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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Eduardo Portela

A Casa de Machado de Assis, cumprindo a decisão soberana de seus integrantes, acolhe hoje a escritora Rosiska Darcy de Oliveira*.

Ao crítico literário em disponibilidade cabe ocupar-se, com a necessária prudência, da personagem plural, do perfil abrangente que tem diante de si. Daquela que soube entender os segredos da alma e do corpo humanos, e foi capaz de escutar o silêncio do Carnaval.

Ela é escritora no conto, na crônica, no ensaio, no memorialismo, nos pedaços insubmissos do poema. Persiste em suas crônicas uma verticalidade que não é conhecida dos cronistas horizontais. Tudo isso sem sacrificar os seus compromissos comunicativos. Apenas sabedora de que escrever literatura vem a ser, antes de tudo, inventar. Até agora não consegui concluir se  o texto que dá origem e título ao  livro emblemático Chão de terra é uma pequena história ou um poema em prosa. O escritor, poeta, ensaísta ou narrador, deve guardar a distância regulamentar com relação ao usuário passivo da língua. Se assim não proceder jamais conseguirá ultrapassar a barreira do que venho chamando de os servidores servis da evidência.

Mas Rosiska Darcy de Oliveira segue adiante, “pensando e procurando entender”, no seu território individual, as várias verdades, que se aproximam e se afastam, entre o muro e o medo, promovendo a reprogramação do indivíduo social, mulher e homem, de qualquer inscrição profissional ou faixa etária. Radiografa o inventário dramático, não raro tragicômico, do cotidiano. Em meio aos “denominadores incomuns” ─ a designação é dela, a escritora.

Convivem em Rosiska Darcy de Oliveira o chamado intelectual público, a cidadã, a educadora, a protagonista  atualizada do feminino. A sua alta voltagem reflexiva percebeu logo, e oportunamente, que o intelectual público é aquele que soube transitar, antenadamente, da torre de marfim para o meio da rua. A cidadã, frequentadora assídua do espaço público, aposta na liberdade com responsabilidade. A pedagoga se inclina pelo projeto que articula, constitutivamente, a qualidade, ao que tudo indica mitigada nesses tempos de cólera, e o ânimo emancipatório. Formar, habilitar, para o trabalho e para a vida do mundo. O feminino substitui a ocultação primitiva  pela absorção sensata do outro. É o que me foi possível apreender e aprender com o seu reconhecido Elogio da diferença.

Não podemos deixar de sublinhar o esforço de elaboração de novas referências, outros padrões de relacionamento entre mulheres e homens. “A reengenharia, proposta pela sua obra Reengenharia do tempo, é uma tentativa ─ diz a autora ─ de repensar o cotidiano de homens e mulheres, com vistas a aumentar sua qualidade de vida e seu produto de felicidade bruto”. Trata-se de revitalizar a vida para além dos parâmetros preguiçosos de muito trabalho, insuficiente remuneração, pouco intercâmbio simbólico, enorme déficit de natureza. Longe do diferencialismo predatório, da ideologização da diferença. Mais distante ainda do capitalismo mercadológico, da pedagogia bancária, sustentada por relações de custo e benefício, que tanto sensibilizaram os donos do ensino público e do privado.

No campo da criação cultural, ou mais amplamente, das relações interpessoais, se mostra prioritário o esforço de democratização do capital simbólico, e não apenas do outro capital, mais contundente porém menos abrangente.

Prefiro supor que diferente não é apenas o que difere. É antes o mesmo que se junta ao outro para inventar, para criar e procriar. Imune a qualquer revanchismo. A postura revanchista é congenitamente dependente. Vive e se alimenta das emanações do centro ao qual se opõe. Com isso sacrifica o seu caráter emancipatório. A discordância civilizada denega a cacofonia dissidente. E mais uma vez o pensamento transideológico de Rosiska Darcy de Oliveira nos esclarece. Cito: “a intensificação das divergências é condição indispensável para dar visibilidade a um outro ponto de vista, para opor à realidade da maioria a existência de uma outra realidade, tornando mais complexa a vida”. O que nos autoriza a pensar sobre a tensão estrutural da diferença. Ela não exclui, porque a dinâmica nervosa  da alteridade inclui. É o que nos esclarece e incorpora, no dia a dia sempre mais veloz, as batidas cardíacas do calendário. É verdade que, em cima da ocorrência histórica, raramente há visibilidade crítica. Mas aqui ela nunca se fez de rogada.

A educadora, é a pedagoga, cuja superior genealogia remonta à Academia peripatética de Anísio Teixeira, Paulo Freire, Darcy Ribeiro. Formou com eles o pelotão pacífico dos militantes da esperança. E a eles se uniu para dilatar e transmitir os seus conhecimentos pelos quatro cantos do mundo. Aprendeu e ensinou. Transformou a punição estúpida no exílio inteligente. As geografias podiam se alternar, mas o pacto cidadão se manteve e avançou. Na Medina de Fez, em Cluny do Unicórnio, nas águas de Veneza, nas pirâmides do Egito, nas muralhas da China, no lago de Genebra, e assim pelo mundo afora. Em Pequim, na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, chegou a erguer, no que poderia ser mais um muro, uma passarela para o futuro. Foi quando buscaram ampliar a igualdade pelo respeito à diferença, uma vez que ficara mais clara a corrida de obstáculos das mulheres através da história.

Assisti, pessoalmente, e ouvi a ressonância da sua presença nos domínios da Unesco.

A “infelicidade bruta”, “a história sem sentido”, são legendas que se destacam na denúncia dos códigos performáticos. A razão instrumental jamais disfarça a sua máscara ideológica. O argumento apenas laboral se reduz logo à dissertação mesquinha. O “mundo plano e unidimensional” responsabilizado por Rosiska Darcy de Oliveira jamais tarda em se identificar com a “mascarada  da tragédia”. É a identidade infensa à alteridade, o mesmo ignorando o outro. Convém reaproximar as jornadas do trabalho das jornadas do desejo, deixando de lado a interminável ladainha das responsabilizações disparatadas. Não é o econômico que legitima o afetivo, porém a afetividade pode legitimar o econômico. Este, no seu delírio funcionalista tem sido grandemente responsável pelo desencantamento do mundo. E a marginalização da mulher, o seu sequestro histórico, aliaram-se a esse desencanto, e obstruíram o caminho da felicidade.

O lugar preferido dessa deterioração chama-se cidade. A cidade foi perdendo o seu encantamento matinal. Ao que tudo indica, as cidades foram deixando de ser a paisagem humanizada, para derrapar na trepidação inconsequente da megalópole. O tripé solidário de cidade, civilidade e  cidadania, viu-se abalado. A cidade ofega sem afagar. O leque aberto da cidadania parece encolher-se. A civilidade, virtude proveniente da longínqua polis, já deixa transparecer sinais evidentes de exaustão, no solo movediço da baixa-modernidade.

Tenho sérias resistências aos jargões traduzidos por pós-modernidade ou hiper-modernidade. O prefixo pós, na nossa tradição semântica, remete para algo que se acrescenta ao anteriormente dado. E o hiper é um superlativo arrogante, de credibilidade suspeita. E nós não temos acrescentado quase nada ao espólio radiante da alta-modernidade. Prefiro a designação de baixa-modernidade como, em tempos remotos, referíamo-nos à baixa Idade Média. Mais proximamente, sob o teto disforme da baixa-modernidade, as formas perderam as suas formas. Viraram formas. Passaram a ser utensílios formatados, com prazo de validade relâmpago. Tanto nos endereços convencionais quanto nas gavetas nervosas da mídia eletrônica.

Estamos encontrando dificuldade na construção da cidadania social, motor da cidadania cosmopolita. Somente a cidadania ativa, e jamais contemplativa, poderá reconverter essa defasagem.

Este desafio se agrava porque somos um país propenso ao conservadorismo, no qual a mudança nunca se fez acompanhar da ruptura. Somos solidários com a continuidade, quando não com o continuísmo. Essa tendência já foi registrada em nosso DNA ibérico. O grave é que somos conservadores com relação ao que não temos porque conservar.

Rosiska Darcy de Oliveira atravessa esse emaranhado historiográfico com altivez. Distante das respostas peremptórias, ergue relevante e interminável elenco de perguntas. Abala, com a sua leveza vertical, a linha divisória do consumismo dominante, e flagra, no homem moderno, A natureza do escorpião, “o consumo de si mesmo”. Aquele que de tanto consumir se consome. Esse mesmo homem que autoriza confundir os direitos do cidadão com as regalias do consumidor.

O compromisso primordial, ético, político, consiste em alargar o universo social do feminino, retirá-lo do seu confinamento ancestral, transpor as fronteiras preestabelecidas pelos argumentos de autoridade. É quando o reconhecimento do feminino se transforma em uma prática libertária. Impôs-se na madrugada de Pequim, a decisão de “olhar o mundo pelo olhar feminino”, registra a autora de A dama e o unicórnio. O olhar feminino, dizemos nós, tem razões que a própria razão desconhece. Esta Casa sempre se beneficiou, e se beneficiará dele, direta ou indiretamente, através da linhagem ilustre que remonta ao Bruxo do Cosme Velho.

Pequim, para ela o “sobressalto da história humana”, continua hoje, aqui, nesta noite que festeja a nova acadêmica que chega. Chega em nome das novas relações de poder, mais precisamente das que se afastam do que fora a sufocada diferença, submetida a um regime de terror. E foi graças a essa militância que a proposta feminina deixou de ser uma discussão circunscrita à agenda diplomática para se inscrever no programa prioritário da sociedade civil. Mesmo que permaneça minada e dificultada pelos abismos da sociedade desorganizada.

Rosiska Darcy de Oliveira tem todos os motivos para se regozijar, e declarar altivamente: “o Feminismo valeu sim, e muito, a pena. Foi um imprescindível rito de passagem”. Este rito teve de correr todos os riscos, especialmente os auspiciosos “riscos da liberdade”.

O trajeto foi longo, desde a Grécia edipiana, da mulher confinada no domicílio, subjugada pelo poder do gênero, às manifestações mais recentes quando, acusadas por algum tribunal de exceção, foram estigmatizadas até como principais responsáveis pela explosão demográfica. Ainda bem que são anedotas que foram ficando para trás.

Desde cedo, Rosiska Darcy de Oliveira se afirma como uma voz decididamente democrática, a serviço do único partido inteiro ─ o partido da condição humana. E é em nome dele que ela sai, decidida, à procura da dignidade perdida, e não poupa os desgovernos e os costumes degradados, as formas e cores da violência, urbana e rural, a violência explícita, e a implícita, menos visível, a corrupção. Todos os tipos de violência, enfim, desde a banalização da morte, ao populismo religioso, à produção em massa de objetos culturais descartáveis. Não raro desmascarando a licitação ilícita da racionalidade. Porque, como nos advertia o grande pintor espanhol Francisco de Goya, um dos mais caros emblemas da verdadeira modernidade, “os sonhos da razão produzem monstros”. E, quando não resvala na tecnocracia, se entrega à ideologia. As duas, aliás, costumam andar juntas, como aliadas inseparáveis. Somos levados a supor que a ideologia, tal como é possível observar diante das práticas vigentes, longe de promover o conhecimento, reduz-se à mera indexação fictícia dos homens e das coisas. A opção ideológica parece ignorar os vários movimentos da melhor imagem democrática.

No vasto repertório temático de Rosiska Darcy de Oliveira, ao lado da significação da liberdade, do respeito aos direitos humanos, do reconhecimento do feminino, convém chamar a atenção para o seu entendimento da questão do tempo. Uma vez que o próprio tempo livre não é tão livre quanto imaginamos. Porque vem sendo manipulado pela propaganda enganosa: o tempo, a sociedade, a família, o trabalho, a escola, o lazer. A propaganda enganosa termina sendo das mais nefastas ideologias da nossa época.

É o mapa da mina que teremos de operar se quisermos substituir a sociedade de locutores, fanaticamente monológica, por uma outra, aberta e livre, a sociedade de interlocutores, empenhadamente dialógica.

Todos os caminhos conduzem à educação, causa e meta de um projeto nacional consequente. A educação de qualidade continua sendo o principal agente da inclusão social. Porém de qualidade, permitam-me insistir.

A gestão educacional no Brasil não tem cumprido adequadamente com as suas obrigações. Agarrada ao fascínio tecnocrático, ela desequilibra a meritocracia e a digitalização, e negligencia o trabalho pedagógico a uma só vez inteligente e sensível. Frequentemente se deixa tragar pela voracidade da educação especulativa, tornando-se inabilitada para recusar os lucros desmedidos e as mazelas insuportáveis da baixa-modernidade. Já é hora de perguntar: onde estão os quadros da potência emergente? Como a Conceição da música popular, ninguém sabe, ninguém viu. E isto vem de longe. Mas a potência emergente vem de perto.

Cabe, suponho, desenvolver um nacionalismo cosmopolita infenso a qualquer tipo ou forma de ufanismo. O ufanismo termina sendo, quando muito, uma maneira de renaturalização da natureza. Necessitamos de mais. Necessitamos reforçar nossas reservas imunológicas, revigorar perspectivas de compreensão de modo algum fechadas  nas muralhas nacionalistas. Rosiska Darcy de Oliveira conhece de perto esse repto, porque dispõe do saber transformador, carregado de praticidade. A escritora cidadã é mais do que a simples beletrista.

A autora de Outono de ouro e sangue circula, com descontração, entre o fogo cruzado do viver e do conviver. Reconhece o luto, porém aposta na esperança possível, retirada da vida cotidianamente testada nas práticas do viver. Vai buscar energias outras na raiz etimológica do conviver. Conviver é predispor-se ao outro, e abraçar o pacto social duradouro. Conviver é viver com. É compartir, somar, mesmo e em meio a discrepâncias, que rápido se tornam divergências complementares.

Rosiska Darcy de Oliveira enaltece o valor da convivência. Daí a presença, nas suas obras, de suas marcantes companheiras de viagem: Simone de Beauvoir, Maria de Lourdes Pintassilgo, Ruth Cardoso, Fernanda Montenegro. E Virgínia Woolf, é claro.

Vale lembrar que se trata de um programa intelectual todo atravessado por um fio moral inegociável. É sempre saudável a aliança de participação e responsabilidade, sob os auspícios do rigor ético. Não de uma ética predicativa, retórica, imobilista, porém dialógica, vivenciada, compartilhada. A ciclotimia ética do poder frequentemente embaralha os departamentos, e confunde o público e o privado, em prejuízo antes do primeiro que do segundo. Ao contrário da postura dogmática, unilateral, toda encarcerada no seu palácio de espelhos, a consciência comunicativa traz uma forte contribuição para o advento da sociedade de interlocutores solidários.

Tudo o que expus não vai além de um diálogo atento, e para mim proveitoso, com a obra de Rosiska Darcy de Oliveira.

Mas voltemos à literatura. A literatura é a forma de conhecimento capaz de dar conta da complexidade do real. A escritora registra as mínimas palpitações da vida, porque nada do que é humano lhe é indiferente. A instância imaginária, ou simbólica, ultrapassa o recorte empírico, instala-se no coração de existência, e vê a vida como a peripécia da intersubjetividade. Daí nasce o vigor do discurso literário, aqui reoxigenado pelo contraponto bem sucedido entre o coloquial e o idioma codificado. São aquelas cartas escondidas na manga pelos escritores verdadeiramente escritores.

Acadêmica Rosiska Darcy de Oliveira, a Casa de Machado de Assis, a partir de agora, é sua também.

14/6/2013