de contato com a vida, é que muitos traem a sua vocação e seguem o caminho mais fácil ou oportuno. Não se deixou abater Miguel Couto por essa vida sem brilho e sem renome. Não procurou o emprego que descansa nem se contentou com aquilo que a vida quotidiana lhe oferecia. Continuava a estudar, sem repouso. Dava à sua tarefa, à sua profissão, à sua insaciável curiosidade científica e social, essa imensa capacidade de dedicação, que o faria, por toda a vida, conjugar o verbo servir em todos os tempos.

O Rio, velha cidade colonial, de ruas tortas e praias imundas, que a nossa geração em sua infância ainda conheceu em seus andrajos – era então cercado de um halo apavorante de contaminação, terror dos forasteiros e pesadelo dos higienistas, espécie ainda rara e tateante.

Fixando-se logo o jovem recém-formado sobre o problema máximo do momento, como o faria sempre ao longo de sua ascensão contínua pela vida, dedicou-se à febre amarela. Sobre ela concentrou os seus estudos e por longos anos pesquisou, em muitos milhares de casos, todo o quadro clínico e social do morbo impiedoso, que marcava o Brasil com um estigma de maldição.

Por treze anos a fio, foi o modesto médico da Prainha, o homem apenas de sua profissão. Formara-se a crisálida, lenta e laboriosamente. Nos círculos de amigos já se comentavam seu saber, sua assiduidade na Santa Casa. Em 1896, aos 31 anos de idade, recebia-o a Academia de Medicina, ainda moço, mas já respeitado, já conhecido, embora sempre tímido e deslizante.

Dois anos mais tarde, porém, dava-se o acontecimento dramático que de um dia para outro ia abrir-lhe de par em par as portas da grande notoriedade – o concurso.

Hesitou, recatado como sempre, e sempre desconfiando de suas próprias forças. Foi Azevedo Sodré que o arrastou à inscrição, por um ardil de amigo. Concorria com Pedro de Almeida Magalhães, já famoso, cheio de talento, exímio orador, vindo há pouco da Europa, favorito de quase todos, grande brigador além de tudo.

Argüiam-se, nesse tempo, reciprocamente, os candidatos. E aí se defrontavam a arrogância com a timidez, a eloqüência com a dialética, a ênfase com a simplicidade, como tão sóbria e evocativamente o descreveu Mário de Alencar: “Entretanto o vosso competidor não recorrestes a nenhum estratagema; usastes, como num diálogo a sós, do vosso saber e da vossa polidez; ao ímpeto nervoso opúnheis a calma, à cilada a defesa prudente, ao golpe atrevido a segurança; à facúndia sonora a expressão substanciosa, ao excessivo, a sobriedade, à ciência a ciência. E ficastes vencedor.”

Foi a varinha de condão. De um dia para outro, mudava-se teatralmente o cenário. Revelara nesse concurso tal riqueza de saber, de finura, de segurança, de experiência científica, que os círculos médicos estremeceram, sentindo que uma força nova entrava em cena e que qualquer coisa de diferente vinha à luz. Um acontecimento, sua primeira aula. Ao ensino dogmático, erudito ou formalizado, tantas vezes árido e distante, que, salvo raras e gloriosas exceções, dominara até então, – vinha bruscamente suceder a palavra meiga, insinuante, velada, do professor que era um amigo, que conversava, indagava, colaborava com os alunos na explanação dos pontos. Foi uma era nova para o ensino médico, essa que Miguel Couto inaugurava com a sua vocação irresistível e insuperável para o magistério. “Dados concretos e objetivos (observa um de seus mais inteligentes discípulos e continuadores, Couto e Silva) substituíram os métodos acadêmicos e as digressões abstratas. A doença cedeu lugar aos doentes. À clínica foi aliar-se fecundamente o laboratório, que pesa, mede, controla e põe fronteiras à realidade contra a nossa imaginação... Quantos grandes médicos e biologistas de hoje não foram contagiados por ele, por esse “vírus” sem cura, que é o interesse científico?”

Por trinta anos, a partir de então, ia ser acima de tudo o Mestre. Girou sua vida, doravante, em torno de sua cátedra. Foi logo à Europa para se preparar ao ensino, e pôr-se em contato direto com as fontes desse saber que longamente haurira, nas vigílias da Biblioteca ou do quartinho de estudante perene.
Chegaram então as honrarias sucessivas; a clínica de todo o Brasil; os trabalhos originais, que iam ligar seu nome para sempre a fenômenos orgânicos e os sintomas patológicos. Veio a presidência inamovível da Academia de Medicina e, com ela, da classe médica brasileira. Mas, já então, o amador que nele também havia, a despeito do profissional, alargava os horizontes deste último. Estudante incansável, não lhe bastavam, para as grandes arrancadas noturnas, os campos limitados da sua ciência. Prolongava-se por toda a parte. Fazia incursões em outros terrenos. Cultivava os clássicos, a ponto de escrever e mesmo de falar o latim, sem desdenhar os modernos. Estendia sua curiosidade a tudo. Lia incansavelmente. E dizem mesmo que, às ocultas, praticava o feio pecado da crítica literária, o que seria um consolo, aliás, para o sucessor... Quando em 1916 se apresentou, na Academia de Letras, à vaga de Afonso Arinos, só se espantaram aqueles que não lhe conheciam a obra ou a palavra.
Passou sua vida a ser, então, a de um símbolo nacional. Amado por todos, por todos respeitado, aceito sempre e nunca discutido – como que pairava numa atmosfera superior, acima dos partidos, dos dissídios, das correntes de idéias e realizações. Foi por algum tempo, sem posição oficial, sem pretensão de qualquer espécie fora a de servir aos seus, à sua terra e à ciência – foi como que o Árbitro Moral do Brasil.

Não podia deixar a política de atraí-lo para si. Chamou-o com insistência. Convidou-o a ocupar uma cadeira no Senado e o cargo de Prefeito do Rio. Recusou. Recusou sempre. Finalmente, ao se recompor o Brasil depois da Revolução, com maior insistência a Política foi bater à sua porta. E então, num sacrifício supremo pela Pátria, a cujo serviço ia colocar suas últimas energias, aceitou corajosamente o mandato de deputado à Constituinte. E logo sentiu o peso da imolação.

Ele, o Mestre, o Árbitro, o Indiscutido, foi logo descido do pedestal pela fúria iconoclasta das paixões e da miséria humana. Era o cálice final que devia beber, para a sua consagração definitiva. Cumpriu à risca, com uma honestidade cívica inexcedível, exemplar para todos nós, o seu dever de deputado. Foi coerente com as idéias anteriores. E sempre assíduo. Vi-o, poucos dias antes da trágica manhã de 6 de junho, falar na Câmara. Subiu à tribuna, na sua palidez tresnoitada, cercado de uma auréola de carinho. Sentia-se que era um homem diferente que ali estava, vindo de outras regiões do pensamento e da ação, de outro ambiente mais alto. Era a Ciência. Era a Bondade. Era a própria imagem do desinteresse que ali víamos. E todos acudiam pressurosos a ouvir de perto aquela voz velada, que mal rompia aquele ambiente tão saturado pela acústica da retórica ou da polêmica. Seus grandes braços finos se alongavam, ansiosos e reticentes, como que dando asas ao que dizia, para que levassem a todo o Brasil um comovente apelo ao saber, à cultura do povo. Não era o Orador que se ouvia, pois não o podia ser para aquele ambiente. Era o Homem de Bem, o Incorrupto que falava e fazia, sem que o suspeitássemos, o seu testamento cívico.

E foi assim, em plena atividade de corpo e de espírito, não que o surpreendeu a morte, pois há muito já que a via com serenidade aproximar-se, mas que a recebeu, polidamente, esse grande brasileiro. Modelo de marido, de pai, de mestre, de amigo, de servidor da Pátria – foi o homem “cuja função era ser bom” como o disse Alcântara Machado, com essa pura e sadia humanidade que é a decantação das grandes virtudes humanas, que nele resistiram a todas as seduções da Glória, da posição, da fortuna e do saber. Foi sempre e até o fim – pois soube morrer de bem como vivera – foi sempre, em todas as posições e em todos os momentos, na vida pública como na vida científica, coberto de honrarias e ouvido como um oráculo, o mesmo homem bom, das grandes virtudes simples e domésticas, que aprendera em menino, no regaço de um anjo, antes do Sofrimento e da Glória, quando ainda Miguelzinho da Botica, naquele lar humilde e terno de São Domingos.

A vida e a obra de cada homem nem sempre nele coincidem. Alguns há que valem mais por si mesmos do que pelo que deixam de si. Outros, ao contrário, estão todos em sua obra e vivem ou viveram apagados por ela ou apagando-se para criá-la.

Em Miguel Couto, completam-se harmoniosamente vida e obra. Uma não pode ser compreendida sem a outra. Como homem de ciência, humanista ou sociólogo, sempre em sua obra encontramos a presença fiel do homem, como no homem, por seu lado, a cada passo se encontrava a presença da obra, pois o professor é justamente a criatura, em que se congregam intimamente uma e outra, como que as levando consigo indissociáveis. Ensinar é viver a própria obra. Pode o professor mais tarde reduzi-la a escrito. Pode conserva-lhe a ciência, a originalidade, a eloqüência. Nunca será a mesma coisa. O professor, como o orador, é aquele que vive em público a sua criação oralmente, no ato mesmo da criação e não depois dela, como o autor. Comunica-lhe o calor, o gesto, a vida indefinível que se espalha por todo o nosso corpo e colabora, na aula dada ou no discurso pronunciado e que nada substitui, pois a vida é irredutível às suas partes, pensamento, vontade, imagem, graça ou sensação. E se leitor e autor são dois estranhos que travam quando muito diálogos à distância através de textos impressos e frios, – colaboram diretamente o professor e o aluno, o orador e o ouvinte, na lição ou na oração. E a obra nasce do contato direto das almas, o que lhe comunica qualquer coisa de insubstituível e de essencial, na espiritualidade do ato e na impressão deixada. No professor portanto, mais do que em qualquer pessoa talvez, conjugam-se, a ponto de confundir-se, a vida do homem e o sentido da obra. E Miguel Couto foi e quis ser acima de tudo professor. É dele a confissão: – “À minha cadeira dediquei todo o parco engenho que Deus me deu, todos os meus momentos, a tudo desprezando por amor dela, e com ela servindo à Pátria, segundo a fórmula – patriotismo é cada um cumprir o seu ofício com a maior fé. Ainda agora o meu prazer é preparar uma lição em noite de espertina – como são curtas as noites! – e a minha maior alegria é a certeza de que a fiz boa.” (No Brasil Só Há um Problema Nacional, a Educação do Povo, p. 264.) Eis o professor em toda a consciência e a beleza da sua missão. Na qualidade de professor, divide-se sua obra, como sempre, em visível e invisível. O que nos deixou visível foi esse monumento da ciência médica brasileira que constituem os três volumes das suas lições de Clínica Médica.

Falecem-me naturalmente autoridade e competência para avaliar do seu valor científico, ou didático, sobre o qual já pronunciaram, aliás, os entendidos, a sentença mais encomiástica. O que podemos e o que devemos acentuar é a beleza literária, a elegância e a propriedade das imagens, a correção e a precisão da linguagem que da primeira à ultima lição desses volumes encantam o próprio leitor ignaro e o prendem de princípio a fim. É a mesma, a lição aí recebida, que Stendhal ia buscar todas as manhãs na leitura do Código Civil e que Miguel Couto aprendeu no trato quotidiano que manteve, por toda a vida, com os clássicos gregos, latinos e vernáculos.

Não que procurasse escrever “clássico” como fazem os falsos discípulos dos antigos. Não é outra a lição que os clássicos deixaram, senão a que ao artista dá a natureza. Não deve o artista fazer o que a natureza faz, e sim como a natureza faz. Não devemos também escrever o que os clássicos escreviam e sim aprender neles o modo de exprimir com a pureza o que se pensa com rigor.

Nas suas lições de clínica, mais remotas de qualquer intenção literária, como outrora Lafayette em suas lições mais técnicas do direito das coisas ou da família, deixando-nos Miguel Couto uma lição de estilo que qualquer homem de letras ganharia em meditar e seguir. Nenhuma palavra supérflua, nenhuma preocupação de ornato, nenhuma imagem desnecessária à compreensão do contexto. Da primeira à última página uma simplicidade, que nunca chega a ser vulgar, nem cede à tentação do efeito. E freqüentemente tal finura de traços e engenho no dizer, que revelam no professor e no cientista o homem de bom gosto. Ouvi esta página deliciosa sobre “medicamentos” que bastava para o ter colocado “par droit de naissance” não apenas na Academia de Medicina mas na de Letras: “Quem costuma tremer pela vida que lhe é entregue em confiança, vai devagar para ir seguro; começa pelas doses leves como quem tateia suscetibilidades e só aos poucos se aventura às doses mais intensas e para isto a ninguém precisa ouvir; basta não esquecer que é mais fácil matar o doente do que extinguir certas raças de treponemas que se enclausuram no organismo em zonas inexpugnáveis. Aliás, ou porque ainda não tenham confiança própria em nenhum medicamento ou de leitura a tenham em todos, os médicos novos são muito medicadores... Se os remédios clássicos e seculares, que conseguiram contrastar a ação do tempo e alcançaram os nossos dias ser oferecem assim à crítica, – imaginai agora esse aluvião de substâncias novas que chegam de toda a parte aos países consumidores como nuvens de gafanhotos e obrigam as drogarias a se fazerem de borracha para os conter. Naqueles há ainda a os amparar a tradição que se compõem de meia verdade e meia mentira e é a facilidade da noção em voga ou imitação que os revigora; nestes nem isso, nove décimos, que digo! noventa e nove centésimos não representam a menor utilidade e nenhum progresso. Mas todos têm boa acolhida e se alastram porque a humanidade blasée precisa ser sacudida em tudo pela novidade e assim como há remédios que se empregam porque se empregam, outros há que precisamente são empregados porque ainda não são empregados...” (E mostrando de outra feita aos seus discípulos uma receita complicada): “Este homem que veio ao nosso ambulatório por causa de uma bronquite esqueceu em nossas mãos esta receita que vos passo sem o nome que a firma; vede que na garrafa entrou toda a botica, só faltando o boticário.” (Clínica Médica, vol. 1. º, pp. 76-79.)

Páginas de antologia, como essas que resumo e Machado de Assis não repudiaria, fora fácil citá-las às dezenas em sua obra científica. Basta, porém, a que aí fica para avaliardes que razão tinha Couto em afirmar de Francisco de Castro o mesmo que dele podemos dizer “grande professor só será aquele que for ao mesmo tempo um grande artista... Grande professor de medicina só o será se... a sua alma vibrar ao contato das verdades científicas, se souber achar no fundo árido, doloroso ou repulsivo dos fatos mórbidos a emoção estética e for-lhe a palavra tão vibrátil quanto a alma para traduzir essa emoção”. (Clínica Médica, ibid., p. 35.)

Nesse pequeno auto-retrato se contém o que foi de fato em Couto o professor.
Se esta condensada sua obra visível de homem de ciência, nesses três volumes já hoje clássicos em nossa literatura científica – transborda de muito sua obra invisível de professor o âmbito de seus livros. Está escrita na memória dos seus internos e dos seus discípulos que por trinta anos lhe passaram pela enfermaria e pela cátedra, deixando-se seduzir pelo verbo e pelo gesto incomparável do mestre, insinuante e imperioso, cheio de humildade do verdadeiro homem de ciência e assombroso de erudição em todo o vasto campo das ciências biológicas. Não era o professor distante e dogmático que intimidasse ou entusiasmasse os seus alunos pela ciência apenas ou pela loqüela. Era o mestre que vivia a lição com os discípulos. Preparava-a cuidadosamente, pela noite adentro, como vimos, dando-a cada dia em forma diversa, mas adentro sempre inexcedível. Tudo o mais subordinou Couto à qualidade de educador a que tudo deu em vida. E continua a dar depois de morto pelo que deixou de si, visível em seus livros, ou invisível na memória dos corações que é a saudade, ou na saudade da inteligência que é a tradição. Sua obra de cientista, desde o tempo das famosas pesquisas no Hospital São Sebastião (de que resultou esse monumento clássico da medicina brasileira, em colaboração com Azevedo Sodré sobre a Febre Amarela publicado em alemão em 1901, na Enciclopédia Médica de Nothnagel) – sua obra de cientista nasceu assim, dia a dia, intimamente ligada aos trabalhos públicos do professor e do clínico. Dizia Goethe que era esse, ao contrário do que deve suceder com a obra de arte, o método a seguir nos trabalhos científicos. E sabeis que foi Goethe um dos raros que podiam falar de cadeira, tanto de uns como outros. “Nas coisas de ciência (escrevia o grande gênio de Weimar) deve-se fazer exatamente o oposto do que o artista julga aconselhável; este faz bem não deixando ver publicamente sua obra até que esteja completa, pois é difícil que alguém lhe dê bons conselhos ou aplausos; depois de terminada sim, deve acolher bem, meditar no louvor ou na censura, aproximá-los da sua própria experiência, de modo a preparar-se e aperfeiçoar-se para uma nova obra de arte. Nas coisas científicas, ao contrário, é necessário comunicar publicamente cada experiência isolada, cada simples suposição, sendo altamente aconselhável não erigir um edifício científico antes que o plano e os materiais já sejam amplamente conhecidos, e já tenham sido julgados e escolhidos.” (Allgemeine Betrachtungen über Natur und Naturwissenschaft – 1792, cap. 2.º)

Foi isso exatamente o que fez Miguel Couto, edificando lenta e publicamente a sua obra científica, baseada desde o início na experimentação do laboratório, na experiência do consultório e na divulgação do auditório. Foi, por isso mesmo, dos primeiros freqüentadores de Manguinhos, cujo nome Osvaldo Cruz imortalizou, como no-lo conta o sábio Henrique Aragão: “Em épocas há muito idas, tivemos a felicidade de contá-lo entre os primeiros pesquisadores que procuraram Manguinhos para realizar investigações ou esclarecer problemas... Era ele, já nesse tempo, alguém que possuía as mais sólidas e legítimas credenciais para estar ao nosso lado e nos prestigiar com o seu exemplo, sua palavra e seu saber, no momento em que, de dentro daqueles mais que modestos laboratórios de Manguinhos, começava a surgir o forte núcleo científico nacional.”

Só quase ao fim de sua vida, porém, depois de bem postos à prova os materiais de que se compunha, de livremente aventadas e discutidas as hipóteses, segundo o sábio conselho de Goethe, é que o homem de ciência consentiu publicar o seu monumento clínico, síntese de toda uma vida de pesquisador, de médico e de professor.

Quanto à sua obra de pensador social, que lhe completa a científica, se bem que incomparavelmente mais superficial e efêmera, como a cultura humanista preparara uma e outra – foi vindo a lume solicitada pelas circunstâncias.

Nos livros em que está recolhida, o que se sente é o alargamento da mesma personalidade afetiva e intelectual, que era no lar o mesmo que na enfermaria, na enfermaria o mesmo que na cátedra, na cátedra o mesmo que na tribuna, na tribuna o mesmo que nos livros, nos livros o mesmo que no Parlamento, e aí no Parlamento, onde a morte sorrateiramente o foi colher, o mesmo que na Eternidade, “tel qu’en lui-même enfin l’eternité le change”.

Miguel Couto, na múltipla distribuição de suas atividades, no trabalho variado e intenso com que encheu os dias e as noites de uma existência exemplar, seguiu sempre uma linha única e invariável: a de sua própria projeção no seu meio e no seu tempo. E tendo sempre em vista o serviço de alguma causa.
Nasceu assim sua obra social do espetáculo confuso do Brasil biológico e cultural, e do grande, profundo e invariável sentimento patriótico que sempre teve, vivo e militante.

Via no Brasil duas grandes chagas – a ignorância nas almas e a fraqueza nos corpos. Contra uma e outra pregou, como um apóstolo incansável, a Educação e a Seleção. E ambas visando preparar e elevar o homem brasileiro: “Compreende-se, pois (exclamava ele em um de seus famosos discursos anuais na Academia de Medicina), que se façam todas as valorizações de todos os produtos da terra, contando que venham depois da do primeiro entre eles – o homem... Se o homem é o primeiro patrimônio de uma nação, a sua saúde, isto é, a sua capacidade de trabalhar e a sua cultura, isto é, a sua capacidade de trabalhar bem, hão de constituir os primeiros cuidados dos governos; robustez e força, ao lado de inteligência e educação, preparando o homem para a vida e para a vida de sua Pátria.” (A Medicina e a Cultura, pp. 17 e 145.) Nesses trechos de orações, como que se contém a síntese das idéias por que, sem descanso, se bateu Miguel Couto toda a vida.

E não se limitou a pregá-las em livros e conferências, nos discursos anuais de Medicina ou nas orações de paraninfo, nas tertúlias dos intervalos das aulas e mesmo dentro delas, entre duas exposições técnicas primorosas. Levou-as para as “Jornadas Médicas”, que foram uma demonstração do sentido social e moral que dava à medicina, completando a sua base científica, e cujo panorama assim uma vez resumiu: “Valorização do homem pela saúde e a cultura; a saúde dando-lhe a força e a beleza; a cultura, dando-lhe a ambição e a bondade.” (Jornada Médica do Recife, disc. 28-07-28.) Foi também esse o programa social de sua vida. Levou essas idéias ao Parlamento. Converteu-as em emendas ou projetos de lei. Pugnou ardentemente por elas. E foi, para muitos, uma surpresa ver esse homem macio e insinuante, que parecia ser a própria imagem da Conciliação, a própria encarnação da Timidez, entrar na luta, desassombradamente, pela cultura do povo, para a qual queria abrir as pobres arcas do nosso minguado Tesouro, e pela pureza da raça, criando sem o querer, ele o estigmatizador da “peste rubra”, casos internacionais que iam mostrar não ser apenas a luz que vem do Oriente...
Terminava a sua obra como homem de ação, que sempre fora vivendo suas idéias a procurando convertê-las em regras de vida para o seu povo.

Qual a lição que nos deixou esse grande homem de bem? Tantas, que nem as Graças, nem as Musas, nem mesmo... os Acadêmicos bastariam para enumerá-las. Uma apenas, a maior talvez, quisera tirar como moralidade da fábula de sua vida; – ou o homem humaniza a ciência ou a ciência desumaniza o homem. Foi Miguel Couto um belo exemplar de humanismo científico ou de ciência humanizada. Homem, sempre e acima de tudo, e harmoniosamente, sem que a inteligência, a pesquisa de laboratório, a cátedra, a erudição ou a glória científica diminuíssem em nada a simplicidade, o frescor, a candura do coração. Sofria com os seus doentes; amava como filhos os alunos; tinha para os amigos ternuras de namorado; e nem mesmo o dom das lágrimas lhe negara a Providência Divina. Saudando-o, disse-lhe uma vez outro homem de ciência, discípulo de que se orgulhava e de que hoje nos orgulhamos nós de ter por companheiro, Miguel Osório: “A ciência poderá um dia vos reclamar tudo o que lhe havíeis prometido. Mas o que vale a ciência, falaz, precária e ainda balbuciante, diante dessa verdade eterna, insofismável, indestrutível: a caridade. E vós reunistes as duas.” (Poliantéa  Jubilar, p. 184.)

Deixou-nos um exemplo vivo na íntima e indissolúvel fusão que existe, na natureza das coisas, entre Ciência e Religião, entre conhecimento e amor, entre a inteligência e o coração. Sempre que dissociamos o fato espiritual, sempre que cortamos as ligações profundas e vitais entre a ordem natural e a ordem sobrenatural, e pretendemos suprimir qualquer dimensão do universo sujeitando-o à miséria de uma geometria metafísica apenas plana, – estamos longe da verdade profunda das coisas, e iludimos pela pobreza e pelos sofismas dos nossos sentidos. A inteligência completa os sentidos e a razão em nós, como a metafísica e a liturgia completam a ciência fora de nós. E na vida de cada ser humano consiste a verdadeira grandeza não em mutilar a natureza, mas em realizá-la na plenitude de suas possibilidades. A reconciliação integral entre as ciências da matéria e as do espírito, entre física e metafísica, entre observação científica e vida mística, entre o Mundo e Deus, será sempre a obra suprema do pensamento e da ação, a mais digna, a que pode prestar-se nossa mutilada mas infinita natureza humana. E é com alegria que venho encontrar no meu grande antecessor, nesse homem de laboratório e enfermaria, sempre virtual ou expressa, tanto em sua vida como em sua obra, essa plenitude da vida humana, a que nunca servimos com suficiente ardor e bastante entusiasmo. Pois a natureza é inexplicável dentro da própria natureza. E só o Infinito resolve o mistério das coisas finitas. Pasteur, ao ser recebido na Academia Francesa, deixou gravado para sempre, em sentenças lapidares, essa indissolubilidade que a sua vida de príncipe dos experimentadores encontrara, tanto no coração da realidade exterior, como na realidade do coração humano: “La notion de l’infini dans le monde, j’en vois partout l’inévitable expression. Par elle, le surnaturel est au fond de tous les cœurs. L’idée de Dieu est une forme de l’infini. Tant que le mystère de l’infini pésera sur la pensée humaine, des temples seront elevés au culte de l’infini... Celui qui proclame l’existence de l’infini, et personne ne peut y échapper, accumule dans cette affirmation plus de surnaturel qu’il n’y en a dans tous les miracles de toutes les religions; car la notion de l’infini a ce double caractère de s’imposer et d’être incompréensible. Quand cette notion s’empare de l’entendement, il n’y a qu’à se prosterner.” (Académie Française, Recueil de discours, 1880-1889, I; pp. 344-345.)

Na vida de um sábio completo, só é perfeita a atitude da inclinação para o estudo, quando termina na prosternação para a prece.

Foi sempre essa a lição de Miguel Couto. E sua vida um admirável equilíbrio entre a bondade e o conhecimento. Via na medicina alguma coisa de muito superior à simples arte de curar. São de seu discípulo, o jovem e já notável biologista André Dreyfus estas palavras: “Discípulo que fui de Miguel Couto, aprendi com ele a encarar a medicina não apenas como ciência de curar, senão e principalmente como arte de consolar. A ciência, por mais grandiosa que seja, por mais poderosa que se torne, a ciência, Senhores, não é tudo; e não é tudo, porque a ciência é essencialmente raciocínio e a vida humana, é, antes do mais, sentimento.”

A existência e os trabalhos de Miguel Couto constituem uma viva ilustração dessa verdade. Pois, como disse outro grande sábio, dos maiores que o Brasil tem possuído, Carlos Chagas: “O homem bom, o homem clemente, o homem piedoso, é muito maior do que o homem forte. Miguel Couto foi, por isso mesmo, um dos maiores homens do seu tempo.”

E reagiu contra o preconceito cientificista dominante ainda no seu tempo, religando assim ciência e espiritualidade. Soube ficar a igual distância do “diletantismo científico” que sempre declarou “abominar”, e do fanatismo científico, para o qual tudo na vida se explica pelas ciências experimentais. Teve a grande coragem de ser o homem de ciência que não oculta o seu sadio cepticismo científico. Para melhor servir à Ciência, procurou sempre conhecer os seus limites. E a consciência dos limites da Razão é a grande dignidade do verdadeiro espírito científico: como a consciência dos limites da Fé constitui a grande dignidade do verdadeiro espírito religioso. Na soma de ambos é que encontramos a verdadeira medida do ser humano.

Essa humanidade profunda, que se nos depara na vida, na obra e na lição de Miguel Couto, também é, graças a Deus, a nota que mais intensamente ressalta na lição, na obra e na vida dos seus dois grandes predecessores. Assim tenham eles impregnado esta poltrona dessa tradição humanista integral, que considero a mais bela expressão da cultura sobre a face da terra.

Surgem, já agora, ao apelo da nossa evocação coletiva, neste ambiente de saudade e de respeito, as duas outras sombras que, invisíveis, pairam esta noite sobre nós.

Vemos Afonso Arinos e Eduardo Prado fundidos numa só memória, como foram, em vida, confundidos num só ideal e num mesmo amor. E com eles é a poesia da terra que se levanta; é a alma do povo que se abre a nós; é toda a nobreza do espírito brasileiro que reponta nesses dois “aristocratas do sertão”, como os chamou Pedro Calmon.

Se quisesse aqui renovar o paradoxo do analfabetismo como índice do progresso, ninguém melhor do que Arinos, forneceria matéria para o fazer. O homem culto que ele foi; o familiar dos meios artísticos e literários do Velho Mundo, que por tão longos anos freqüentou; o peregrino fiel de todos os monumentos de arte humana, como sempre e invariavelmente se mostrou, – não podia entretanto ser apenas um romântico do povo rude dos sertões. O que Arinos amou naquele povo, o que nele foi buscar para dar vida aos poucos contos que deixou, poucos mais imortais em nossas letras, porque souberam traduzir, para todo o sempre, um dos aspectos indeléveis da alma nacional, – não foi sua incultura, mas a pureza do sentimento brasileiro, no “cerne da nacionalidade”, de que falou Euclides da Cunha.

O homem do sertão e o próprio sertão foram para Arinos não apenas um tema literário, mas uma advertência para toda a nacionalidade, e muito particularmente para os responsáveis pelo seu futuro. Façam-se estradas, levantem-se escolas, curem-se moléstias, abram-se à civilização as portas dos nossos desertos interiores, – mas, por amor de Deus, preservem-se nessa massa rude, inculta, e por vezes doente dos nossos chapadões, o que neles representa a brasilidade de nossa inteligência e do nosso coração. O que Arinos queria, nem mesmo era o que Ghandi propugna para os seus Indianos. Tear mecânico ou tear à mão; automóvel ou carro de boi; alfabetismo ou analfabetismo; força de músculos ou franzinidade de tipo, – não é em nada disso que reside o essencial para o futuro e para a elevação de um povo.

Se tivermos no Brasil uma invasão de escolas tecnicamente perfeitas; um aluvião de hospitais com as mais modernas instalações científicas; uma aparelhagem industrial poderosíssima; uma legislação social perfeita; cinemas, rádios, aviões, livros e máquinas por toda a parte, – mas tivermos perdido esse não sei quê, que não defino para não tombar na magniloqüência, esse segredo tocante de sedução e de incomparável lição moral que tantas vezes encontramos no mais humilde, no mais esquecido, no mais inculto filho da miséria e da ignorância, – se assim suceder, teremos trocado a primogenitura do bem e da independência pelo prato de lentilhas do primarismo cultural e da reles mitologia da curiosidade.

Contra essa tradição moral e intelectual, política e estética, possível, é que se insurgia Afonso Arinos. E dedicou-se então, de corpo e alma, à defesa dos que encarnam, na sua humildade, no seu anonimato, na sua indigência, o próprio coração da pátria, preservado nesse misterioso e violento sertão. Não foi apenas um saudosista; não foi um romântico do analfabetismo; não foi um esteta que aspirasse a conservar fechado o sertão para gozo do seu diletantismo de viajante. Em suas viagens era o primeiro a levar para o seu sertão, e para os seus sertanejos, tudo o que de bom nos tem dado o progresso científico e industrial do mundo moderno. Não era a pátria estagnada como um grande parque fechado para uso de sibaritas desencantados do progresso, que desejava. O que ele queria era defender a sua terra e a sua gente contra a invasão do pedantismo cosmopolita que já via rondando traiçoeiramente os horizontes. O que ele queria, era que o Brasil continuasse a ser brasileiro e a preservar as fibras morais mais rijas do seu caráter. O que ele queria era uma arte verdadeiramente nacional, impregnada do amor, da beleza, das virtudes, do coração e da paisagem brasileiras. Tudo isso ele o quis apaixonadamente, de perto ou de longe, no Sertão ou em Paris. Pois raramente se viu tão belo tipo de homem, expressão tão sadia, tão pura, tão verdadeiramente aristocrática de uma raça que nele produzia, sem o concurso de qualquer eugenia oficial, um desses modelos por antecipação do que pode vir a ser um dia o tipo físico perfeito do “homo brasiliensis”. E como conservou e cultivou, em sua alma grande e simples, essas mesmas virtudes autênticas que fomos encontrar na fisionomia moral de Miguel Couto, – nele nos defrontamos com um desses belos exemplares de homem, que nos reconciliam com a natureza humana, por mais que, por vezes, nos faça desanimar o espetáculo de fealdade e mesquinharia de que é também capaz essa misteriosa espécie animal, com que Deus, fazendo-nos Seus semelhantes, mostrou-nos realmente a Sua Onipotência...

Se Arinos foi, para nossa geração, não o romântico de um sertão embonecado, mas o revelador da sua fibra e da sua beleza natural e moral, tantas vezes rude e bárbara, – foi Eduardo Prado, para muitos de nós, o revelador da nobreza do passado brasileiro. Não tampouco em seu romantismo sentimental, que por tanto tempo vigorara oficialmente, e sim na sua dignidade. Começávamos já a ser invadidos pelo pessimismo histórico, que em Portugal matou o ânimo de uma geração, e que, aqui no Brasil, quase nos leva ao mesmo diletantismo nacional. Salvou-nos Eduardo Prado dos dois males iguais e contrários, tanto do farisaísmo histórico como do niilismo do nosso passado. Ensinou-nos o abc do caráter nacional, que é o interesse pela linhagem pátria. E foi restaurar, em nós, o respeito pelos regímens caluniados ou pelos homens esquecidos. Colocou de novo a história da nossa terra em sua tradição católica autêntica, e lutou, bravamente, contra todas as suas deturpações. Se Arinos defendia os nossos costumes, lutava Eduardo Prado pelas nossas tradições políticas. Se Arinos nos fez amar o povo rude do sertão, abriu-nos Eduardo Prado o peito aos rudes mestres de obra, portugueses e brasileiros, de nossa casa primitiva. Se Arinos pugnou pelas linhas mestras da alma brasileira, essencialmente cristã, revelava-nos Eduardo Prado as diretivas mais autênticas das instituições brasileiras, nascidas da mesma espiritualidade cristã e da mesma tradição ibérica civilizadora, da Monarquia que politicamente erguera o Brasil e da Igreja, que moralmente o formou.

Conjugavam-se assim seus temperamentos, seus ideais, seus métodos de ação intelectual e social. E preparavam a consciência brasileira para a defesa, iminente e necessária, contra as tentativas subseqüentes de envenenamento de suas fontes.

A lição desses três grandes homens de bem, – cujas sombras inquietas e desiludidas pela pobreza destas evocações estão quase a deixar-nos, – foi uma lição de fidelidade.
Fidelidade à Ciência humanizada, com Miguel Couto. Fidelidade à Terra e à Gente, com Afonso Arinos. Fidelidade ao Passado e à Fé, com Eduardo Prado.

O primeiro, levando-nos à confiança no futuro, à coragem de empreender grandes obras de saneamento, a largo prazo, da terra e do povo, pela cultura intelectual e pela seleção racial. O segundo, impregnando a nossa alma de amor por essa terra, de respeito por essa gente, quaisquer que fossem as suas deficiências e misérias na comunhão profunda com uma e outra, pela preservação das grandes e puras virtudes herdadas dos antepassados. O terceiro, levando-nos pela mão a esses avoengos ilustres ou medíocres, daqui ou de além-mar, trazendo-os também até nós, e plantando em nosso peito o respeito indelével pela linha da nossa formação moral e pelo espírito de nossas instituições fundamentais.
Em todos três a fidelidade às virtudes profundas que formam o que há no homem de dignidade em sua personalidade individual, e, no brasileiro, de já diferencial, em sua personalidade coletiva.

Estamos vivendo, hoje em dia, uma hora de tal gravidade e de ameaças tão iminentes a tudo o que de precioso recebemos dessa tríplice lição de fidelidade, que não podemos permitir, sem mais, se percam os ensinamentos deixados por todos três.

O homem brasileiro que Miguel Couto colocou sempre no centro de suas preocupações médico-sociais; que Afonso Arinos imortalizou nas páginas de seus contos sertanejos; que Eduardo Prado valorizou ou pôs em brios, nos textos de sua historiografia militante e viva, – o homem brasileiro sofre hoje o que sofre todo o homem moderno.

Séculos de inversão moral, de dispersão política, de injustiças econômicas, de caos estético, de diletantismo pedagógico, isto é, de empobrecimento e dissociação absoluta na ordem do espírito; e, ao contrário, de imenso, ordenado e sistemático progresso científico e mecânico, isto é, de enriquecimento e de concentração na ordem experimental e material, – colocaram nas mãos do homem moderno instrumentos de força desproporcionados à diminuição de sua fibra moral e de sua unidade espiritual. Quanto mais necessitava de ordem e hierarquia na inteligência para dominar as solicitações de mais em mais prementes de uma “civilização afrodisíaca”, como diz Bergson, – mais renunciava o homem à posse de uma disciplina filosófica e moral segura. O resultado é a imensa perplexidade contemporânea, a pululação de perguntas sem resposta, que ouvimos repontarem de toda parte.

Neste mundo em que o ritmo da vida se precipita, em que os valores se baralham, em que as revoltas se sucedem – bem é que peçamos às grandes sombras do passado, já libertas da inquietação, que o corpo comunica, a lição de sua experiência já serena. E docilmente responde cada uma à nossa febril interrogação.

“Sede moços de corpo e de espírito, segreda-nos aquela sombra que mais perto de nós se encontra. Fugi dessa velhice precoce que é o peso das raças indignas de viver. Fugi da ignorância que deprime e anula todas as ascensões da alma. Amai a ciência, mas, notai bem que é no coração que está o segredo de cada homem e a perfeição de nossa espécie. Foi no trato diurno e noturno com o sofrimento humano, que aprendi a colocar a bondade acima do conhecimento. Muito sofrereis com isso, mas olhai para o fundo de vossas almas e vede se no seu espelho interior não se reflete uma Imagem que ultrapassa de longe todas as figuras que nela se reviram, e essa Imagem está coberta de cicatrizes e de sangue, mas aureolada pelo clarão da divindade.”

“Olhai para o vosso povo, segreda-nos a outra sombra que a segue, e aprendei em sua alma simples e boa o segredo da vossa vitória. Não vos impressione o brilho dos progressos prematuros. Não vos seduza a sereia das idéias exóticas e cruéis. Não vos deixeis envenenar pelo filtro da vida fácil, efeminada e luxuosa. É mais fecunda para a pátria a virtude de um coração de analfabeto, do que o pedantismo nivelador da semicultura enfatuada. Que o progresso não vos arraste à negação do vosso caráter. Que a vossa arte e as vossas letras espelhem a vossa paisagem e a vossa alma. Que a força e o brilho dos audaciosos e aventureiros nunca vos façam renegar o tesouro de virtudes simples, sadias e, insubstituíveis que se guardam no coração do nosso povo, inculto talvez, mas generoso, doente talvez, mas polido e bom como nenhum. Amai os humildes e esquecidos tecedores da unidade da vossa pátria.”

E o murmúrio se esvai com a sombra que se afasta. Mas fala ainda de mais longe a terceira.
“Fugi da ilusão de começar tudo de novo. Estudai as vossas origens. Não vos envergonheis da sua modéstia e do seu plebeísmo. Procurai conhecer o que nelas se esconde de superior e de nobre. Não se improvisa uma civilização nem se constrói sobre modelos estranhos ou sobre a falsificação das suas origens selvagens.

O que a torna grande e duradoura é a fidelidade aos seus verdadeiros antepassados, e ao ritmo da sua própria natureza. Voltai-vos para dentro de vós mesmos. Evitai procurar muito à distância o segredo da virtude, do prestígio e da felicidade, que está todo dentro de vós. Sede fiéis à vossa Fé e ao vosso Império. E levantai sempre os corações ao alto.”

Calam-se as três vozes. Ouço que segredam coisas entre si. Tão pouco e tão vagamente as entreouvi, que mal pude registrar suas palavras. Foi isso realmente o que disseram? É de tanto ou de tão pouco que precisa o homem brasileiro? Não sei. Seja como for guardemos essa lição de fidelidade humana. Servirá ela para reagirmos contra a tentação do inumano, que respiramos em cada canto do mundo moderno. Vive este entre a libertação dos instintos e o orgulho da inteligência, entre as solicitações do animal e o apelo do anjo, cada qual mais cioso da exclusividade dos seus direitos sobre nós.

Fiquemos na justa medida do Homem, que é ainda a maneira mais segura de ultrapassá-lo. Foi o que, vivendo e criando, nos ensinaram esses três padrões de nossa Raça, que Deus permita não tenham, só por cortesia, vindo receber-me nesta Casa, mas continuem a conduzir por toda a vida o obscuro sucessor de tal herança.