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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Alceu Amoroso Lima (pseud. Tristão de Ataíde)

Senhor Afonso Pena Júnior,

Fizeram-se as Academias, não para promover e incentivar as Letras, mas para conservá-las. O grande engano de Graça Aranha, naquela famosa sessão de 1924 em que tive a satisfação de ser um dos jovens que em triunfo o carregaram aos ombros, foi atribuir à Academia uma função que por natureza não lhe compete. Não me estou retratando do apoio que então lhe dei, pois isso mesmo o disse em artigo publicado, durante aqueles dias febris de há um quarto de século, em que se renovava, uma vez mais, a Literatura Brasileira e começava uma fase nova, já hoje, em grande parte, incorporada aos anais de sua evolução secular.

Não é no âmbito das Academias que se renovam e que se inovam as Letras de um povo. É nos campos e é nas ruas, é nos cafés e nos salões, é nos comícios e nos morros, é nas fábricas e nas bibliotecas, é nos cárceres e nos sótãos, nos templos e nos parlamentos, é longe dos ambientes condicionados e comedidos que estua o sangue jovem e sopra o espírito de liberdade criadora, sem os quais se arriscam as literaturas a marcar passo e a repetir indefinidamente modelos estranhos ou fórmulas obsoletas. Ai dos povos ou das épocas que não sabem compreender o valor da liberdade na obra de renovação da Literatura. Estamos, porventura, vivendo uma era dessas. Estamos, desgraçadamente, vivendo uma hora dura para aqueles que não compreendem a Literatura a serviço da Política ou da Economia, a serviço de um ideal que não seja o da Verdade e o da Beleza, sempre inseparáveis quando se toca os domínios supremos da arte verdadeira. Quem não vê, comparando os dois séculos em que nossas gerações já viveram, que o século XIX foi o século do liberalismo e o nosso o do autoritarismo. Esse espírito totalitário não se apodera apenas de atividades ligadas à vida pragmática das sociedades. Apodera-se do seu espírito. Ataca a sua cultura. Insinua-se no âmbito mais recôndito de suas atividades estéticas e sob pretexto de um novo conceito de liberdade, subordinado ao bem do todo social, o que pretende é escravizar as letras ao Estado, aos Dips de toda denominação e categorias políticas contraditórias cujo modelo os Estados Totalitários, direitistas ou esquerdistas, vêm procurando impor aos próprios Estados democráticos ou pseudodemocráticos. Esse politicismo literário – que hoje condena um Picasso ou um Eisenstein por não entrarem suficientemente na linha justa da beleza oficial, pois os Estados-Fortes de século XX não se contentam com a socialização das atividades práticas e aspiram também ao planejamento das inspirações estéticas, – é do mesmo tipo dos que outrora pretenderam impor às atividades estéticas as fórmulas de um Código de Regras mortas ou o espírito acadêmico.

Não. Outra, muito outra é a função das Academias. Não sou e nunca fui dos que, em nome da desordem criadora, pretendessem classificá-las como ajuntamentos inúteis ou mesmo contraproducentes, que se colocassem à margem das Literaturas ou no meio do seu curso, como uma barragem à sua livre expansão. Serão nocivas, se quisermos entregar-lhes a função de orientadoras e guias da literatura nacional. Mas, ao contrário, poderão ser altamente benéficas, se nelas soubermos reconhecer suas verdadeiras e indispensáveis funções.

Se estamos vivendo uma época em que o autoritarismo ameaça converter o mundo numa intolerável termiteira, estamos outrossim ameaçados de rupturas violentas e irreparáveis com o passado, em nome de uma renovação de formas e de idéias, que arrastará consigo os mais preciosos tesouros de que temos a guarda.

É precisamente porque temos sob nossa guarda tesouros inestimáveis, ameaçados simultaneamente pelo espírito de inovação a todo transe e pelo mecanismo do planejamento autoritário em nome de um falso bem comum que se justificam as Academias, e são vãs todas as tentativas de acabar com elas, em nome do progresso e da liberdade criadora.

Não temos de optar entre uma e outra coisa. Temos de escolher uma coisa e outra. A Literatura nova e criadora se faz fora do âmbito das Academias, ao ar livre, quebrando a cabeça, fazendo experiências mais ou menos alucinadas, captando as mensagens do gênio, onde elas se encontrem. É um Rimbaud, é um Álvares de Azevedo, é um Mário de Andrade que quebram todas os moldes e lançam o facho da beleza, para outros campos, mais ricos, mais novos, mais duradouros. Os bem comportadinhos, lá fora, arriscam-se a ficar, ou antes, é certo que ficarão à margem, no rol dos ecos sem vida, das cópias sem valor. O que não quer dizer, também, que a maioria dos vanguardeiros também se não perca na mesma linha indecisa, em que a posteridade mais tarde confundirá incendiários e bombeiros...

Não temos de optar. Se esperássemos pelas Academias para renovar as letras nacionais, estávamos bem arranjados. Se, por outro lado, em nome da liberdade criadora fechássemos as Academias, cometeríamos um atentado não  menos fatal – o de ferir a vida cultural de um povo naquilo que, de certo modo, é o cerne de sua vitalidade – a tradição.

A vida de um homem, como a vida de um povo, se desenvolve ao longo de uma linha que une a tradição à liberdade. Sem liberdade não há renovação. Sem tradição não há vitalidade. Pois a vida dos ramos depende das raízes e não se renovam os espíritos cortando as raízes com o passado, mas, ao contrário, procurando que esse passado seja uma força de propulsão e não um freio de retenção.

Essa é precisamente a função das Academias na vida literária de um País. Seu papel não é inovar, renovar, orientar. Sua função é conservar, defender, preservar o passado e cultivar os tesouros de frescura e as lições de eterna juventude que possui. Não confundamos tradição com rotina. A rotina é a tradição corrompida, deturpada, morta. Ao passo que a tradição é a conservação do passado vivo. É a luta contra a morte do passado. É a preservação das coisas idas e vividas com o mesmo calor de vida com que foram atualmente concebidas. Tradição é entrega. É entrega a uma geração dos frutos da geração passada. É a marca tornada indelével da passagem de um sinal de vida. É a duração, para sempre, do que foi um momento de felicidade criadora no contato com o mistério da eternidade através do tempo. A tradição torna perene o efêmero, torna profundo o superficial, torna essencial o supérfluo. A tradição relaciona os valores que a vida, indistintamente, vai correndo em seu curso indiferente. Separa o que merece durar. Deixa cair o que merece perecer. Tenta por vezes ressuscitar o inviável. Mas essas tentativas são vãs. O tempo não permite, por muito tempo, reivindicações ilegítimas. A moda passa. A tradição autêntica vai preservando apenas o essencial. Vai fazendo a triagem. Vai peneirando o cascalho. Nos filtros das velhas catas mineiras, podemos jogar, no meio do cascalho bruto, um diamante finíssimo. Trabalham as peneiras. Passa a água corrente. Cai o cascalho cinzento e veremos reaparecer em breve o diamante solitário, no meio da pedraria rude, com a sua pinta de íris inconfundível. Assim a tradição, que peneira os valores com a água do tempo e o movimento das gerações sucessivas e faz pintar, no meio do cascalho, de vez em quando, a pedra luminosa que desafia os séculos e os séculos.

Sois, Sr. Afonso Pena Júnior, como um desses garimpeiros pacientes das margens do vosso velho Guaicuí. Eu mesmo, no meu encanto por vossas montanhas natais, vi de perto, muitas vezes, horas esquecidas, o trabalho sem repouso dos vossos humildes e incansáveis faiscadores. Há três séculos que o transmitem, de geração em geração. Há três séculos que bateiam as margens, já mil vezes peneiradas, de vossos rios e córregos, e até hoje parece que a Providência timbra em nunca satisfazê-los de todo nem nunca de todo dissuadi-las, de modo a conservá-las sempre unidos, de sol a sol, a essa gleba sagrada de onde têm saído para o mundo o ouro, os diamantes e as gemas mais luminosas e ficado, para a alma mineira, as mais preciosas gemas do mundo – a temperança, a paciência, a discrição, a sobriedade, a penetração, a argúcia, a espiritualidade, a naturalidade, a ironia mansa, em suma, a Sabedoria. O diálogo com as bateias é uma escola de aperfeiçoamento.

Sois, Sr. Afonso Pena Júnior, uma flor da sabedoria mineira, uma súmula dessas velhas virtudes que se ocultam no coração dessas montanhas caladas, às quais nos leva, de tempos em tempos, uma necessidade invencível de retemperar o ânimo, pois a Montanha é a guarda mais vigilante das virtudes humildes e simples do povo, que temos o dever de defender contra a desumanização crescente dos tempos modernos.

Vi, de perto, muitas vezes, o ímprobo trabalho desses mineradores admiráveis, que resistem às intempéries e à monotonia, certos de que, no fundo, o ouro nunca falha. Ia eu, certa vez, de São João del Rei a Tiradentes, o velho São João del Rei, quando encontrei um menino, com a bateia e o almocafre. A terra era cinzenta e dura. Nada augurava possível o esforço fecundo das catas. Indaguei do que fazia e de que vivia. E perante o meu muxoxo um tanto cético, ofereceu-se ali mesmo para dar uma prova do seu trabalho diário. Tirou com o almocafre um pouco daquela lama endurecida e cinzenta. Baixou junto à margem vizinha do Rio das Mortes, pois andávamos pelas imediações do Capão da Traição. Dissolveu na água a massa acinzentada. Lavou, lavou e dentro em pouco, no fundo afunilado da rústica bateia de pau, vi a palheta de ouro finíssimo ficar luzindo à luz do sol que apenas se mostrava acima da outra margem, ramalhuda.

Essa imagem, do jovem garimpeiro das margens do Rio das Mortes, Sr. Afonso Pena Júnior, bem se adapta à figura daquele, em outro plano sem dúvida, mas que por vinte anos tomou, na sua bateia intelectual, uma velha argamassa cinzenta e endurecida, já trabalhada por séculos e gerações de batedores das duas bandas do Atlântico, e com uma fé intensa e uma confiança inabalável em seu esforço e em sua argúcia, viu afinal brilhar à luz do sol a mais rutilante das pepitas, a pepita da verdade restaurada e da justiça restituída, depois de séculos de dúvidas e sugestões mais ou menos verídicas ou fantasistas.

Antes de chegarmos, porém, ao grande triunfo, que vos abriu de uma assentada e de par em par as portas deste Cenáculo, vamos volver alguns anos atrás e encontrar um meninote esperto e buliçoso que brincava solto pelas ruas de uma velha e tradicional cidade mineira, Santa Bárbara. Estávamos ainda no Império, no fim do Império já se vê, mas havia ainda escravos, havia ainda lampiões de querosene, e silêncio apenas cortado pelos grilos nas ruas esburacadas do velho reduto bandeirante. Fora ali fixar-se, muitos anos antes, o filho de um imigrante português, que se preparava, na Política e na Magistratura local, para subir um dia à mais alta posição política do seu país e cair fulminado pela mais dolorosa tragédia moral dos fastos de nossa história presidencial. Nesse lugarejo perdido das vossas montanhas mineiras, vínheis ao mundo numa manhã em que os anjos cantam pelos espaços – Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

Nascestes no mais belo dia do ano. No meio de uma família em que se cultivavam há muito as mais puras virtudes cristãs. A primeira grande emoção de vossa vida, segundo me relatastes, se prende à concessão da carta de alforria à velha escrava Celina, que ajudou a criar a vós e a vossos irmãos. O movimento abolicionista, que junto ao republicano, foi a grande conquista da geração que vos precedeu, ainda vos alcançou menino. Quando, em 1930, participastes do movimento revolucionário em que se empenharam a fundo os vossos co-estaduanos, na esperança de democratizar a República, e assististes no Rio às delirantes manifestações de júbilo do 24 de outubro, o que vossa longa e amarga experiência das coisas públicas trouxe à memória foi o remoto dia 13 de maio de 1888, em que com nove anos de idade assististes e participastes também da explosão de alegria do povo de Santa Bárbara. Ali, como em toda parte, foi um delírio. O Povo soltou-se pelas ruas a gritar: “viva a liberdade”, a clamar “tão bom como tão bom”. Os sinos repicaram. As tascas se encheram. O trabalho cessou em toda parte... O dia passou-se em danças e festanças. E, à noite, vossos olhos infantis, que se haviam enchido com as emoções delirantes das alegrias daquele dia de ouro, viram voltar tristemente os magotes dos filhos da raça injustiçada e tarde redimida, que regressavam humildemente às senzalas para comer e dormir como homens livres, mas sem teto nem pão, nos próprios antros onde haviam até então vivido como escravos. Aprendestes desde então essa verdade social que até hoje está custando ao mundo rios e rios de sangue – que a liberdade política sem a liberdade econômica é uma trágica ilusão amargamente paga pelos homens, em carne viva. Toda a vossa vida de homem público, mais tarde, iria precisamente enfrentar as crises tremendas que se desenvolveriam em virtude dessa transição econômico-política por que vem a humanidade passando há meio século. O século XIX conquistou para as massas a liberdade política. O século XX vai conquistar ou não, para elas, a liberdade econômica. Esse é, sem dúvida, o eixo do grande problema que crucia a era de transição em que vivemos e durante a qual iria o Brasil, em mais de uma oportunidade, apelar para os vossos serviços. Cedo começastes e com espantosa precocidade a vos preparar para eles. Saístes das mãos de vossa santa mãe para a Escola Pública, onde o Conselheiro Afonso Pena fez questão que o filho, em que tantas e tão bem fundadas esperanças já depositava, fosse instruído lado a lado com os filhos das mais modestas famílias de Santa Bárbara. Não sei se vosso primeiro amor, mas pelo menos vosso primeiro deslumbramento pela beleza feminina, foi na Escola Primária que o tivestes, na pessoa dessa formosa Dona Mariquinhas, que junto ao “cego vidente” João Perpétuo, vos ministrou os rudimentos do que iria ser mais tarde uma das mais perfeitas culturas humanistas de nossa Pátria. Os olhos de Dona Mariquinhas, honra seja feita, não tiveram força bastante para desviar a atenção do melhor e mais precocemente apaixonado dos seus discípulos, – das sábias lições do modesto professor, que honrava o Instituto Benjamim Constant, de onde viera.

Foi, aliás, o vigário de vossa cidade natal, o padre Lucindo José de Sousa Coutinho, que iria conduzir os vossos primeiros passos, numa senda, em que mais tarde iríeis revelar a vossa inata vocação para os problemas literários e lingüísticos. Foi ele que pôs em vossas mãos a artinha, essa artinha que, nas crianças mineiras desse tempo, era irmã gêmea da cartilha. Pertenceis, porventura, à última geração em que o estudo das humanidades clássicas, pelo menos o do latim, formava a base de uma instrução completa. Houve, depois disso, um largo hiato, em que esses estudos foram quase totalmente abandonados e de que a minha própria geração foi uma vítima. Há poucos anos foi bruscamente restabelecido o estudo do latim, mas tão bruscamente que a falta de professores devidamente habilitados iria provocar, como era inevitável, nova crise, que está em vésperas de mais uma vez, desencadear-se. E mais uma vez, ao que se diz, vão as humanidades clássicas ser abandonadas, em proveito de um novo surto de pragmatismo educativo. Não sou dos que fazem do latim um sine qua non de toda possibilidade de formação cultural. Em face de dificuldades semelhantes às nossas, embora, em circunstâncias e por motivos diametralmente opostos, já propôs o meu mestre Jacques Maritain a substituição do estudo do latim, no curso secundário, pelo da lingüística geral, reservando-se o estudo do latim, em profundidade, para aqueles que se dedicassem, mais tarde, ao estudo das letras.

Seja como for, o fato é que sois filho de uma geração que ainda faz garbo de ter estudado o latim, por muitos anos, e de ter, com isso, adquirido uma intimidade com a cultura clássica e com os mecanismos secretos da nossa língua, que faltam evidentemente às gerações posteriores, que abandonaram o latim e o substituíram... por coisa alguma ou antes por uma cultura variadíssima e superficial, em que se estudam todas as coisas deste mundo e do outro, mas nada em profundidade e com rigor. Quando, no dizer desse outro filho da mais clássica cultura humana, o velho e sábio Hilário Belloc, as bases de uma cultura humana, bem travada, são fornecidas pelo ensino, a tempo e hora, de duas matérias fundamentais – grego e ironia. Greek and irony...

O grego, símbolo da Cultura. A ironia, símbolo da sabedoria. A essência da mais sábia cultura humana não é aprender muitas coisas, mas sabê-las bem. Non multa, sed multum.

Podemos dizer, sem paradoxo, que a Cultura é o que sabemos esquecer daquilo que aprendemos. Ao passo que a ilustração é o que guardamos, de tudo o que esquecemos. Bem sei que uma não prejudica a outra. Antes se completam. Mas das duas a mais perfeita é a Cultura, pois não é pela memória que os homens mais ilustres se distinguem e sim pela agudeza de sua visão do mundo, e pela sabedoria de suas intuições e expressões. O humanismo, de que sois um dos mais ilustres representantes entre nós, não é o que confunde o saber com a erudição, mas precisamente o que sabe ocultar a erudição por um saber repassado de modéstia e inteligência. Esse o humanismo de que sois realmente uma expressão das mais felizes, neste deserto de poucos oásis, onde se ensaia ainda a nossa cultura, a braços com tantos obstáculos e tão sucessivas corruptelas, como o hiato de que há pouco vos falei e as perplexidades de hoje. Nem sabemos ao certo como sair do atoleiro.

Viestes, pois, de uma geração mineira que soube conservar quase intacto o tesouro de uma tradição humanista que era em Minas proverbial, para certa classe de jovens. Quando vossos pais, em 1892, resolveram mandar-vos para o Caraça, não era por serdes um garoto insubordinado – a despeito das varadas de marmelo de que as vossas canelas até hoje se não deslembraram – mas por já terdes revelado, desde menino, a vocação que um dia iria inspirar-vos uma obra que hoje nos vale a vossa entrada nesta Casa.

Antes disso, porém, já se havia vossa família transferido para a velha capital de Minas Gerais, em cujo Colégio Mineiro iríeis fazer uma entrada de leão. Cedo a palavra ao vosso antigo condiscípulo Dilermando Cruz, que assim nos conta a vossa estréia nas velhas salas do ginásio de Antônio Dias:

Lembro-me ainda, recordou Dilermando Cruz no discurso com que vos recebeu, em 1925, na Academia Mineira de Letras de que sois membro, da primeira aula a que comparecestes no colégio: “era a de francês, regida por um professor Medeiros, emérito decorador dos versos do teatro clássico. Convém dizer, de passagem, que tivestes uma entrada triunfal. Éreis um tipo baixote, de calças curtas, compleição sadia, olhos vivos e inteligentes, desembaraçado nas maneiras. O professor mandou logo que abrísseis o Teatro Clássico e lêsseis algumas estrofes das óperas que nele se encontram. Foi um sucesso! Todos nós que então vos havíamos olhado como um ‘bicho vulgar’, tivemos de concordar com a afirmativa do saudoso Temístocles Halfeld, que declarou categoricamente, na aula, em voz alta: “este novato sabe tanto francês, como o Jovelino Medeiros” (o professor!). E o interessante é que, quando saístes da aula, menino, entusiasmado com a nossa admiração, íeis dizendo-nos pelo corredor, sem a menor modéstia: vocês não falam francês? pois olhem eu falo correntemente. E começastes a dizer frases e mais frases, com grande espanto de todos nós, que mal traduzíamos a lição, assim mesmo agarrados ao Roquette... Daí por diante alimentáveis a nossa malandrice e nos poupáveis a angústia de folhear o Roquette, nos dando os significados que sabíeis de cor. (Dilamando Cruz, Recepção do Acadêmico Afonso Pena Júnior. Rio, 1925, pág. 70.)

Eis como um matutinho de Santa Bárbara, nos fins do século passado, já podia assombrar os colegas da capital mineira, no manejo da língua de Racine. Outro tanto ia suceder, logo em seguida, com a língua de Virgílio, no Caraça.

O latim era naturalmente o ensino fundamental no velho estabelecimento, que os lazaristas portugueses e franceses ali mantinham, desde o início do século XIX, pouco depois da época remota em que o descobridor daquelas paragens, o misterioso Irmão Lourenço, que a tradição considera como um membro da família Távora que ali se refugiara fugindo às perseguições do Marquês de Pombal, perguntou a Saint-Hilaire, quando este por ali passou: “que fora feito de Napoleão depois de se entregar à mão dos ingleses?” (Saint-Hilaire – Voyages dans les Provinces de Rio de Janeiro et Minas Gerais – 1830, I, 219.)

Desde essa impressionante interpelação do velho ermitão português ao famoso sábio francês, tornou-se aquele assombroso anfiteatro mineiro – paisagem das mais patéticas e românticas que jamais me foi dado contemplar em toda a vida – cenário de um encontro entre pedagogos franceses, portugueses e mineiros que há um século formam gerações e gerações de beneficiários dos estudos clássicos. Embora poucos tenham sido os que realmente se apaixonaram, como vós, por esses estudos, quem pode avaliar o valor inestimável das sementes morais e intelectuais que esses educadores humildes e anônimos lançaram no campo ainda virgem de sucessivas gerações de jovens brasileiros?

Íeis penetrar aqueles veneráveis umbrais, Sr. Afonso Pena Júnior, com o mesmo ímpeto vencedor que distinguira a vossa estréia no Colégio Mineiro de Ouro Preto.

O Padre Fraissat, professor de latim, era dos que consideravam a língua de Cícero com um olho no aluno e outro... na Santa Luzia, naquela menina dos sete olhos, companheira inseparável dos mestres rabugentos e das palmas calejadas dos vadios...

Cedo-vos, porém, a palavra:

Entrei para o Caraça quatro meses antes de findo o ano letivo, portanto com um handicap de 5 meses. Como tivera apenas umas seis aulas de latim (até a 3.a declinação) com o Padre Lucindo, vigário de Santa Bárbara, puseram-me no 1.o ano. Logo na 1.a aula chama o Padre Fraissat um aluno repetente para traduzir a primeira página do Epitome Historiae Sacrae, que, começa: Deus fecit coelum et terram intra sex dies. O argüido, em cuja cabeça, como diria Camilo, não havia luminosidades extraordinárias – embatucou. O Padre, sem esperar muito, gritou “adiante” e apontou para mim. Foi aí que eu disse “uai” e traduzi o texto dificílimo. “Está vendo, Sr. Fulano”, disse e repetiu o Padre, “o senhor é repetente e o novato até disse uai.” Daí a poucas horas chegava ao salão dos meninos a notícia de que eu estava transferido para o segundo ano de latim. Inscrevia-se um perneta nas corridas a pé das Olimpíadas... Só Deus sabe o que isto me custou, não só então, mas em todo o curso da vida. (Carta ao A. 18-VII-48.)

Apesar disso ou por isso mesmo, éreis, em pouco, uma das grandes figuras do Caraça, estudante premiado, orador oficial do grêmio literário, fundado pela inesquecível e humilde figura do regente de estudos, Sílvio Domingos Anesi, a que íeis dedicar, muito mais tarde, uma nota carinhosa e de testemunho em vossas polêmicas literárias, do grande livro que vos consagrou.

Passastes, nesse ambiente austero e estudioso, quatro anos de vossa adolescência. Ali se forrou ela de sólidos estudos preparatórios, que iriam ser mais tarde a base de vossa grande cultura. Sois um testemunho vivo e um dos últimos abencerragens de uma forma de cultura que entre nós se desenvolveu no século passado, embora apenas limitada a uma ínfima camada superior da sociedade e de que hoje se conserva apenas recordação. É certo que, com a fundação das Faculdades de Filosofia, temos o caminho aberto para uma nova fase de cultura, de que, aliás, como em pouco veremos, iríeis vir a ser igualmente um dos mais lídimos representantes, operando um traço de união entre duas encostas de que o vale foi, porventura, a nossa própria geração.

Estudastes a fundo os vossos preparatórios, ao contrário da maioria das gerações seguintes. Não só em Letras, mas ainda em Ciências. Pois quando, em 1895, saístes do Caraça e voltastes para Ouro Preto, ainda vos matriculastes, embora sem intenção de seguir o curso de Engenharia, no curso anexo da Escola de Minas, atraído pela vossa inclinação pelas ciências naturais, que até hoje vos fez devoto de leituras de Física ou de História Natural, aparentemente tão afastadas dos vossos estudos de jurista e crítico literário.

Vossa mocidade já se passou em Belo Horizonte, para onde a energia construtiva e a visão progressista do vosso benemérito progenitor transferia, depois de uma luta titânica com os que confundem tradição com imobilidade e rotina, a capital de Minas Gerais.

Fostes a primeira geração dos que se instalaram em Belo Horizonte, como bandeirantes intelectuais dessa marcha para o sertão. Sou dos velhos devotos das vossas duas capitais, a velha e a nova. Três cidades, até hoje, marcaram profundamente em minha memória, como expressões de um passado concentrado no âmbito de um casario tocante de ancianidade e de caráter – Oxford, Siena e Ouro Preto. Nunca senti, como em face dessas três relíquias de outras eras, como é possível ao tempo deixar de correr e manter-se um plano de preservação misteriosa, que nos torna, sem esforço, contemporâneos de séculos já vividos e ultrapassados. Oxford, Siena e Ouro Preto, sois, para mim, as provas vivas de que o passado não é o que passa e sim aquilo que sabemos conservar do que passou.

Ai de nós, porém, se não deixarmos seduzir exageradamente pelo encanto dessas sereias do passado. A tentação da ataraxia é tão perigosa quanto a do dinamismo integral. No debate que então se travou em torno da mudança da capital mineira, os dois espíritos se encontraram. E a vitória coube afinal àqueles que, fiéis ao passado dessas montanhas sagradas, onde mora o espírito de equilíbrio entre todas as tendências da multiplicidade brasileira – souberam compreender que o progresso não é inimigo da fidelidade às coisas antigas e que o contrapeso indispensável aos exageros da tradição é a voz irresistível da esperança.

Fostes dos primeiros a saborear o encanto de Belo Horizonte, esse encanto sutil que sinto, também profundamente marcado no âmago da minha alma. Realmente foi ali, no velho Curral del Rey, no ano de 1802, quando em França Chateaubriand publicava O Gênio do Cristianismo, que nascia uma filha do Capitão Roque, Antônio Cordeiro, capitão de milícias e cujo sangue, ao fim de cinco gerações e já muito deslavado, corre hoje nas veias de quem vos recebe no limiar desta Companhia. Não é apenas, porém, esse laço histórico que me torna um devoto de vossa nova capital, em cujas ruas tranqüilas se respira um ar tão suave, tão puro, tão penetrado de todo o mistério da alma mineira, que não me furto ao prazer de aqui reproduzir as impressões líricas inspiradas a Mário de Andrade, quando, em 1919, antes de começar sua carreira poética sensacional, foi a Mariana só para ver Alphonsus de Guimaraens, quando todos se esqueciam do grande poeta simbolista, que se extinguia solitário no seu recanto arcádico. Eis como o autor de Paulicéia Desvairada cantou, em 1924, Belo Horizonte, a cidade dos poetas, dos estudantes e dos contadores de histórias. Lamento que a extensão do poema só me permita citar alguns trechos esparsos. Mas todos o temos, íntegro, no coração senão na memória, pois é dos melhores retratos que já se traçaram, não só da capital, que não é apenas “uma tolice como as outras”, mas de toda essa velha e nova Minas Gerais do nosso amor.
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Alegria da noite de Belo Horizonte!
Há uma ausência de males
Na jovialidade infantil do friozinho.
Silêncio brincalhão salta das árvores,
Entra nas casas desce as ruas paradas
E se engrossa agressivo na Praça do Mercado.
Vento florido roda pelos trilhos.
Vem de longe, das grotas pré-históricas...
Descendo as montanhas
Fugiu dos despenhadeiros assombrados do Rola-Moça...

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Eu queria contar todas as histórias de Minas
Aos brasileiros do Brasil...

Filhos do Luso e da melancolia,
Vem, gente de Alagoas e de Mato Grosso,
De norte e sul homens fluviais do Amazonas e do rio Paraná...
E os fluminenses salinos
E os guascas e os paraenses e os pernambucanos
E os vaqueiros de couro das caatingas
E os goianos governados por meu avô...
Teutos de Santa Catarina,
Retirantes de língua seca,
Maranhenses paraibanos e do Rio Grande do Norte e do Espírito Santo
E do Acre, irmão caçula,
Toda a minha raça morena!
Vem, gente! vem ver o noturno de Belo Horizonte!
Sejam comedores de pimenta
Ou de carne requentada no dorso dos pigarços petiços,
Vem, minha gente!
Bebedores de guaraná e de açaí,
Chupadores de chimarrão,
Pinguços cantantes, cafezistas ricaços,
Mamíferos amamentados pelos cocos de Pindorama.
Vem, minha gente, que tem festas do Tejuco pelo céu!
Bárbara Heliodora desgrenhada louca
Dizendo versos desde a rua Pará...
Quem conhece as ingratidões de Marília?
Juro que foi Nosso Senhor Jesus Cristo Ele mesmo
Que plantou a sua cruz no adro das capelas da serra!

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Nós somos na Terra o grande milagre do amor!
E embora tão diversa a nossa vida
Dançamos juntos no carnaval das gentes,
Bloco pachola do “Custa mas vai!”

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Os seres e as coisas se aplainam no sono.
Três horas.
A cidade oblíqua
Depois de dançar os trabalhos do dia
Faz muito que dormiu.

Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras
De longe em longe, gritam solitários brilhos falsos
Perfurando o sombral das figueiras:
Berenguendéns berloques ouropéis de Oropa consagrada
Que a goianá trocou pelas pepitas de ouro fino.
Dorme Belo Horizonte.
Seu corpo respira de leve o aclive vagarento das ladeiras...
Não se escuta sequer o ruído das estrelas caminhando...
Mas os poros abertos da cidade
Aspiram com sensualidade com delicia
O ar da terra elevada.
Ar arejado batido na pedra dos morros,
Varado através da água trançada das cachoeiras,
As que brota nas fontes com as águas
Por toda parte de Minas Gerais.

Esse ar lavado e puro das Gerais é que vindes trazer até aqui, Sr. Afonso Pena Júnior. Fostes um desbravador desses horizontes que o poeta cantou em vozes tão novas e comovidas.

Em 1898, com um exíguo grupo de companheiros, éreis os primeiros a ingressar na Faculdade de Direito, que vosso pai criara, com alguns devotados juristas mineiros, na febre de criar a cidade nova nas Minas renovadas pelo progresso um pouco pachola.

Era então a época em que a simbolismo, – como hoje o modernismo, o pós-modernismo ou o neomodernismo, o supra-realismo ou existencialismo – enchia de fervor a mocidade que jurava por Verlaine, Rimbaud, Cruz e Sousa ou Alphonsus de Guimaraens, o vosso então esquecido e hoje glorioso coestaduano.

Minas foi, como se sabe, um dos redutos do Simbolismo. Embora a literatura oficial daquela época, no Rio, não tomasse em consideração o grande poeta que, em Conceição do Serro e depois em Mariana, retomava para as montanhas o centro há muito abandonado que Gonzaga e seus companheiros haviam empunhado no século anterior, era lá que se fazia poesia de verdade e não nos cenáculos oficiais. Hoje a posteridade o reconhece, quando coloca Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens como os maiores poetas brasileiros daquele momento. Naquela hora, porém, as que sustentavam esses revolucionários eram tidos por extravagantes, cabotinos e desordeiros. Não fugistes, felizmente, Sr. Afonso Pena Júnior, a esses qualificativos. Fostes dos primeiros que ousaram levantar em Minas a bandeira da poética nova de então. Já a contastes em discurso e o tópico merece ser divulgado. Assim o dizíeis ao tomar posse de vossa cátedra na Academia Mineira de Letras:

Enquanto houver mundo e for nele o homem o animal político, de que falava Aristóteles, hão de existir as duas Academias: as regulares e confessadas, como é a nossa; e as irregulares, de formação inconsciente, como a que se congrega, fora de portas, para maldizer das primeiras. Já pertenci um pouco a estas últimas. Foi isso nos dias da mocidade, quando o simbolismo, o decadentismo, o satanismo habitavam as nossas almas. Jurando por Verlaine e Cruz e Sousa, assentávamos praça entre os Jardineiros do Ideal e os Cavaleiros do Luar (eram as denominações das sociedades literárias que o nosso grupo havia fundado, como novas e não menos fugazes e hipotéticas Arcádias Ultramarinas); recitávamos a desoras, no deserto poeirento que eram então as ruas de Belo Horizonte, as “Vogais Coloridas” de Rimbaud, e, tomados do arrepio sagrado, certos de que em nós e só em nós morava a exclusiva Verdade e a solitária Beleza, movíamos guerra de marte às velhas Escolas e Academias.” (Op. cit., pág. 26.)

Não sois, porém, dos que jogam pedras nos altares onde sacrificaram em moço. E acrescentastes a essas recordações o seguinte e significativo comentário: “Arrefeceram, porém, com o tempo os ardores e intransigências do rito novo; alguns dos seus sacerdotes bandearam-se para o inimigo e abrigaram-se à sombra das detestadas Academias. Mas, de todo esse movimento ficaram alguns ritmos novos e novas emoções; brilharam com ele facetas inéditas de Verdade, encontraram-se filões inexplorados da Beleza.”

Era esse o tempo em que Belo Horizonte era ainda o deserto empoeirado, de que falastes. Era o tempo em que Joaquim Nabuco, chegando à Praça da Liberdade com João Pinheiro, presidente do Estado, que o fora receber como hóspede oficial, perguntava-lhe: “Onde começa a cidade?” e João Pinheiro lhe respondia surpreso: “Pois se estamos no centro dela.” Era no tempo indeciso em que não se sabia ao certo se as cassandras teriam razão contra os desbravadores do deserto.

Fostes, com os vossos poucos companheiros, os plantadores da inteligência e da Cultura, da Poesia e dos ritmos novos, da beleza aventureira e do estudo grave no solo ainda virgem da nova capital do Estado. Hoje, Belo Horizonte é um centro de vida intelectual que a modéstia mineira teima em não querer reconhecer, mas que tem dado à Poesia, ao Romance, à crítica mais moderna do Brasil algumas de suas mais eminentes figuras. Já o disse, em livro expressamente escrito para sacudir o encaramujamento mineiro, que as Letras das alterosas estão hoje renovando no século XX, e com muito mais brilho e valores que outrora, a velha Escola Mineira do século XVIII. E será, para vós, glória imperecível do vosso nome, teres sido dos primeiros a fazer justiça ao vosso injustiçado Alphonsus e a fazer ressoar as imensas ruas desertas de Belo Horizonte com as estrofes revolucionárias de Rimbaud ou as elegias, tão afinadas ao encanto secreto da alma mineira, do poeta de “Sagesse”.

Sabedoria, eis o segredo da alma mineira; eis o segredo do vosso espírito.

Não acompanharei, de perto, pois longe nos levaria, a vossa trajetória política, a vossa formação de jurista, as vossas viagens pelo estrangeiro, a vossa vitoriosa carreira de advogado, que tão perto vos levaram de realizar a aventura inédita nos anais das Repúblicas modernas de todos os contingentes, de vermos um filho ocupando a mesma curul suprema do Pai. Não o permitiram as vicissitudes e os imprevistos de nossa política contemporânea. Mas talvez lembre um “cafezinho” que tomamos juntos, na Rua 1.o de Março, numa tarde que iria ser uma véspera histórica e fatídica – a de 9 de novembro de 1937. Os boatos que enchiam a cidade eram menos de um golpe de teatro ditatorial, que da indicação de um tertius à sucessão presidencial. E esse tertius tomava modestamente café comigo, a dois passos do Banco do Brasil e não desmentiu de todo a velada insinuação do amigo...

Para nosso bem, não quiseram as boas fadas que presidiram ao vosso nascimento, naquele lindo dia de Natal em Santa Bárbara, que tivésseis o crepúsculo doloroso do vosso grande progenitor.

Estáveis reservado para outra magistratura. Para uma magistratura com que então porventura não sonháveis, mas a que já vos preparavam as vossas inclinações e os vossos estudos – a magistratura das letras. Dizeis, com razão, no pórtico do vosso grande livro, que a atitude que tomastes, em face da velha controvérsia em torno da Arte de Furtar e sua misteriosa autoria, não era a atitude do advogado e sim a de um juiz (Afonso Pena Júnior, A Arte de Furtar e o seu Autor. 2 vols. Liv. José Olímpio, Rio, 1946, intr. 8 et passim.)

Não há dúvida, meu ilustre e querido mestre e colega, que já vos candidatáveis então a uma Cadeira no Supremo Tribunal de Letras. Não me refiro a esta Companhia, que não é um tribunal, mesmo de Letras. Refiro-me à autoridade insuperável que conquistastes, com o vosso livro, no tribunal da crítica atributiva, em cuja especialidade não encontrais hoje quem vos supere não só no Brasil, mas em nosso idioma luso-brasileiro.

Diziam os antigos que era preciso temer os homens de um só livro. Referiam-se, porém, ao homem que lê um livro só e nele esteia a sua pretensa sapiência. Há mesmo aqueles que vão além, pois não contentes de lerem um livro só ou quase, desforram-se escrevendo numerosos sem substância alguma, como os que enchem as estantes dos alfarrabistas. Sois exatamente o oposto. Pertenceis a uma família literária totalmente diversa. Sois o homem que leu mil livros, que buscou a sabedoria, como a abelha e não como a aranha – segundo a comparação tão cara aos clássicos que freqüentais há tantos anos –, não em si próprio mas em fontes as mais variadas e diversas, para afinal construir laboriosamente um monumento, que vos trouxe de uma feita ao nosso convívio. Monumento, sim, e que merece mais que adjetivos. Exige substantivos. O que não hesito em propor para a vossa obra, singular e eminente entre as mais autorizadas sobre o tema, é o de obra-prima. Em vinte anos do mais árduo, do mais paciente, do mais indefeso esforço que já se fez aqui e em Portugal, para desvendar um mistério literário, escrevestes uma autêntica obra-prima.

Estou certo de que, se tivéssemos de mencionar os dez livros de nossa Literatura, em todos os gêneros que merecessem tal qualificativo, o vosso não poderia faltar. Destes, por meio dele, assim a vossos contemporâneos como à posteridade, não só para a solução de um problema tricentenário, mas para o desvendamento de outros mistérios de igual teor, um modelo de sagacidade crítica, de rigor intelectual, de faro bibliográfico, tão diverso da nossa habitual superficialidade e impaciência em concluir apressadamente, que sois, com alguns companheiros vivos, uma espécie de astro aberrante, num universo de estrelas mais fugazes que tenazes. Como bom mineiro das Gerais, aprendestes, com os garimpeiros dos vossos ribeirões a ter paciência, argúcia, e pertinácia.

Não pintastes um grande quadro impressionante. Não vos apressastes em levantar uma hipótese sedutora, nem em construir um edifício vistoso. Passastes grande parte de vossa vida no silêncio da vossa biblioteca, meditando e pesquisando, como um monge medieval, em torno de um problema único. Fostes diretamente a todas as fontes. Examinastes cuidadosamente todas as hipóteses de trabalho. Percorrestes todos os caminhos. E tudo isso com uma encantadora modéstia, a que distingue o verdadeiro sábio. No prefácio de vossa obra levantais um pouco o véu do imenso trabalho obscuro a que vos entregastes, anos e anos seguidos, sem jamais esmorecer.

A paciência é indispensável às demoradas e enfadonhas pesquisas, de resultados tantas vezes negativos, espécie de trabalho de mineração, em que se desmontam montanhas, para se apurar uma pitada de metal precioso. Não se calcula o paciente labor que tais investigações demandam; a leitura, não uma, mas muitas e muitas vezes da obra em exame; das obras de cada um dos possíveis autores; das histórias e crônicas, impressas ou manuscritas e do epistolário da época provável do livro; de tudo, enfim, que possa familiarizar o pesquisador com o cenário e os personagens da época... Sem a familiaridade com todos os autores e o íntimo conhecimento de todo o ambiente, que os influencia, não se estabelece o critério diferenciador ou a capacidade de distinguir, que é precioso instrumento das investigações de autoria. (A Arte de Furtar e o seu Autor – Op. cit., 1.o vol., pág. 8.)

São preciosos os conselhos que, nesse prefácio e em numerosas passagens didáticas, a vossa sabedoria e a vossa longa experiência vos ditaram ao longo do livro à medida que o trabalho prosseguia, e os íeis pondo em prática pari passu. Vosso livro é um roteiro, ao mesmo tempo doutrinário e prático, para guiar, doravante, todos aqueles que venham a empenhar-se, como se começa a fazer hoje em nossas Letras, por caminhos semelhantes.

Realmente, creio ser possível dividir a história de nosso crítica literária em quatro fases. A que podemos chamar de Antológica, dos iniciadores do gênero por aqui. A Romântica, dos apreciadores enfáticos que se seguiram. A Naturalista, dos meados e fins do século passado, dos grandes construtores de sistemas e autores de histórias sistemáticas. A Subjetiva, do fim do século passado e primeira metade do nosso, que poderíamos ainda subdividir em dois momentos: o impressionista e o expressionista.

Não é esta a oportunidade de analisarmos essas fases sucessivas de nossa crítica literária. Desejo apenas acentuar que estou vendo repontar uma quinta fase, em vias de formação a nossos olhos, fase essa a que porventura irá caber o nome de Objetiva e a que está ligada uma turma de nomes de jovens pesquisadores, a que recentemente aludi, recebendo o novo catedrático de Literatura portuguesa na Faculdade Nacional de Filosofia. Reúne filólogos, professores de Letras e críticos, alguns dos quais foram à América do Norte, como Afrânio Coutinho, familiarizar-se com os processos de investigação literária, que dos centros universitários europeus já se transferiu para os meios norte-americanos e está chegando aos nossos. Bem sei que não devemos ter a superstição universitária. Em l907 Péguy dizia a Daniel Halévy: “N’étant pas universitaire, vous savez encore un peu de latin”. (De la situation faite au parti intellectuel”. Cahiers de la Quinzaine, IX, 1.)

Será porventura o vosso caso, Sr. Afonso Pena Júnior. Foi com o vigário de Santa Bárbara e com os lazaristas do Caraça que forjastes as armas humanísticas – de que vos queixais, pois só os fátuos estão contentes consigo mesmos – com que pudestes levar a cabo o admirável trabalho de restituir a esse espírito considerável, que foi Antônio de Sousa de Macedo, a sua Arte de Furtar. Tarefa hercúlea de que Solidônio Leite foi o iniciador intuitivo e sereis vós o consolidador...

Vosso livro é um modelo de pesquisa literária, feita em grande estilo. Por isso mesmo vos inscreve ele naturalmente entre os novos que estão iniciando uma quinta fase na história da nossa crítica literária: fase objetiva, científica, de trabalho rigoroso e impessoal, como o vosso, no qual aplicastes, ao campo das Letras, a velha paixão pelas ciências naturais, que vos fez outrora freqüentar o curso anexo da Escola de Minas de Ouro Preto.

Sois um pesquisador de palhetas espirituais e a pepita que restituístes ao seu verdadeiro dono merecia bem o trabalho de vossa longa vida de sábio e de batalhador. Não foi sem batalhas rudes que chegastes ao resultado a que chegastes. Não foi sem encontrar, diante de vós, obstáculos que a outros seriam insuperáveis e autoridades que só o vosso valor e a segurança que vos dá a certeza da verdade poderiam vencer.

Aliás, a todos os requisitos que reunis e revelais ao longo de vossa obra, juntais alguns que poderiam estar ausentes, sem prejudicar o valor científico do vosso trabalho, mas, presentes, ainda lhe aumentam o realce realmente fora do comum. Refiro-me à elegância do trato com os concorrentes discordantes, à modéstia na erudição e à precisão do estilo. Encontram-se, em notas aparentemente inúteis, sinais de uma longa leitura, apresentada assim de passagem, como que sem querer. Ora é um clássico esquecido, português ou latino. Ora um moderno cuja obra se revela familiar ao vosso trato, como o Diário de André Gide, por exemplo. Sempre, porém, a citação adequada às considerações que ides fazendo.

Nunca a erudição pesa em vosso livro, como, aliás, sucedia em nossa Casa, ao mestre de tais estudos João Ribeiro, que nunca chegara a uma conclusão segura no problema da autoria da Arte de Furtar e hoje daria, porventura, as mãos à palmatória, por ter duvidado da intuição de Solidônio Leite. Ele se rejubilaria conosco por termos em nosso meio mais um mestre incontestável em tais estudos, tão raros e tão necessários entre nós, onde tanta coisa se faz, não pelos sábios autênticos como o sois, mas por aqueles velhos alvitristas a que hoje denominamos palpiteiros... Sois o oposto de um palpiteiro. Foi o vosso grande livro que vos trouxe a nós, como outro tanto sucedeu ao vosso glorioso antecessor Euclides da Cunha, sem mais demora, a este Cenáculo.

Diverso foi o caso do vosso antecessor imediato, cujo retrato intelectual acabais de traçar com mão de mestre. Afrânio Peixoto não entrou para a Academia por ter escrito um livro famoso. Mas escreveu um livro, que logo se tornaria famoso, para justificar a sua entrada para a Academia, devida como se sabe a uma pia fraude. O fato é conhecido. Não o é, porém, seu relato autêntico pelo próprio autor. Permiti que, a respeito, vos leia uns trechos dessas temidas e esperadas Memórias, que tivestes também entre as mãos e cuja divulgação, quando for feita, nos dará, como se diz, panos pras mangas... Hoje, não vou cometer indiscrição alguma, escolhendo desse precioso manancial de um dos memorialistas mais agudos do seu tempo e de uma das inteligências mais vivas que por aqui passaram, apenas aquilo que pacificamente nos revela a versão autêntica de sua entrada para a Academia.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, havia tomado o propósito de renunciar à Literatura, e cuidar apenas da Medicina, o que era indispensável ao objetivo que me trouxera do Estado, um concurso à Faculdade de Medicina. Nesse sentido procurei os meios médicos, sobretudo o Brasil Médico, revista semanal então estabelecida em cima da Casa junto do Laemmert, defronte do Garnier. Todos os dias lá nos reuníamos, grupo de colaboradores, Coronel Ismael da Rocha, Professor Rodolfo Galvão, Dr. Juliano Moreira, Dr. Fernando Figueira, além dos diretores, professor Azevedo Sodré e redator principal, Dr. Bulhões de Carvalho. Poucos dias depois do conhecimento, fui solicitado a escrever no Jornal. Preveniram-me logo que o redator-chefe, preocupado com a língua, introduzia modificações de forma e às vezes de fundo, nos artigos dos colaboradores. Como isso não me seria agradável, dirigindo-me a ele, disse-lhe que confiava no seu critério e que modificasse a seu talante tudo que lhe parecesse conveniente. Passei a ter o privilégio de não sofrer correções e até de ganhar fama de escrever bem. No Jornal do Commercio escrevi mais de um artigo, que publicados me deram a primeira e grata sensação de notoriedade.

Quando, no verão de 1920, procurei as Paineiras como refrigério para a canícula do Rio, lá encontrei o livreiro editor Francisco Alves, que era como eu o único hóspede insensível ao jogo em que se entretinham todos os outros. Na varanda do hotel, um encontro fê-lo falar comigo e ficamos companheiros de palestra. Tão constantemente falava-lhe da Europa que ele perguntou um dia por que não satisfazia logo esse desejo. Respondi-lhe que me faltavam meios. “Os meios se adquirem pelo trabalho. Por que não escreve um livro didático que lhe dê para isso?”

Como não compreendesse bem, explicou-me que o compêndio de Medicina Legal de Sousa Lima era inabordável e o Manual que lhe juntasse à doutrina algumas observações novas, por força seria bem recebido. Uma primeira edição de um livro didático poderia dar-me a cobiçada viagem. Comuniquei a conversa ao Carlos Peixoto, meu companheiro de casa e este incitou-me a escrever o livro. Iríamos juntos, eu com os meus direitos autorais, ele com os seus subsídios, à desejada Europa.

Pus-me a escrever o livro e estava ele realizado quando procurei o livreiro Alves que o resolveu imprimir na Europa, sendo-me dadas aí as provas respectivas.

Peixoto não pôde lograr o que desejou, mas eu parti em setembro diretamente para a Itália, Nápoles, onde iriam ter as provas de Paris. Ia eu empreender uma viagem ao Oriente clássico e evitei Paris, Londres, mesmo Roma, para não ser distraído.

Em Nápoles conheci Aluísio Azevedo, cônsul brasileiro... Fomos ao Aquário, ao Museu de Nápoles, entrando na intimidade do escritor... Parti para o Egito, via Sicília e Grécia. Quando finalmente me encontrei em Eloan, um dos subúrbios do Cairo, recebi carta de meu novo amigo de Nápoles, exprobando-me a hipocrisia.

– Você, consultado por mim, em quem devia votar, de dois candidatos à vaga de Euclides da Cunha, inclinou-se por um, sendo entretanto candidato.”

Respondi-lhe, se assim fosse, não seria eu hipócrita, mas apenas reconheceria o valor dos concorrentes, mas o fato era que, no momento, não sabia eu ser mesmo candidato.

Houvera fraude pia de Mário de Alencar, que imprimira cartões com o meu nome, com sua letrinha fina os redigira, pedindo votos aos acadêmicos, havendo ele, Aluísio, certamente recebido do Brasil e não do Egito o pedido de sufrágio. Agora mesmo recebera de Estocolmo, de Oliveira Lima, cartão em que me dizia, não lhe pedira o voto mas já o enviara ao Mário de Alencar, que lhe comunicara minha candidatura. Fiquei, por isso, numa grande perturbação. Tinha eu sido candidato e seria eleito sem obra literária. Não considerava isso a Rosa Mística e menos ainda um livro de Medicina Legal. Mário, que se fizera meu amigo, na intimidade do Ministro Seabra, do qual fora secretário, ouvira palavras de animação de Machado de Assis, quando fora do meu discurso na Academia Nacional de Medicina. “O abastecimento do leite no Rio de Janeiro”... Machado dissera então ao Mário: “Um livro deste rapaz, com esta finura, poderia valer-lhe a Academia”. Na amizade de Mário, isto não podia ser esquecido. Machado havia desaparecido, mas ficara a indicação. Quando, nas vésperas de minha partida para a Europa, desapareceu também Euclides da Cunha, achou Mário, mesmo sem me consultar, chegada a ocasião, e fez só ele toda a campanha eleitoral. Os meus eleitores eram tantos que ele, Mário, permitiu a Coelho Neto, Afonso Celso e Alberto de Oliveira votarem num dos meus concorrentes. Não o pôde permitir a João Ribeiro e a Veríssimo porque desfalcariam o quociente eletivo, o que valeu a estes formidáveis descomposturas de Almáquio Diniz, o meu discípulo simbolista da Bahia, agora o meu concorrente acadêmico no Rio.

No Egito, onde estava, compreendi que necessitava de justificar a escolha da Academia e fazer uma obra literária. Não quis reproduzir a aventura de Graça Aranha, que foi acadêmico apenas com o prefácio de um livro de Fausto Cardoso. Também eu tinha prefaciado um livro de Araripe Júnior, o romance Miss Kate, mas não julgava isso bastante para a honra que me conferiam.

Tinha eu, na Grécia, percorrido o caminho que vai de Cheronea a Tebas e de Tebas, pelo Parnaso, acima até Delfos. Vira no aclive a encruzilhada no flanco do Parnaso, no caminho de Tebas, onde Édipo matara o Pai. E o mito da Esfinge grega, que as esfinges egípcias e a Tebas-hutor me recordavam aí, foram sugestões bastante para um livro em que eu podia transpor a realidade de todo o dia, num símbolo para mim melhor representativa do que o do enigma proposto a Édipo pela esfinge, no caminho de Tebas. A Esfinge seria a mulher que, decifrada ou não decifrada, pelo encanto ou pela incompletação do sonho, daria a todos os homens a miséria. Pus-me então a imaginar o meu romance, que foi escrito em três meses de paz, em Eloan, perto do Cairo.

Quando tornei à Europa, encontrei-me em Paris com o livreiro Alves, a quem visitei no Hotel do Louvre, agradecendo-lhe a viagem que me proporcionara, pois antecipara oito contos de réis, de direitos autorais, da primeira edição da Medicina Legal. Disse-lhe então que ouvira, no Garnier, o gerente, a quem João Ribeiro oferecia um livro de literatura, creio que o Fabordão, responder-lhe: “A carne, o livro didático, é para o Alves. O osso da literatura é para mim.” Poderia eu ir ao Garnier com o meu romance, mas não quisera ouvir talvez a mesma resposta.

Francisco. Alves sorriu e replicou: “Se eu camo a carne do livro didático, devo também roer a osso do livro literário.” Pensou, porém, que fora demasiado severo e acrescentou: “E não será isso. O Senhor terá mil colegas que desejarão saber se o Afrânio teve ou não um desastre literário com o seu livro. E toda á edição estará colocada.” Fez uma pequena pausa e amavelmente ajuntou: “O mais interessante será que se enganarão. E o Senhor se revelará na escrita literária, como na escrita científica.”

Combinamos, pois, que vindo eu para o Brasil, melhor seria imprimir a Esfinge no Rio, mas expedidas as correções de prova. Cheguei ao Rio num dos dias da revolta de João Cândido; a cidade em pânico, pela possibilidade de bombardeio. Governo e dirigentes que mandam um almirante, José Carlos de Carvalho, parlamentar como o marinheiro que teve, de bordo das Minas Gerais, à sua mercê a cidade do Rio de Janeiro. Este homem rude deixou-se embair pelas falas oficiais. Poupou o Rio e entregou-se de boa fé ao governo. Foi mais tarde enclausurado num dos cubículos da Ilha das Cobras pelo Comandante Marques dos Reis, perecendo todas os seus dezesseis companheiros, apenas resistindo ele João Cândido, porque Deus sabe depois de que lutas pela vida conseguiu, sobre um montão de cadáveres, colar a boca na postigo, que comunicava a enxovia com o ar exterior. Nem medo, nem repulsa a João Cândido e a seus algozes, me distraíram de publicar a Esfinge, que fazia questão saísse antes da minha posse na Academia. Foi um sucesso de livraria e de sociedade. A edição escoou-se em alguns dias e Sousa Bandeira descreveu o esporte dos meus leitores, cada qual mais ávido de ler e comentar a Esfinge Araripe Júnior pôde, no discurso de recepção, encontrar matéria para comentar o seu afilhado. Fiquei correndo em amizade com o livreiro Alves, de quem consegui imprimisse graciosamente a Revista da Academia.

Dois anos depois da Esfinge, um dia me contou ele uma anedota, certamente, de formosa dama que procurava novidades literárias na livraria e que ao cabo perguntara:

O autor da Esfinge não tem mais nada? – Nada, minha senhora, repousa sobre os louros. Contenta-se em tirar novas edições do seu livro. – É isto, comentou ela. Como Graça Aranha que ficou no Canaã. Acredito que não pela razão dada pelo Senhor; na Europa um sucesso move desejo de outros e os livros se sucedem. No Brasil, os nossos autores já fazem muito se fazem um livro e se esgotam nele precocemente.

Contando-me isso, o livreiro acrescentava: “É triste esta fama de esgotamento, principalmente junto das leitoras, que é para quem se escrevem romances. Faça outra Esfinge.” Respondi-lhe imediatamente que estava feita e não lha trouxera porque, recebendo como um favor a publicação do primeiro livro, não quisera insistir sobre o segundo. Alves disse-me então um preceito de ética editorial de que usava: sua benemerência levava-o, às vezes, a editar um livro mau ou medíocre. Ficaria nele. Quando, porém, o público galardoava o autor com a saída do volume, ficava o escritor com direitos a imprimir um outro. Como era o título? Improvisei imediatamente: Maria Bonita. Pediu-me ele imediatamente os originais, que não existiam; aleguei que estava em cópia, mas três meses depois lho levei.

Eis como a facúndia baiana do vosso predecessor contrastava com o vosso conciso trabalho de mineiro, em profundidade. Afrânio Peixoto foi, como vós, um infatigável trabalhador, mas que se multiplicava em livros e tarefas de toda espécie.

Não quero diminuir ou desconhecer os grandes serviços que outros acadêmicos hajam prestado a esta Casa. Mas estou convencido de que nenhum excedeu aos que Afrânio Peixoto a ela prestou. Compreendeu ele maravilhosamente o espírito da instituição. E enquanto pôde, dedicou-se ele a um trabalho de preservação de nosso patrimônio literário, que está na linha de sua função primordial. Como acabais de o relembrar, começou Afrânio Peixoto sua vida literária totalmente entregue ao culto do Simbolismo dominante. Fez, na velha cidade do Salvador, aquilo que vós fizestes na capital novinha em folha das vossas Gerais. Enquanto recitáveis Rimbaud, ao luar da Serra do Curral, ele passeava com um lírio na mão pelas ladeiras da Bahia, ou pagava nos bondes passagens de companheiros imaginários, com grande espanto dos condutores, que o julgavam meio tocado e erguia altares às suas divindades literárias: D’Annunzio, Maeterlink e Eugênio de Castro. Isso não o impediu mais tarde, no seu culto a Camões e na sua tarefa benemérita de reeditar os nossos “clássicos esquecidos”, de se mostrar um amante fidelíssimo das mais puras tradições de nossas Letras. Tudo isso o aproximava de vós, meu caro companheiro e amigo.

Também vós começastes destruindo o Parnasianismo, nas noites perfumadas e taciturnas de Belo Horizonte e mais tarde iríeis dedicar vinte anos de vossa vida ao século XVII... Isto não vos impediu de conservar uma juventude de espírito, que é até hoje um dos apanágios mais preciosos de vossa personalidade de humanista moderno, como vo-lo testemunharam os alunos da Universidade do Distrito Federal, onde Afrânio Peixoto e nós dois nos sucedemos a seguir como um regente obscuro sucede a dois reinados luminosos. Não sois apenas um vaqueano dos velhos clássicos setecentistas. Nunca a poesia dos alfarrábios vos subiu às narinas e vos privou do faro mais sutil para as coisas mais modernas. Um dia, como de costume, reuníeis em vossa casa velhos e jovens, velhos letrados e jovens bandeirantes das Letras mais modernas. Era pouco depois de nosso último movimento político revolucionário e um deles, o jovem Guilherme de Figueiredo, filho de um soldado ilustre das lutas pela redemocratização do País, ouviu com assombro que sabíeis de cor um dos seus poemas mais recentes. Muitos anos antes, Jackson de Figueiredo, que não gostava da poesia modernista, argumentando comigo contra ela, pois nesse terreno não compartilhávamos dos mesmos gostos, dava como prova a impossibilidade de decorar um poema moderno. Pois bem, nessa tertúlia, sob vosso teto de erudito setecentista, os novos ouviram com assombro a vossa retentiva memorável – pois vossa memória vos permite até hoje recitar Horácio e Virgílio, no original – declamar um poema que me permito agora recordar convosco, não só porque se trata de um belo espécime de nossa poesia moderna, mas ainda porque permitiu uma imprevista: a recitação de um fecho de vossa lavra, que também vos peço licença para citar nesta nora em que, empertigado no vosso fardão acadêmico, talvez preferísseis que eu não tocasse nesses jogos florais de vossa perene juventude como jardineiro do ideal.

Eis o poema de Guilherme de Figueiredo, publicado a 15 de abril de 1945, quando as primeiras desilusões se anunciavam:

Poema da moça caída no mar

Mário de Andrade depressa,
A moça caiu no mar...

A MOÇA CAIU NO MAR!
Não estão ouvindo vocês?
Vamos todos, vamos todos,
Venha quem quer ajudar.
Murilo põe na vitrola
Um concerto de Mozart,
Sobral Pinto mande cartas,
Brigadeiro desça do ar,
General chame os amigos
Que a moça caiu no mar.
A moça caiu no mar
Já sente o gosto de sal
Seus cabelos estão frios
Chamai Tristão pra rezar.
Vêm os peixes fluorescentes
Comer-lhe os dedos da mão
Vem doutor Getúlio Vargas
Devorar-lhe o coração
Vêm os peixinhos do DIP
Os peixes dos Institutos
Peixões da Coordenação.
Chico Campos, Góes Monteiro
Receitam constituição
de 37 – não, não!
Se ela não morrer afogada
Morrerá dessa poção,
Marcondes Filho oferece
Uma complementação
Oh! que vontade que eu sinto
de dizer um palavrão.

Amigos por que esperais?
A moça caiu no mar
Palimércio, Palimércio
Traze a tua legião,
Ressuscita Rui Barbosa
Ressuscita Castro Alves
Vejam todos quantos são.
 João que chame Maria,
Maria chame João
Venha o homem pequenino
Que mora numa prisão
Meu pai, você nem precisa
Fazer mais revolução.
Chamem todos os meninos
Homens feras militares
Doutores, gênios, muares,
Professores, funcionários,
Sujeitos que não têm carne
Mulheres que não têm pão
pretos, brancos, mulatos.
Venham todos, venham todos
Aqueles que têm razão.
Prostitutas, engraxates
Estudantes, marinheiros,
Carpinteiros, fazendeiros,
Operários, bailarinas,
Donzelas, estivadores,
pobres e ricos, pois não,
vamos todos dar a mão
que a moça caiu no mar.
Chiquinha toca o abre-alas
Que nós queremos passar
não posso esperar mais não
A moça caiu no mar
Oh! quem a pode salvar?
Santo Onofre, São João,
companheiros, camaradas
que a moça está se afogando
a moça caiu no mar!

E eis a resposta modernista que lhe deu Afonso Pena Júnior:

Não foi possível não foi
Tirar a moça do mar
porque o homem pequenino
que morava na prisão
e a gente botou na rua
para entrar no mutirão
carregou para outra banda
os caboclas do arrastão.
E a moça afogou no mar.
Nosso Senhor lhe perdoe
que eu não lhe perdôo não
pois deixou morrer a moça
E acabou-se a geração...

Há vinte anos, era em latim que reveláveis a vossa capacidade poética. Foi por uma ocasião muito triste, da morte de um amigo querido e comum a nós três, a Afrânio Peixoto, a vós e a mim mesmo, cujo nome eu não poderia silenciar nesta hora solene de vossa vida intelectual, pois foi daqueles que mais vos admiravam e vos quiseram bem e mais de perto privaram convosco durante os meses agitados de vossa permanência no Ministério da Justiça.

Estáveis em Paris, convalescente de uma grave moléstia. Recebestes, de inopino, a terrível notícia do desastre do Joá e da morte, no mar, de Jackson de Figueiredo. As pernas vos falharam. Sentistes desabar um mundo, com a perda do vosso jovem amigo. E dias depois, indo meditar sobre a inanidade das coisas humanas, sob a cúpula medieval de Westminster e lendo as inscrições que solenizavam as velhas paredes, com a presença da morte e da glória, sempre tão intimamente ligadas na vida humana, como o amor e a morte nos mais sublimes poemas da humanidade, tivestes a feliz idéia de imortalizar também numa inscrição latina o perfil do vosso inditoso amigo. E de lá nos veio pelo correio este epitáfio de vossa autoria, que está hoje no túmulo do amigo junto à tradução da lavra de outro humanista, a quem a Academia acaba de conceder, por justiça, a mais alta de suas recompensas literárias, Leonel Franca.

Eis o epitáfio latino de vossa lavra e sua elegante tradução em vernáculo:

Hic requiescit,
Futurre immortalitatis promissione consolatus,

JACKSON DE FIGUEIREDO
Multis pervulgatus,
Paucis notus.
Vitam inter lucem et umbram,
Literis deditus, transegit.
Cum splendidis esset natalibus
Eminente ingenio et multiplice eruditione,
Modestiam retinuit et simplicitatem,
Virtutem coluit
Non ambitiosa severitate
Sed jucunda et liberali innocentia.

    AFFONSO PENA JÚNIOR

Consolado pela promessa de futura imortalidade
Aqui descanas

JACKSON DE FIGUEIREDO

Muitos lhe repetiram o nome
Poucos o conhecerem.
Entre a luz e a sombra,
Dado às letras passou a vida
Nobre de nascimento
Ilustre pelo talento e pelo saber variado
Conservou a modéstia e a simplicidade.
Sem severidade ambiciosa
Cultivou a virtude,
Com jovial e comunicativa espontaneidade.

   P. LEONEL FRANCA, S. J.

É tempo de terminar.

Dizem que D. João VI, quando ia ao teatro, e a peça não era das mais interessantes, começava a cochilar e, acordando estremunhado, perguntava discretamente ao vizinho: “Esses pândegos já se casaram?” O casamento, normalmente, seria o fim da comédia e da noitada. Sucede, porém, que o casamento nem sempre é o fim das comédias e sim o começo. As Academias, como os casamentos, podem ser um começo e não um fim. Não sois daqueles cuja idade tenha feito estancar a renovação das idéias, de que fala cinicamente Anatole France: Les vieillards tiennent beaueoup troup à leurs idées. C’est pourquoi les naturels des îles Fidji tuent leurs parents quand ils sont vieux. Ils facilitent ainsi l’évoluiton, tandis que nous en retardons la marche en faisant des académies. (Le Jardin d’Epicure, pág. 151.)

Sois, pelo contrário, um jovem de espírito, um dos espíritos mais jovens, vivos, maliciosos e argutos que tenho conhecido. Conseguistes este milagre de harmonia entre a mais austera das disciplinas intelectuais, como jurista e como crítico, e a conversa mais viva, mais atual, mais aguda, mais ao par das últimas novidades literárias, que nos é dado desfrutar. Sois, em suma, um autêntico discípulo do vosso velho e familiar Montaigne, mestre que conheceis de cor e salteado e nunca citais senão com bom propósito. Entrastes para aqui substituindo um espírito que conservou até morrer uma juvenilidade invejável e trazeis convosco um exemplo que não fica em nada a dever o vosso ilustre predecessor.

Que esses vossos antecedentes de probidade intelectual, de convivência polida e de sabedoria alada e modesta, que já constituem o encanto do vosso convívio e da vossa obra, sejam, por longos anos, uma perene lição para os vossos colegas e para as Letras brasileiras que de vós ainda tanto esperam.